domingo, 25 de maio de 2014

O porco e o mocho



As banhas de Depardieu, a rapinagem de Strauss-Kahn e a mistura de papéis no filme ‘Welcome to New York’

24 de maio de 2014 | 16h 00

Gilles Lapouge - O Estado de S. Paulo
Escandalosos. O ator se lambuza em cena e na própria vida; o banqueiro diz que voltará ao topo - FRANCE24.COM
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Escandalosos. O ator se lambuza em cena e na própria vida; o banqueiro diz que voltará ao topo
Todos os anos, na primavera, realiza-se em Cannes o maior festival de cinema do mundo, ponto de encontro do talento e do gênio, da riqueza, do luxo, da graça e do erotismo. A praia de areia dourada, em frente às águas cintilantes do Mar Mediterrâneo, torna-se por alguns dias a passarela por onde transitam mulheres glamourosas e homens fascinantes. Este ano, no sábado 17, foi instalada sobre a areia uma grande tenda. As pessoas só eram admitidas com convite e, ao entrar, recebiam um presente: um saquinho contendo algemas, um chicote, um preservativo e às vezes uma corda. No interior da tenda, uma ampla cama, onde os convidados podiam ser fotografados. Alguns se aspergiam de esperma de mentira com pistolas de água. E riam às gargalhadas!
Em seguida, assistiam ao filme Welcome to New York (que por enquanto não será projetado nas salas de cinema). Com um título tão banal, o filme conta a história que há três anos deixou o mundo inteiro estupefato, encantado ou enojado. Um dos homens mais poderosos do universo, o francês Dominique Strauss-Kahn, então diretor-geral do FMI, que administra bilhões de dólares ou de euros, casado com uma mulher espetacular, Anne Sinclair, gênio da finança, que se preparava para concorrer às eleições presidenciais, ou seja, para tornar-se, com toda certeza, presidente da França, está hospedado no Hotel Sofitel de Nova York.
Certa manhã, ele ataca uma camareira do Sofitel, a estupra ou tenta estuprá-la. Detido pela polícia nova-iorquina, é levado à prisão, humilhado, julgado, e, no fim, solto. Mas nunca mais será presidente da França. Seu destino está aniquilado.
Uma história como esta só poderia despertar a inveja de Hollywood. O roteiro estava pronto. Milhões de artigos já se haviam encarregado de fazer uma publicidade planetária do caso. Para dirigi-lo foi escolhido um diretor famoso, Abel Ferrara (Tenente Mau, New Rose Hotel, etc.). A isso acrescentava-se uma vantagem suplementar: o papel de DSK, do homem repentinamente caído em descrédito por causa dos seus impulsos sexuais delirantes, tinha sido dado a Gérard Depardieu, o maior ator francês, o mais famoso, e que soma ao gênio artístico, outro aspecto peculiar, o de personagem violento, meio ogro e provocador.
Portanto, o triunfo estava assegurado. No entanto, foi um fiasco. O filme é deplorável. Ele segue de maneira grosseira as mesmas linhas da história que todo mundo já conhece. No início, Depardieu (DSK) se diverte com prostitutas de luxo, mulheres lindas em roupas íntimas ousadas. No meio de todos estes corpos, é o enorme Depardieu que se deixa seduzir.
De tempos em tempos, ele grita. Aliás, este é o único “suspense” no início do filme: os gritos de Depardieu evocam os grunhidos de um porco ou o uivo de um mocho? Surge toda uma polêmica em torno desta indagação. Formam-se dois campos, o do porco e o do mocho.
De manhã, como é comendo que vem o apetite, Depardieu/DSK ainda está com fome. Agarra então uma camareira e a estupra. O resto é conhecido. A polícia, a cadeia, DSK é colocado em prisão domiciliar numa luxuosa mansão em Nova York aguardando a decisão da justiça, acompanhado pela esposa (Anne Sinclair, interpretada por Jaqueline Bisset).
