segunda-feira, 21 de abril de 2014

Humanos de gaveta


20 de abril de 2014 | 2h 10
JOSÉ DE SOUZA MARTINS, JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO. , PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE , FILOSOFIA DA USP, AUTOR, ENTRE OUTROS , LIVROS, DE A SOCIABILIDADE DO HOMEM , SIMPLES (CONTEXTO) - O Estado de S.Paulo
De quem é a perna? E o braço? E aquela orelha ali? E aquela mão? E os 40 cadáveres de bebês depositados na morgue do Hospital Universitário Pedro Ernesto, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro? Uma inspeção para localizar o cadáver de um bebê ali nascido em 2012, filho de uma toxicodependente, levou a uma verdadeira jazida de cadáveres de bebês, de fetos e de pedaços de corpos humanos amontoados em gavetas do necrotério. Alguns ali havia quatro anos, 15 bebês não identificados. Um verdadeiro documento antropológico sobre a banalização da morte, contrapartida da banalização da vida.

NOTÍCIAS RELACIONADAS

Evidências dessas banalizações surgem em diferentes pontos do País, de diferentes modos. É o caso do menino Bernardo, em Três Passos, Rio Grande do Sul, que teria sido sedado e morto com uma injeção, supostamente por pessoas que lhe eram muito próximas. Depois, sepultado em cova rasa, na mata e na beira de um rio. A história do menino é uma dolorosa história de descarte, de seres humanos reduzidos a coisa. Recém-nascidos abandonados no lixo pelas próprias mães. Adultos tratados como dejetos. Filhos que matam pais, pais que matam filhos. O crescente número de casos de nulificação absoluta de seres humanos no Brasil choca um pouco nos poucos minutos do noticiário do rádio e da TV. Depois, já é a notícia seguinte, a vítima seguinte, o esquecimento.
Essas ocorrências são sociologicamente preocupantes porque expressam uma problemática degradação da condição humana, a deterioração de valores fundamentais na organização desta sociedade. Há meio século a morte não comportava abandonos nem mesmo nos grandes centros urbanos, onde a secularização crescente suprime as referências de respeito pelo tenebroso transe, o momento da morte, os cuidados rituais com o morto. Em muitas regiões do interior do Brasil, a atitude em relação à morte e ao corpo do morto ainda está referida às alegorias barrocas que dão sentido ao morrer e confortam os vivos, tanto no sentido de pertencimento que enunciam e na responsabilidade dos vivos pelos mortos quanto pela certeza de que os mortos partem ficando na memória e nos sentimentos. Os cemitérios ainda estão povoados de túmulos em que a palavra "saudade" reafirma a morte como perda, não como descarte.
O caso dos bebês do Pedro Ernesto fala de mortos abandonados, de crianças sem infância, mas também sem morte. Porque em nossa tradição cultural a morte não é apenas e tão somente a cessação dos batimentos cardíacos e o fim dos sinais vitais. Em nossa tradição, o morrer começa afetiva e ritualmente muito antes da morte, nas providências de reconhecimento do fim próximo de alguém que é membro do todo, quando a certeza de pertencimento se afirma, quando o grupo de referência se revitaliza numa provisória ruptura do cotidiano. Entre nós, a morte não é a cessação, é a transformação. A morte não é do morto. Existe entre nós a expressão "dono do morto", nome daqueles que decidem por ele os ritos da passagem, o funeral e a própria constituição de sua memória, a figuração simbólica da natureza imperecível e transcendente de cada um.
A privação de ritos é, em nossa cultura funerária, a máxima condenação que se pode impor a alguém. O Brasil tem hoje mais de um linchamento por dia. No caso dos que morrem nesses atos violentos, a vítima é sempre privada de qualquer assistência de natureza religiosa ou ritual. Em São Paulo, há alguns anos, na região da Sé, um senhor que tentou acender uma vela para colocar na mão de um linchado quase foi linchado também. Essa morte de privações rituais é fundamentalmente uma condenação à perdição eterna das trevas, a incapacitação do morto para o retorno da ressurreição no dia do Juízo. Isso não é necessariamente religião: é componente de uma cultura popular. É cultura que alcança até mesmo quem não tem religião. Basta observar como os caixões de defunto são retirados dos recintos do velório: sempre com os pés para fora, o contrário da posição de nascimento, um ritual de expulsão do morto do convívio dos vivos. Algo que nos vem dos gregos. No sertão de Santa Catarina conheci uma senhora que me explicava a importância da posição de saída do morto de casa não só com os pés virados para fora, mas virados para a direção da correnteza do rio mais próximo. Resíduo do mito de Caronte que transportava os mortos, pelos Rios Estiges e Aqueronte, para o Hades, as profundezas.
Os bebês e os pedaços de gente encontrados no hospital são seres que foram privados de um direito nessa cultura contido, o direito à integridade de suas pessoas, como corpo e como alma, como unidade de matéria e espírito. Bebês, sobretudo, eram, nos cemitérios brasileiros, até não faz muito tempo, sepultados nas chamadas quadras dos anjos pequenos, para que não fossem contaminados pela promiscuidade daqueles que haviam conhecido o pecado. Nas gavetas do necrotério do hospital foram encontrados mais do que cadáveres abandonados - foi encontrado o espírito moribundo do nosso ser coletivo.
Divulgada no domingo passado, uma investigação do Juizado da Infância e da Juventude descobriu 40 corpos de recém-nascidos "esquecidos" no necrotério do Hospital Universitário Pedro Ernesto, no Rio. Entre os abandonados, 15 não tinham nenhuma identificação.

