segunda-feira, 21 de abril de 2014

Leia em paz


Pouca experiências de leitura são tão impactantes como ler García Márquez pela primeira vez

19 de abril de 2014 | 15h 37

Juan Pablo Villalobos
"Morreu hoje o escritor favorito de quem não gosta de ler", eu escutei na quinta-feira à noite numa estação de rádio, sobre a morte de Gabriel García Márquez. Quem falava era um escritor mexicano jovem, e, embora a frase pareça escandalosa e provocadora, ela resume de maneira fidedigna uma percepção muito alastrada no meio literário hispânico.
1927-2014. Esnobado por latino-americanos que não querem parecer latino-americanos - Rupak de Chowdhuri/Reuters
Rupak de Chowdhuri/Reuters
1927-2014. Esnobado por latino-americanos que não querem parecer latino-americanos
Li García Márquez pela primeira vez em 1987, quando tinha 14 anos. Naquela época, meu provedor de livros, emprestados, era meu tio Carlos, que tinha uma pequena biblioteca na qual se revolvia toda sorte de exemplares sem nenhum critério. Era o que muitos anos depois eu aprenderia a chamar de "a biblioteca de um leitor não especializado", e o que outras pessoas chamariam, eu inclusive, em épocas mais beligerantes de "a biblioteca de uma pessoa que não gosta de ler". Mas meu tio lia, e naquela tarde, 27 anos atrás, ele depositou em minhas mãos, com o acerto digno de leitor sensível e inteligente, um livro fininho e ligeiro: A Incrível e Triste História de Cândida Erêndira e sua Avó Desalmada.
Quando naquela noite eu me estirei na cama para ler o livro, fiquei deslumbrado: jamais havia lido algo assim. E mais: eu nem sequer sabia que se podia fazer aquilo com as palavras. Deve haver poucas experiências de leitura tão impactantes como ler García Márquez pela primeira vez. Depois não é igual, e a pessoa desejaria que lhe apagassem a memória para tornar a começar. Fui levando para casa, um a um, todos o exemplares de García Márquez de meu tio e estou certo de que aquelas leituras foram, inconscientemente, uma das razões porque, anos mais tarde, me empenharia em ser escritor.
Quando, em 1999, com 26 anos, voltei à universidade para estudar uma segunda carreira, convencido até as raias do fanatismo de que ia ser escritor, eu já havia atravessado ao menos outras duas etapas de leitura. A primeira lendo tudo que havia na biblioteca de meu pai, uma "biblioteca de médico", e a segunda, seguindo meus próprios instintos, isto é: comprando meus livros. Durante esse tempo, havia lido alguns dos livros novos de García Márquez, mas alguma coisa havia se passado na "minha relação" com sua literatura: eu havia lido muito, havia encontrado meus heróis literários, e a perda de minha inocência como leitor havia me deixado cínico. Eu tinha me distanciado dele. Tinha agora Rulfo e Borges, Onetti e Arlt, Puig e Felisberto Hernández.
Meus companheiros de faculdade de letras hispânicas também tinham seus favoritos e entre eles não figurava jamais García Márquez. Fazíamos um muxoxo de desprezo quando alguém o mencionava, zombávamos de quem ousasse defendê-lo e dizíamos que o havíamos lido havia muito tempo, quando éramos meninos e ingênuos. García Márquez tinha se transformado numa leitura de iniciação (o mesmo dizíamos de Cortázar). Como se não bastasse, as aulas da faculdade estavam politizadas e a proximidade de García Márquez com Fidel Castro colocava outro grande empecilho a sua popularidade. Convém esclarecer que a dialética literária hispânica não era um enfrentamento entre García Márquez e Vargas Llosa no qual se tivesse que tomar partido por um ou por outro, e isso é fácil de demonstrar: também desprezávamos Vargas Llosa, embora A Cidade e os Cachorros nos encantasse.
Passaram-se muitos anos e fui queimando etapas de leitura, sempre longe de García Márquez, cada vez mais distante, até que, em 2010, publiquei meu primeiro romance e ingressei na chamada República das Letras. Como era de se esperar, meus colegas, a geração de escritores nascidos em fins dos anos 1960 e princípios dos 70, também renegava os tributos, a influência e, sobretudo, não gostava do efeito da obra de García Márquez na maneira como era recebida a literatura hispânica no âmbito internacional. Nesse caso, além do típico desdém para com um autor que vendia muito (baseado na ideia de que os autores geniais não vendem), funcionava uma rejeição estética de tudo que cheirasse a realismo mágico. Com o passar do tempo, o realismo mágico havia acabado por parecer uma mistura de subdesenvolvimento econômico com exotismo, duas coisas das quais era preciso fugir como da peste. Se na faculdade de letras era preciso militar contra García Márquez para parecer uma pessoa madura e um leitor refinado, na República das Letras era preciso fazê-lo para ser um autor moderno (ou, melhor, pós-moderno), cosmopolita, atual. Aqui operava também essa pulsão tão latino-americana que nos leva a não querermos parecer latino-americanos. Poucos reavaliavam, e reconheciam, que se nós autores hispânicos temos a possibilidade de ser amplamente traduzidos, isso se deve aos escritores do boom, em geral, e a García Márquez, em especial.
E aí, na quinta-feira, García Márquez morreu. Agora, certamente poderemos lê-lo em paz, sem preconceitos, sem que o ruído do mundo nos entorpeça o entendimento e nos desvirtue o prazer de sua leitura. Talvez agora possamos reiniciar nossa memória: talvez tenha chegado a hora de sua prosa luminosa nos fascinar novamente. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK
JUAN PABLO VILLALOBOS É AUTOR DE FESTA NO COVIL SE VIVÊSSEMOS EM UM LUGAR NORMAL (COMPANHIA DAS LETRAS). SEU PRIMEIRO ROMANCE BRASILEIRO, NO ESTILO DE JALISCO, SERÁ PUBLICADO DURANTE A COPA (BATEIA/REALEJO)

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