O erotismo tórrido e grotesco do início não voltará a aparecer. Seguimos DSK nos meandros da justiça e da polícia. Há apenas uma cena interessante: DSK/Depardieu precisa ficar nu na frente dos policiais. Ele vai tirando uma a uma as peças de roupa: uma cena deplorável e ao mesmo tempo fascinante. Seu corpo é colossal, disforme, uma montanha de pneus, de dobras e redobras, de banhas, de músculos e de humilhação.
O fracasso do filme é completo. Apesar dos esforços da “produção”, a crítica menospreza o filme. E a reação das mulheres da película? A camareira do hotel Sofitel em Nova York, Nafissatou Diallo, não se manifesta. A esposa de DSK, a jornalista Anne Sinclair, está muito mais revoltada porque o filme dá a entender que sua fortuna vem dos negócios escusos que a família Sinclair, judia, teria realizado durante a guerra, enquanto a verdade é o oposto: a família Sinclair, que é de fato judia, era uma riquíssima dinastia de marchands de quadros, mas foi arruinada pelos nazistas. 
Quanto a DSK, ele não viu o filme, mas pretende processar o diretor, porque os juízes americanos declararam extinto o processo sem julgar o mérito. O advogado de DSK, Jean Viel, viu o filme, e se manifesta com veemência. Num primeiro momento, ele diz: “Este filme é uma m...”. Depois reflete, e acrescenta para maior precisão: “É uma m... de cachorro”.
E DSK, e sua vida, três anos depois do desastre? No começo foi muito difícil, principalmente porque o próprio DSK foi implicado em outro affair sexual. Por ter praticado sexo em grupo num grande hotel da cidade de Lille, passa a ser novamente investigado por “proxenetismo agravado”, o que acaba com a vida do pobre homem!
Mas aos poucos, ele se recupera. Financista genial, faz conferências ricamente remuneradas por toda parte. Cria uma sociedade com outro financista e a coisa “vai indo”. “Daqui a cinco anos”, afirmou recentemente a um amigo, “eu vou ser mais forte do que o Banque Lazard”. Politicamente, está no fundo do poço. O partido socialista o considera um “pestilento”. Ele detesta o presidente francês François Hollande, que julga uma nulidade. Tem alguns contatos com o primeiro-ministro Manuel Valls.
Em matéria de política, está tudo acabado. Mas não as mulheres. Pobre DSK! A culpa não é dele! Ele conserva grandes necessidades sexuais. Algumas mulheres também. E, estranhamente, desde a catástrofe, nem todas as mulheres têm se mostrado cruéis com ele, ao contrário.
Sua esposa, a bela Anne, que o apoiou com uma atitude magnífica durante a tempestade, em seguida se separou dele. Indubitavelmente, ele sofreu com isso, mas hoje, quando as pessoas o encontram nos lugares da moda em Montparnasse ou em Saint Germain des Prés, está na companhia de pessoas extraordinárias. Inclusive em Roland Garros, no torneio de tênis. Não mencionaremos nomes.
Salvo o de Marcela Jacub. Trata-se de uma belíssima psicanalista argentina que mora em Paris e escreve para o jornal Libération artigos brilhantes e muito “liberados”. Ela teve um relacionamento com DSK. Em seguida, publicou um livro estranho que dá a entender que Marcela Jacub quis este relacionamento assim como um etnólogo organiza uma missão entre os bororos ou os zulus, com a finalidade de contar sua experiência e de promover o avanço da ciência. Chego quase a entender que o homem Dominique Strauss-Kahn não pode ser absolutamente equiparado ao indivíduo “perverso” do Hotel Sofitel.