Leia em paz


Pouca experiências de leitura são tão impactantes como ler García Márquez pela primeira vez

19 de abril de 2014 | 15h 37

Juan Pablo Villalobos
"Morreu hoje o escritor favorito de quem não gosta de ler", eu escutei na quinta-feira à noite numa estação de rádio, sobre a morte de Gabriel García Márquez. Quem falava era um escritor mexicano jovem, e, embora a frase pareça escandalosa e provocadora, ela resume de maneira fidedigna uma percepção muito alastrada no meio literário hispânico.
1927-2014. Esnobado por latino-americanos que não querem parecer latino-americanos - Rupak de Chowdhuri/Reuters
Rupak de Chowdhuri/Reuters
1927-2014. Esnobado por latino-americanos que não querem parecer latino-americanos
Li García Márquez pela primeira vez em 1987, quando tinha 14 anos. Naquela época, meu provedor de livros, emprestados, era meu tio Carlos, que tinha uma pequena biblioteca na qual se revolvia toda sorte de exemplares sem nenhum critério. Era o que muitos anos depois eu aprenderia a chamar de "a biblioteca de um leitor não especializado", e o que outras pessoas chamariam, eu inclusive, em épocas mais beligerantes de "a biblioteca de uma pessoa que não gosta de ler". Mas meu tio lia, e naquela tarde, 27 anos atrás, ele depositou em minhas mãos, com o acerto digno de leitor sensível e inteligente, um livro fininho e ligeiro: A Incrível e Triste História de Cândida Erêndira e sua Avó Desalmada.
Quando naquela noite eu me estirei na cama para ler o livro, fiquei deslumbrado: jamais havia lido algo assim. E mais: eu nem sequer sabia que se podia fazer aquilo com as palavras. Deve haver poucas experiências de leitura tão impactantes como ler García Márquez pela primeira vez. Depois não é igual, e a pessoa desejaria que lhe apagassem a memória para tornar a começar. Fui levando para casa, um a um, todos o exemplares de García Márquez de meu tio e estou certo de que aquelas leituras foram, inconscientemente, uma das razões porque, anos mais tarde, me empenharia em ser escritor.
Quando, em 1999, com 26 anos, voltei à universidade para estudar uma segunda carreira, convencido até as raias do fanatismo de que ia ser escritor, eu já havia atravessado ao menos outras duas etapas de leitura. A primeira lendo tudo que havia na biblioteca de meu pai, uma "biblioteca de médico", e a segunda, seguindo meus próprios instintos, isto é: comprando meus livros. Durante esse tempo, havia lido alguns dos livros novos de García Márquez, mas alguma coisa havia se passado na "minha relação" com sua literatura: eu havia lido muito, havia encontrado meus heróis literários, e a perda de minha inocência como leitor havia me deixado cínico. Eu tinha me distanciado dele. Tinha agora Rulfo e Borges, Onetti e Arlt, Puig e Felisberto Hernández.
Meus companheiros de faculdade de letras hispânicas também tinham seus favoritos e entre eles não figurava jamais García Márquez. Fazíamos um muxoxo de desprezo quando alguém o mencionava, zombávamos de quem ousasse defendê-lo e dizíamos que o havíamos lido havia muito tempo, quando éramos meninos e ingênuos. García Márquez tinha se transformado numa leitura de iniciação (o mesmo dizíamos de Cortázar). Como se não bastasse, as aulas da faculdade estavam politizadas e a proximidade de García Márquez com Fidel Castro colocava outro grande empecilho a sua popularidade. Convém esclarecer que a dialética literária hispânica não era um enfrentamento entre García Márquez e Vargas Llosa no qual se tivesse que tomar partido por um ou por outro, e isso é fácil de demonstrar: também desprezávamos Vargas Llosa, embora A Cidade e os Cachorros nos encantasse.
Passaram-se muitos anos e fui queimando etapas de leitura, sempre longe de García Márquez, cada vez mais distante, até que, em 2010, publiquei meu primeiro romance e ingressei na chamada República das Letras. Como era de se esperar, meus colegas, a geração de escritores nascidos em fins dos anos 1960 e princípios dos 70, também renegava os tributos, a influência e, sobretudo, não gostava do efeito da obra de García Márquez na maneira como era recebida a literatura hispânica no âmbito internacional. Nesse caso, além do típico desdém para com um autor que vendia muito (baseado na ideia de que os autores geniais não vendem), funcionava uma rejeição estética de tudo que cheirasse a realismo mágico. Com o passar do tempo, o realismo mágico havia acabado por parecer uma mistura de subdesenvolvimento econômico com exotismo, duas coisas das quais era preciso fugir como da peste. Se na faculdade de letras era preciso militar contra García Márquez para parecer uma pessoa madura e um leitor refinado, na República das Letras era preciso fazê-lo para ser um autor moderno (ou, melhor, pós-moderno), cosmopolita, atual. Aqui operava também essa pulsão tão latino-americana que nos leva a não querermos parecer latino-americanos. Poucos reavaliavam, e reconheciam, que se nós autores hispânicos temos a possibilidade de ser amplamente traduzidos, isso se deve aos escritores do boom, em geral, e a García Márquez, em especial.
E aí, na quinta-feira, García Márquez morreu. Agora, certamente poderemos lê-lo em paz, sem preconceitos, sem que o ruído do mundo nos entorpeça o entendimento e nos desvirtue o prazer de sua leitura. Talvez agora possamos reiniciar nossa memória: talvez tenha chegado a hora de sua prosa luminosa nos fascinar novamente. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK
JUAN PABLO VILLALOBOS É AUTOR DE FESTA NO COVIL SE VIVÊSSEMOS EM UM LUGAR NORMAL (COMPANHIA DAS LETRAS). SEU PRIMEIRO ROMANCE BRASILEIRO, NO ESTILO DE JALISCO, SERÁ PUBLICADO DURANTE A COPA (BATEIA/REALEJO)

