domingo, 25 de maio de 2014

O porco e o mocho



As banhas de Depardieu, a rapinagem de Strauss-Kahn e a mistura de papéis no filme ‘Welcome to New York’

24 de maio de 2014 | 16h 00

Gilles Lapouge - O Estado de S. Paulo
Escandalosos. O ator se lambuza em cena e na própria vida; o banqueiro diz que voltará ao topo - FRANCE24.COM
FRANCE24.COM
Escandalosos. O ator se lambuza em cena e na própria vida; o banqueiro diz que voltará ao topo
Todos os anos, na primavera, realiza-se em Cannes o maior festival de cinema do mundo, ponto de encontro do talento e do gênio, da riqueza, do luxo, da graça e do erotismo. A praia de areia dourada, em frente às águas cintilantes do Mar Mediterrâneo, torna-se por alguns dias a passarela por onde transitam mulheres glamourosas e homens fascinantes. Este ano, no sábado 17, foi instalada sobre a areia uma grande tenda. As pessoas só eram admitidas com convite e, ao entrar, recebiam um presente: um saquinho contendo algemas, um chicote, um preservativo e às vezes uma corda. No interior da tenda, uma ampla cama, onde os convidados podiam ser fotografados. Alguns se aspergiam de esperma de mentira com pistolas de água. E riam às gargalhadas!
Em seguida, assistiam ao filme Welcome to New York (que por enquanto não será projetado nas salas de cinema). Com um título tão banal, o filme conta a história que há três anos deixou o mundo inteiro estupefato, encantado ou enojado. Um dos homens mais poderosos do universo, o francês Dominique Strauss-Kahn, então diretor-geral do FMI, que administra bilhões de dólares ou de euros, casado com uma mulher espetacular, Anne Sinclair, gênio da finança, que se preparava para concorrer às eleições presidenciais, ou seja, para tornar-se, com toda certeza, presidente da França, está hospedado no Hotel Sofitel de Nova York.
Certa manhã, ele ataca uma camareira do Sofitel, a estupra ou tenta estuprá-la. Detido pela polícia nova-iorquina, é levado à prisão, humilhado, julgado, e, no fim, solto. Mas nunca mais será presidente da França. Seu destino está aniquilado.
Uma história como esta só poderia despertar a inveja de Hollywood. O roteiro estava pronto. Milhões de artigos já se haviam encarregado de fazer uma publicidade planetária do caso. Para dirigi-lo foi escolhido um diretor famoso, Abel Ferrara (Tenente Mau, New Rose Hotel, etc.). A isso acrescentava-se uma vantagem suplementar: o papel de DSK, do homem repentinamente caído em descrédito por causa dos seus impulsos sexuais delirantes, tinha sido dado a Gérard Depardieu, o maior ator francês, o mais famoso, e que soma ao gênio artístico, outro aspecto peculiar, o de personagem violento, meio ogro e provocador.
Portanto, o triunfo estava assegurado. No entanto, foi um fiasco. O filme é deplorável. Ele segue de maneira grosseira as mesmas linhas da história que todo mundo já conhece. No início, Depardieu (DSK) se diverte com prostitutas de luxo, mulheres lindas em roupas íntimas ousadas. No meio de todos estes corpos, é o enorme Depardieu que se deixa seduzir.
De tempos em tempos, ele grita. Aliás, este é o único “suspense” no início do filme: os gritos de Depardieu evocam os grunhidos de um porco ou o uivo de um mocho? Surge toda uma polêmica em torno desta indagação. Formam-se dois campos, o do porco e o do mocho.
De manhã, como é comendo que vem o apetite, Depardieu/DSK ainda está com fome. Agarra então uma camareira e a estupra. O resto é conhecido. A polícia, a cadeia, DSK é colocado em prisão domiciliar numa luxuosa mansão em Nova York aguardando a decisão da justiça, acompanhado pela esposa (Anne Sinclair, interpretada por Jaqueline Bisset).