E há Gérard Depardieu, o ator que encarna DSK. Ele sozinho é todo um poema. Nasce em 1948, numa família miserável do centro da França. O pai, violento, fabrica peças de carroçaria de automóveis. O pequeno Gérard é um péssimo aluno. À escola, ele prefere a rua, as brigas de rua. É um pequeno líder. Em Paris, será guarda-costas das prostitutas, e depois aprendiz de estamparia. Torna-se inclusive lutador de boxe.
Influenciado por um amigo, faz cursos de arte dramática e então encontra seu caminho. Trabalha, lê, fascina as pessoas. O cinema o chama. Interpreta centenas de filmes, sem se preocupar em escolher, um verdadeiro ogro. É procurado pelos diretores mais sofisticados, os mais famosos.
Interpreta obras primas, mas não rejeita produções menores. Bertrand Blier, Jean Luc Godard, Truffaut, Bertolucci, Marco Ferreri, todos querem Depardieu. Acumula uma fortuna. É sempre um ogro. Compra restaurantes, uma peixaria, vinhedos, um hotel, uma empresa de petróleo em Cuba, grandes restaurantes no Canadá, na Romênia. Tem uma saúde de ferro (é um Hércules), mas, ao mesmo tempo, frágil. Frequentemente abusa do álcool. Em 2000 coloca quatro pontes de safena. Este homem de comportamento desregrado, incoerente, genial, mostra uma grande curiosidade religiosa. Em 2003, faz uma leitura pública das Confissões de Santo Agostinho, na catedral de Notre Dame de Paris. É um momento sublime.
Há muito tempo homem de esquerda, acaba seduzido por Nicolas Sarkozy. Quando o socialista Hollande chega ao poder, Depardieu não tolera mais ser esmagado pela carga de impostos sobre as grandes, as enormes fortunas. Deixa a França. Inicialmente, faz uma escala na Bélgica, depois muda-se para a Rússia, onde Putin o acolhe como um irmão. Depardieu elogia Putin e o presidente da Chechênia, Ramzan Kadyrov, que não é absolutamente um grande democrata. Torna-se amigo da filha do ditador do Uzbequistão, Gulnara Karimova, e manda construir uma casa numa floresta da Mordóvia, num terreno que Putin lhe oferece. Toda esta atividade não impede que ele continue sua carreira de ator. Trabalha numa série russa, na qual interpreta o papel de Rasputin, um colosso bêbado e delirante, que lhe cai muito bem. Atua também no exterior, em filmes, por exemplo, no lamentável Welcome to New York.
Portanto, está presente no festival de Cannes. Mas, quando os jornalistas o entrevistam sobre o filme, recusa-se a falar sobre a película, e sobre Dominique Strauss-Kahn. Não há dúvida de que está um pouco envergonhado. O jornalista insiste. Depardieu berra. Ameaça quebrar o estúdio e a cara do atrevido. Por sorte, este é uma pessoa prudente. Não é muito forte e trata de bater rapidamente em retirada. Seria um louco e mesmo um suicida se quisesse enfrentar este Falstaff, este Obélix.
Esta é a história de um desordeiro. A queda de Dominique Strauss-Kahn poderia inspirar um filme soberbo, desde que, em lugar de mostrar cenas de sexo ridículas e degradantes, procurasse indagar sobre este momento patético: o homem mais dotado de sua geração, que construiu sua vida como um monumento, o homem que dirige o FMI e que precisa dizer apenas uma palavra para tornar-se o presidente da França, percebe uma jovem, uma camareira, numa suíte de um grande hotel de Nova York. 
O homem hesita e, em seguida, obedece ao “desejo louco”. Sem dúvida, ele está consciente, sem dúvida ele pressente que os dez minutos de exaltação com esta desconhecida podem custar-lhe a última etapa de uma epopeia triunfante, e que, por um gozo efêmero, todo o edifício irá desmoronar no ridículo e desaparecer no nada. E ele cede. Atira-se sobre a jovem. Tal é a força do desejo: o espaço de tempo de um piscar de olhos, e uma vida está destruída. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

Parados no tempo e no espaço


Para filósofo italiano, a metrópole é um corpo em constante movimento. Quando paralisa de repente, entra numa órbita de irracionalidade pura

24 de maio de 2014 | 16h 00

Mônica Manir - O Estado de S. Paulo
Passageiros buscam saída para o caos. ‘É uma massa solitária, que deixou de ter desejos' - LEO EELOY/SELVASP
LEO EELOY/SELVASP
Passageiros buscam saída para o caos. ‘É uma massa solitária, que deixou de ter desejos'
Mauro Maldonato é filósofo, psiquiatra, autor de 'Da mesma matéria que os sonhos' (Sesc)
A cidade que nunca para parou. E por falta de aviso prévio, por inércia ou por desatino, milhares continuaram em movimento, na determinação de chegar aonde iam ou de voltar ao ponto de partida. Foi um transtorno atroz na visão dos paulistanos, e um caos tempo-espacial na perspectiva do italiano Mauro Maldonato, que acompanhou o vaivém insano do povo atrás de condução. Depois de rodar pelo interior de São Paulo em eventos que tratavam do corpo e do tempo, o filósofo estacionou na capital no auge da greve para lançar seu novo livro. Da Mesma Matéria que os Sonhos se junta a A Subversão do Ser,Raízes Errantes e Passagens do Tempo, todos publicados pelas Edições Sesc. Desta vez ele trata de consciência, racionalidade e livre-arbítrio. 
Maldonato nasceu na piccola e aprazível Sapri, distante 140 quilômetros de Nápoles, na qual vive hoje. Já passou bons anos em Londres, onde estudou na London School of Economics; morou em Paris, onde frequentou a École des Hautes Études em Sciences Sociales; foi professor visitante da PUC-SP e da USP; e hoje dirige o Cognitive Science Studies for the Research Group, na Universidade Duke. Também é professor no Departamento das Culturas Europeias e do Mediterrâneo na Universidade Della Basilicata e acaba de chegar de Dubai. Foi dar mais uma conferência sobre o tempo, que parece se multiplicar em suas mãos.
Nesta entrevista, feita no mezanino envidraçado de um hotel nos Jardins, Maldonato falou do que via lá fora: a metrópole desencarnada. “Esses corpos são desmaterializados, fruto de uma massa doida que deixou de ter relações significativas sob o efeito ilusório da grande lente imaginária sustentada pela internet.” Além disso, diz ele, a velocidade urbana, mais acelerada, não casa com a velocidade da biologia, infinitamente mais lenta. Não há mais sintonia. “Vivemos a era do instantâneo, e é muito provável que nos deparemos com novas patologias provocadas por essa assimetria.” Seria esse napolitano um ser apocalíptico? Aos 54 anos de idade, pai de um adolescente de 15, ele garante que não. Apenas gosta de pensar: “Falta a paciência da espera, e hoje o efeito antecipa a causa. É um tema que instiga, intriga, interpela, porque é o tema do nosso futuro”.
Quando uma cidade estressada como São Paulo é obrigada a parar, ela parece ainda mais estressada do que quando está em movimento. Como explicar isso?Para responder à sua pergunta, é interessante pensar numa metáfora. Uma cidade é um corpo. Não um corpo orgânico no sentido tradicional, mas um corpo no formato de um sistema nervoso, que tem a sua consciência e a sua parte inconsciente. Esse sistema nervoso funciona por meio de inputs e outputs, movimentos de entrada e saída. Imaginemos um número infinito de pessoas como as que vivem em São Paulo, que vêm e vão. Quando qualquer coisa, um objeto, uma situação, uma greve interrompe esse fluxo, um corpo como a cidade entra numa espécie de paralisia. A greve interrompe esse fluir, a cidade entra numa órbita de irracionalidade pura, na qual até os direitos primários, mais básicos, como as relações entre as pessoas, se interrompem. Isso naturalmente produz alterações em uma metrópole que convive ao mesmo tempo com realidades pós-modernas e pré-modernas, como São Paulo. A paralisação adoece o imaginário, a expectativa, a vitalidade.
Mas seria uma característica típica de São Paulo? Ou comum a todas as metrópoles? 
Por muito tempo vivi em Londres, também no Oriente Médio, no Extremo Oriente, visitei Hong Kong, Dubai, e naturalmente cidades mais antigas, como Nova York e São Paulo. Sim, elas têm algo em comum. São todas imensos navios com um grande depósito de corpos. Esses corpos parecem não pertencer a eles mesmos. São desmaterializados, fruto de uma massa doida, de uma massa solitária, que deixou de ter desejos, de ter relações significativas, sob o efeito ilusório da grande lente imaginária suportada pela internet. Como se isso produzisse um aumento das relações...