Petróleo movediço, por Ildo Sauer, no Aliás (definitivo)

Pasadena abre caminho para se investigar sumidouros da riqueza pública

19 de abril de 2014 | 14h 54

Ildo Sauer
As disputas que envolvem a Petrobrás transcendem os argumentos e motivações até agora enunciados. Estão vinculadas ao papel da apropriação social da natureza, particularmente da energia, para garantir a existência humana. Recursos com caraterísticas especiais, como o petróleo, têm permitido incrementar de forma extraordinária a produtividade do trabalho socialmente incorporado no processo de produção e, dessa forma, gerar excedente econômico. A partir do início do século passado o petróleo ocupou espaço central nas relações geopolíticas e nos conflitos, tendo como protagonistas as Sete Irmãs (as grandes do petróleo) e a disputa pelo acesso e controle dos recursos. A disputa do excedente está no foco das guerras, disputas, traições, invasões, golpes (Irã, Iraque, Líbia, etc.).
Graça. Na esteira da refinaria debates e CPI para tratar de problemas de vulto maior - Dida Sampaio/Estadão
Dida Sampaio/Estadão
Graça. Na esteira da refinaria debates e CPI para tratar de problemas de vulto maior
No pós-guerra, com a descolonização, os países centrais abriram mão dos territórios ocupados, mas não do controle sobre o petróleo e de outros recursos essenciais para a acumulação. A criação da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), em 1960, quando as petrolíferas internacionais ainda controlavam mais de 80% das reservas, abriu a disputa entre os países detentores dos recursos e as empresas e governos centrais que controlam a produção e consumo, e assim, o excedente. Os choques de 1973 e 1979 foram as primeiras tentativas, frustradas, dos países da Opep de se apropriarem de fatia da renda petrolífera. Esse quadro se alterou a partir de 2005 pela articulação entre a Opep e a Rússia, que já controlavam mais de 90% das reservas de petróleo. Lograram impor o preço acima de US$ 100 por barril, que é o custo de produção de líquidos com carvão, a única fonte alternativa com potencial de atender a toda a demanda.
Hoje os custos diretos de produção do petróleo, apenas capital e trabalho, sem transferências, impostos, taxas, situam-se entre US$ 1 (Arábia Saudita) e US$ 15 (pré-sal no Brasil e xisto, um petróleo não convencional, nos Estados Unidos) por barril. Com preços acima de US$ 100, emerge a renda petroleira de cerca de US$ 2,5 trilhões a US$ 3 trilhões, para uma produção bruta mundial de US$ 80 trilhões. Essa é a raiz da feroz disputa geopolítica. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE, formada por 34 países para promover a democracia e o livre mercado) e a China buscam, via difusão dos recursos não convencionais (xisto), biocombustíveis, aceleração de novas fronteiras como pré-sal, Golfo do México e África, promover uma oferta capaz de afetar a coesão da Opep e Rússia para manter o equilíbrio entre produção e demanda e, com isso, os preços elevados.