O erotismo tórrido e grotesco do início não voltará a aparecer. Seguimos DSK nos meandros da justiça e da polícia. Há apenas uma cena interessante: DSK/Depardieu precisa ficar nu na frente dos policiais. Ele vai tirando uma a uma as peças de roupa: uma cena deplorável e ao mesmo tempo fascinante. Seu corpo é colossal, disforme, uma montanha de pneus, de dobras e redobras, de banhas, de músculos e de humilhação.
O fracasso do filme é completo. Apesar dos esforços da “produção”, a crítica menospreza o filme. E a reação das mulheres da película? A camareira do hotel Sofitel em Nova York, Nafissatou Diallo, não se manifesta. A esposa de DSK, a jornalista Anne Sinclair, está muito mais revoltada porque o filme dá a entender que sua fortuna vem dos negócios escusos que a família Sinclair, judia, teria realizado durante a guerra, enquanto a verdade é o oposto: a família Sinclair, que é de fato judia, era uma riquíssima dinastia de marchands de quadros, mas foi arruinada pelos nazistas. 
Quanto a DSK, ele não viu o filme, mas pretende processar o diretor, porque os juízes americanos declararam extinto o processo sem julgar o mérito. O advogado de DSK, Jean Viel, viu o filme, e se manifesta com veemência. Num primeiro momento, ele diz: “Este filme é uma m...”. Depois reflete, e acrescenta para maior precisão: “É uma m... de cachorro”.
E DSK, e sua vida, três anos depois do desastre? No começo foi muito difícil, principalmente porque o próprio DSK foi implicado em outro affair sexual. Por ter praticado sexo em grupo num grande hotel da cidade de Lille, passa a ser novamente investigado por “proxenetismo agravado”, o que acaba com a vida do pobre homem!
Mas aos poucos, ele se recupera. Financista genial, faz conferências ricamente remuneradas por toda parte. Cria uma sociedade com outro financista e a coisa “vai indo”. “Daqui a cinco anos”, afirmou recentemente a um amigo, “eu vou ser mais forte do que o Banque Lazard”. Politicamente, está no fundo do poço. O partido socialista o considera um “pestilento”. Ele detesta o presidente francês François Hollande, que julga uma nulidade. Tem alguns contatos com o primeiro-ministro Manuel Valls.
Em matéria de política, está tudo acabado. Mas não as mulheres. Pobre DSK! A culpa não é dele! Ele conserva grandes necessidades sexuais. Algumas mulheres também. E, estranhamente, desde a catástrofe, nem todas as mulheres têm se mostrado cruéis com ele, ao contrário.
Sua esposa, a bela Anne, que o apoiou com uma atitude magnífica durante a tempestade, em seguida se separou dele. Indubitavelmente, ele sofreu com isso, mas hoje, quando as pessoas o encontram nos lugares da moda em Montparnasse ou em Saint Germain des Prés, está na companhia de pessoas extraordinárias. Inclusive em Roland Garros, no torneio de tênis. Não mencionaremos nomes.
Salvo o de Marcela Jacub. Trata-se de uma belíssima psicanalista argentina que mora em Paris e escreve para o jornal Libération artigos brilhantes e muito “liberados”. Ela teve um relacionamento com DSK. Em seguida, publicou um livro estranho que dá a entender que Marcela Jacub quis este relacionamento assim como um etnólogo organiza uma missão entre os bororos ou os zulus, com a finalidade de contar sua experiência e de promover o avanço da ciência. Chego quase a entender que o homem Dominique Strauss-Kahn não pode ser absolutamente equiparado ao indivíduo “perverso” do Hotel Sofitel.