Não é uma visão exatamente otimista da internet e das redes sociais.Não tenho um visão pessimista quanto a isso, mas as redes sociais são um fenômeno evolutivo que a humanidade ainda não processou. Houve uma época em que a cidade tinha um sentido tradicional. Ele se alargou com o advento da metrópole e depois com a megalópole. É como se a cidade deixasse de ter sua evolução natural, como todas as coisas da vida. Seu estágio atual é o da velocidade. Falta a paciência da espera, e hoje o efeito antecipa a causa. Se tenho esse telefone e o deixo cair no chão, tenho uma relação de causa e efeito, certo? Mas parece que a relação é ao contrário. E isso, do ponto de vista evolutivo da mente humana, não foi elaborado, porque nossas estruturas cerebrais são ainda muito arcaicas. Há uma diferença entre o tempo da sociedade, da velocidade urbana, e o tempo da nossa biologia, que é muito lento. É muito provável que nos deparemos com novas patologias provocadas por essa assimetria. Porque a coisas não estão mais juntas, não há mais sintonia. Nossa expectativa quando aguardávamos uma carta era uma. Agora existe a impaciência de ler um e-mail. 
Que patologias seriam essas? É possível antecipá-las? Patologias urbanas. Está previsto um crescimento da depressão e outros fenômenos de ansiedade, um fenômeno que aumentou exponencialmente. É impressionante. Se você vai à farmácia e pergunta qual é o medicamento mais vendido, certamente são aqueles para o coração e os antidepressivos. 
Mas a pessoa fica deprimida porque não consegue se adequar a esse tempo? Ou ela é deprimida, e o tempo não se adapta a ela?São duas coisas diferentes: uma é a depressão endógena, orgânica, e as causas estão no nosso cérebro. Outra é a depressão como consequência da incapacidade de se adaptar à velocidade e à complexidade do mundo em que vivemos. Mas os sintomas convergem: uma pessoa deprimida vive um tempo congelado, imóvel, interrompido, sem esperança, estéril, paralisado. É como uma cidade que, entre altos e baixos, é obrigada a parar repentinamente. Fica inquieta, nervosa, agressiva. É uma heteroagressividade, contra o outro, que pode se transformar numa autoagressividade. Porque a depressão tem essa inquietude, essa laceração interior, que provoca dor. 
No ócio criativo, postulado pelo italiano Domenico de Masi, o tempo livre seria fundamental. Diante da escassez de horas vagas, estaríamos menos criativos?O que significa uma apologia do tempo livre, do ócio criativo no panóptico social pós-moderno? Que sentido teria uma liberdade dentro de um nicho não contaminado pelo pecado social da obrigação? Não há nenhuma intenção polêmica nisso, mas me parece que esse achado se sustenta na convicção de que existam espaços de liberdade puros, incontaminados e imunizados. Além disso, o elogio incondicional do ócio degrada o trabalho. Ele seria nada mais que labuta necessária, forçosa. Para mim não é assim. Eu me divirto muito trabalhando. Tenho receio de que a defesa entusiasmada do tempo livre retome o tema aristocrático da liberdade como superioridade elitista, aristocrática, que torna a ser proposta, mas agora com tempero democrático. Mas não há nada de democrático nessa liberdade, porque lhe falta o caráter da universalidade. É uma liberdade que desistiu de lutar por ela mesma. 
Você usa o filme Wall Street: Poder e Cobiça como metáfora do tempo da modernidade. Que filme representaria a pós-modernidade?Blade Runner é pós-moderno. Talvez eu não seja original, mas ele parece profético, representa o tema que todos temos diante de nós, ou seja, a consciência de que as máquinas um dia terão sentimentos. Olho com extremo interesse a inteligência artificial. O verdadeiro desafio intelectual é imaginar se essa máquina vai assumir sua autonomia com pequenos fragmentos de livre-arbítrio. 
O que achou do filme Ela? Não lhe pareceu atual, apesar da proposta futurista? Ela é absolutamente fascinante. É um olhar agudo sobre nosso presente. Por trás de uma história de amor ao silício, simples mas profunda e original, indagam-se a natureza e as implicações da intimidade e das relações humanas no mundo contemporâneo. Sem lições morais. O diretor, Spike Jonze, entra na mente e no coração da máquina, tentando eludir as diferenças. Quem amamos quando nos apaixonamos pelo computador? É nossa projeção, nosso desespero ou um outro ser? A câmara prefigura a sociedade que seremos em breve. Sobretudo apresenta-nos a tecnologia não como uma inimiga insidiosa, mas sem preconceitos e sem evocar emoções obscuras. Uma visão inovadora, nada inquietante, uma pesquisa estética, sedutora.
A extrema velocidade do mundo seria um recurso para nos afastar da nossa humaníssima morte?A morte é o tornassol do frágil arcabouço do moderno. Todas as imagens da mídia são imagens que celebram a beleza, o corpo sadio e juvenil. Rejeitam tudo o que nos remete à condição mortal. A morte continua sendo o único verdadeiro escândalo da modernidade. Embora a espetacularizem, os meios de comunicação de massa se imunizam contra a morte porque ela contradiz seus valores: o consenso e o consumo. Não por acaso, para exorcizar a morte na internet, há uma ampla oferta de lóculos de cemitério com imagens, vozes e sons; tarifários para a mumificação; empresas que lançam em órbita as cinzas; e assim por diante. Mas as coisas são ligeiramente mais complicadas do que isso. A morte verdadeira por envelhecimento precoce de Dolly, a simpática ovelhinha criada eugeneticamente, foi um golpe duro para aqueles que, além da própria imagem de preferência tridimensional, queriam manter em vida também o corpo.

Piketty por todo lado


18 de maio de 2014 | 2h 06

Moisés Naím
Em janeiro de 2012 escrevi num artigo: "A desigualdade será o tema central de debates este ano. A desigualdade sempre existiu e não vai desaparecer, mas este ano ela dominará a agenda dos eleitores, dos que protestam nas ruas e dos políticos. Terá fim a coexistência pacífica com a desigualdade e a necessidade de lutar contra ela - e as promessas de que isso será feito serão as mais intensas e generalizadas desde o fim da Guerra Fria". 

Foi o que ocorreu. Denunciar o 1% da população muito rica ao passo que a vida de 99% dos indivíduos é cada vez mais precária tornou-se um slogan mundial. Em 2012 o número de artigos sobre a desigualdade econômica aumentou 25% em relação a 2011 (e 237% em relação a 2004). 

Muito mais importante foi o fato de o papa Francisco e Barack Obama se referirem a ela como o problema que define o nosso tempo. Como combatê-la é assunto de debate eleitoral em todo o mundo, incluindo países como o Brasil, onde a desigualdade diminui.

Agora, dois anos após meu prognóstico, chegou Thomas Piketty. Dizer que ele é um economista francês, autor de O Capital no Século 21, best seller mundial, é fazer-lhe injustiça. 

Piketty é muito mais do que isto. É um surpreendente fenômeno político, midiático e editorial. Sua tese é de que a desigualdade econômica é um efeito inevitável do capitalismo e se não for combatida continuará aumentando até chegar a níveis que acabarão por destruir a democracia e a estabilidade econômica. Segundo ele, a desigualdade cresce quando a taxa de remuneração do capital ("r") é maior que a do crescimento econômico ("g") ou, em sua famosa formulação, a desigualdade cresce quando "r" é maior que "g". 

O alcance do fenômeno Piketty vai além do que normalmente ocorre com ideias de acadêmicos. Por exemplo, um artigo de The New York Times sobre como escolher a área da cidade onde viver, recomendando que antes seja feita uma averiguação sobre o que os vizinhos leem. Para isso sugere que se vá à biblioteca do bairro para saber quais são os livros mais procurados. É um lugar mais tipo Piketty ou mais propenso a romances de mistério? Outro artigo sobre os espinhosos problemas que afetam casais quando a mulher ganha mais do que o marido termina explicando que a base do problema tem a ver com o "debate Pikety..." 

A inesperada popularidade dos livros acadêmicos de difícil leitura não é um fenômeno novo. Isso ocorreu, entre outros, com O Fim da História, de Francis Fukuyama, publicado em 1992, e com O Choque das Civilizações, de Samuel Huntington, de 2001. O improvável sucesso editorial de ambas as obras deve-se ao fato de que foram publicadas em momentos em que já havia um grande interesse no mundo pelos temas que abordavam. Fukuyama publicou seu livro pouco depois do colapso da União Soviética e a percepção generalizada era de que o comunismo fora derrotado. O prognóstico de que o futuro do mundo seria definido por ideias liberais - pelos mercados e a democracia - chegou no momento preciso. Uma década depois, Huntington teve a mesma sorte. Seu livro, cuja tese é de que os conflitos ideológicos serão substituídos por conflitos religiosos, foi lançado um mês antes dos ataques do 11 de Setembro. 

Agora chegou a vez de Piketty. 

Há uma década, quando o boom econômico estava no apogeu e o colapso financeiro ainda não havia deixado extremamente angustiadas as famílias nos EUA e na Europa, o interesse em entender por que a desigualdade é causada por "r maior que g" não era tão grande. Na América Latina e África, regiões com a pior distribuição de renda do planeta, o tema da desigualdade não é novo. 

O debate mundial difundiu-se quando a desigualdade se agravou nos EUA. A superpotência tem uma capacidade inigualável para exportar suas angústias e fazer com que o restante do mundo compartilhe delas. Neste caso, é boa notícia saber que o problema também é importante para aqueles que o têm tolerado passivamente há tempo demais. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO 

É ESCRITOR VENEZUELANO E MEMBRO DO CARNEGIE ENDOWMENT EM WASHINGTON