Nesse contexto, a Petrobrás, com uma trajetória cinquentenária de avanços tecnológicos e com uma nova visão estratégica implantada a partir de 2003 (quando valia US$ 15 bilhões), ascendeu aos holofotes globais. Passou a priorizar a pesquisa e exploração no País e no exterior, a promover o uso do gás natural como substituto local do petróleo e a promover o desenvolvimento de fontes renováveis: biocombustíveis, eólica, solar. A descoberta do pré-sal foi resultado dessa estratégia, assim como a trajetória de valorização, superior à das demais petrolíferas, no mesmo ambiente de preços. Em fim de 2007, valia mais de US$ 250 bilhões. Os planos de investimento acompanharam a expansão, superando dezenas de bilhões por ano. Com os altos preços do petróleo, a renda petroleira, minúscula até 2005, aproximou-se dos US$ 70 bilhões anuais, sendo desperdiçada, sem objetivo estratégico, em royalties, participações, lucros e gastos correntes. A renda petroleira poderá chegar a cifras monumentais, dependendo da confirmação das reservas do pré-sal, de US$ 200 bilhões a US$ 500 bilhões anuais, capazes de propiciar transformações radicais nas condições de vida do País. Porém, a exuberância de recursos, contratos e escolhas enseja desafios e armadilhas.
A Petrobrás, mais que antes, tornou-se objeto de interesse agudo da base política e econômica de sustentação do governo, dos acionistas e dos consumidores. As antigas práticas dos governos de coalizão de conceder franquias a grupos políticos nomeando despachantes de interesse em estatais e órgãos públicos avançam. Ocupando os cargos, privilegiam as empresas e empresários simpáticos aos partidos e políticos patrocinadores em detrimento dos legítimos interesses e obrigações, com abandono de projetos essenciais e implantação de outros inadequados. A democracia, que prometia o resgate da dívida social, metamorfoseia-se com características de cleptocracia. Acirra-se a disputa pelo butim. Os acionistas buscam a valorização das ações, os consumidores, especialmente os de insumos industriais e do transporte individual, querem preços mais baixos. O governo atropela a lei para controlar o índice inflacionário, impondo preços subsidiados. O povo, pelo artigo 20 da Constituição é proprietário do petróleo e dos potenciais hidráulicos, e pelo artigo sexto tem assegurados direitos sociais à educação, saúde, moradia e outros, mas continua excluído.
Surgem, na esteira de Pasadena, investigações, debates e a CPI para tratar de problemas de vulto muito maior, sumidouros de riqueza pública. A Petrobrás precisa explicar os custos fora do padrão em Abreu e Lima, no Comperj (Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro), no gasoduto Urucu-Manaus, SBM e assemelhadas. Também os processos e valores obscuros da venda dos campos de petróleo, já em produção, na África e no Golfo do México, da venda de ativos e de reservas no Brasil. Há ainda o danoso leilão de Libra e as tergiversações sobre as responsabilidades do Conselho de Administração e dos dirigentes. Se as investigações e debates elucidarem os conflitos e abrirem espaço para o povo se assenhorar do petróleo e da Petrobrás, para construir sua autonomia e resgatar seus direitos, com o mínimo da democracia, o País terá avançado.
ILDO SAUER, Ph.D. PELO M.I.T, PROFESSOR TITULAR DO INSTITUTO DE ENERGIA E AMBIENTE DA USP, FOI DIRETOR DA PETROBRÁS DE 2003 A 2007