E há Gérard Depardieu, o ator que encarna DSK. Ele sozinho é todo um poema. Nasce em 1948, numa família miserável do centro da França. O pai, violento, fabrica peças de carroçaria de automóveis. O pequeno Gérard é um péssimo aluno. À escola, ele prefere a rua, as brigas de rua. É um pequeno líder. Em Paris, será guarda-costas das prostitutas, e depois aprendiz de estamparia. Torna-se inclusive lutador de boxe.
Influenciado por um amigo, faz cursos de arte dramática e então encontra seu caminho. Trabalha, lê, fascina as pessoas. O cinema o chama. Interpreta centenas de filmes, sem se preocupar em escolher, um verdadeiro ogro. É procurado pelos diretores mais sofisticados, os mais famosos.
Interpreta obras primas, mas não rejeita produções menores. Bertrand Blier, Jean Luc Godard, Truffaut, Bertolucci, Marco Ferreri, todos querem Depardieu. Acumula uma fortuna. É sempre um ogro. Compra restaurantes, uma peixaria, vinhedos, um hotel, uma empresa de petróleo em Cuba, grandes restaurantes no Canadá, na Romênia. Tem uma saúde de ferro (é um Hércules), mas, ao mesmo tempo, frágil. Frequentemente abusa do álcool. Em 2000 coloca quatro pontes de safena. Este homem de comportamento desregrado, incoerente, genial, mostra uma grande curiosidade religiosa. Em 2003, faz uma leitura pública das Confissões de Santo Agostinho, na catedral de Notre Dame de Paris. É um momento sublime.
Há muito tempo homem de esquerda, acaba seduzido por Nicolas Sarkozy. Quando o socialista Hollande chega ao poder, Depardieu não tolera mais ser esmagado pela carga de impostos sobre as grandes, as enormes fortunas. Deixa a França. Inicialmente, faz uma escala na Bélgica, depois muda-se para a Rússia, onde Putin o acolhe como um irmão. Depardieu elogia Putin e o presidente da Chechênia, Ramzan Kadyrov, que não é absolutamente um grande democrata. Torna-se amigo da filha do ditador do Uzbequistão, Gulnara Karimova, e manda construir uma casa numa floresta da Mordóvia, num terreno que Putin lhe oferece. Toda esta atividade não impede que ele continue sua carreira de ator. Trabalha numa série russa, na qual interpreta o papel de Rasputin, um colosso bêbado e delirante, que lhe cai muito bem. Atua também no exterior, em filmes, por exemplo, no lamentável Welcome to New York.
Portanto, está presente no festival de Cannes. Mas, quando os jornalistas o entrevistam sobre o filme, recusa-se a falar sobre a película, e sobre Dominique Strauss-Kahn. Não há dúvida de que está um pouco envergonhado. O jornalista insiste. Depardieu berra. Ameaça quebrar o estúdio e a cara do atrevido. Por sorte, este é uma pessoa prudente. Não é muito forte e trata de bater rapidamente em retirada. Seria um louco e mesmo um suicida se quisesse enfrentar este Falstaff, este Obélix.
Esta é a história de um desordeiro. A queda de Dominique Strauss-Kahn poderia inspirar um filme soberbo, desde que, em lugar de mostrar cenas de sexo ridículas e degradantes, procurasse indagar sobre este momento patético: o homem mais dotado de sua geração, que construiu sua vida como um monumento, o homem que dirige o FMI e que precisa dizer apenas uma palavra para tornar-se o presidente da França, percebe uma jovem, uma camareira, numa suíte de um grande hotel de Nova York. 
O homem hesita e, em seguida, obedece ao “desejo louco”. Sem dúvida, ele está consciente, sem dúvida ele pressente que os dez minutos de exaltação com esta desconhecida podem custar-lhe a última etapa de uma epopeia triunfante, e que, por um gozo efêmero, todo o edifício irá desmoronar no ridículo e desaparecer no nada. E ele cede. Atira-se sobre a jovem. Tal é a força do desejo: o espaço de tempo de um piscar de olhos, e uma vida está destruída. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

Nenhum comentário: