segunda-feira, 24 de setembro de 2012

"Enquanto não houver censura, teremos essa violência"


A imprensa de forma geral e a televisão, especialmente, induzem à violência e levam a população a acreditar em uma falsa realidade, como acontece com o caso do "mensalão". A corajosa opinião é do jurista Celso Antonio Bandeira de Mello em entrevista à ConJur. “Enquanto existir televisão e não for permitida a censura, nós vamos ter a continuidade dessa violência e as crianças vão assistir violência”, disse o advogado, um tanto constrangido e receoso pelo impacto da declaração que dá, com uma ressalva: ele defende a censura de costumes, não a ideológica. O respiro, afirma, é a internet, que permite encontrar diversas abordagens sobre o mesmo assunto. “Não preciso ficar escravizado pelo que diz a chamada 'grande imprensa'”, diz.
Dita por qualquer outro advogado, a frase poderia indicar contradição ao vir de alguém que tem por dever de ofício defender a liberdade. Mas é conhecida a aversão do célebre professor pelos principais veículos de comunicação do país. É para a imprensa que ele aponta o dedo ao falar sobre o mensalão. Sua interpretação é que houve um conluio dos órgaos da grande imprensa para derrubar o então presidente Lula. É a mesma culpada, segundo ele, da influência deletéria sobre o Supremo Tribunal Federal. “Acho muito ruim decidir de acordo com a imprensa”.
Bandeira de Mello já deixou sua marca no Supremo. A ele é atribuída a indicação do sergipano Carlos Ayres Britto para a vaga de ministro aberta com a aposentadoria do também nordestino Ilmar Galvão. Sobre seu papel na sucessão, ele faz mistério, mas não esconde a amizade de 40 anos com o atual presidente do STF, deixando transparecer que o amigo chegou à mais alta corte do país por sua indicação e pela do professor Fabio Konder Comparato, da Faculdade de Direito da  USP, outro conhecido acadêmico de esquerda.
Ácido, o professor há quase quatro décadas na PUC-SP atira contra a formação dos advogados, que em sua avaliação sofrem com a formação deficiente, fruto da expansão desenfreada dos cursos de Direito. “Quando se incorpora uma grande multidão, perde-se em sofisticação.”
Leia a entrevista:
ConJur — Como o senhor vê o processo do mensalão?
Celso Antônio Bandeira de Mello − Para ser bem sincero, eu nem sei se o mensalão existe. Porque houve evidentemente um conluio da imprensa para tentar derrubar o presidente Lula na época. Portanto, é possível que o mensalão seja em parte uma criação da imprensa. Eu não estou dizendo que é, mas não posso excluir que não seja.
ConJur − Como o senhor espera que o Supremo vá se portar?
Bandeira de Mello − Eu não tenho muita esperança de que seja uma decisão estritamente técnica. Mas posso me enganar, às vezes a gente acha que o Supremo vai decidir politicamente e ele vai e decide tecnicamente.
ConJur − O ministro Eros Grau disse uma vez que o Supremo decidia muitos casos com base no princípio da razoabilidade e não com base na Constituição. O que o senhor acha disso?
Bandeira de Mello − Pode até ser, mas eu acho que muitas vezes quem decide é a opinião pública.
ConJur – E o que o senhor acha disso?
Bandeira de Mello – Péssimo. A opinião pública é a opinião da imprensa, não existe opinião pública. Acho muito ruim decidir de acordo com a imprensa.
ConJur – E como o senhor avalia a imprensa?
Bandeira de Mello − A grande imprensa é o porta-voz do pensamento das classes conservadoras. E o domesticador do pensamento das classes dominadas. As pessoas costumam encarar os meios de comunicação como entidades e empresas cujo objetivo é informar as pessoas. Mas esquecem que são empresas, que elas estão aí para ganhar dinheiro. Graças a Deus vivemos numa época em que a internet nos proporciona a possibilidade de abeberarmos nos meios mais variados. Eu mesmo tenho uma relação com uns quarenta sites onde posso encontrar uma abordagem dos acontecimentos do mundo ou uma avaliação deles por olhos muito diversos; que vai da extrema esquerda até a extrema direita. Não preciso ficar escravizado pelo que diz a chamada grande imprensa. Você pega a Folha de S.Paulo e é inacreditável. É muito irresponsável. Eles dizem o que querem, é por isso que eu ponho muita responsabilidade no judiciário.
ConJur – O que o Judiciário deveria fazer?
Bandeira de Mello − Quando as pessoas movem ações contra eles, contra os absurdos que eles fazem, as indenizações são ridículas. Não adianta você condenar uma Folha, por exemplo, ou umaVeja a pagar R$ 30 mil, R$ 50 mil, R$ 100 mil. Isso não é dinheiro. Tem que condenar em R$ 2 milhões, R$ 3 milhões. Aí, sim, eles iriam aprender. Do contrário eles fazem o que querem. Lembra que acabaram com a vida de várias pessoas com o caso Escola Base? Que nível de responsabilidade é esse que você acaba com a dignidade das pessoas, com a vida das pessoas, com a saúde das pessoas e fica por isso mesmo? Essa é nossa imprensa.
ConJur − O senhor é a favor da diminuição da maioridade penal?
Celso Antônio Bandeira de Mello −
 Não consigo ser porque a vida inteira eu fui contra, mas hoje eu balanço. Eu era firme como uma rocha, achava um absurdo, achava que era necessário dar boas condições de vida para as crianças. Claro que devemos fazer isso, mas enquanto existir televisão e não for permitida a censura, nós vamos ter a continuidade dessa violência e as crianças vão assistir violência.
ConJur − O senhor é a favor da censura na TV?
Bandeira de Mello − Sou absolutamente a favor. Sou contra a censura ideológica. Essa eu sou visceralmente contra. Mas a censura de costumes eu sou a favor.
ConJur − Como seria essa censura de costumes?
Bandeira de Mello − Todo mundo é [a favor], só que não tem coragem de dizer. Você é a favor de passar filmes pedófilos na televisão? Eu não sou. Mas se passasse você se sentiria como? Você é a favor de censurar. As pessoas não têm coragem de dizer, porque depois do golpe virou palavrão ser a favor da censura. Você é a favor que passe um filme que pregue o racismo, não importa que tipo de racismo, nem contra que povo? Todo mundo é a favor da censura, mas as pessoas não têm coragem de dizer por que não é politicamente correto.
ConJur − E a quem caberia exercer essa censura?
Bandeira de Mello − Não precisa ser de funcionário público. Um corpo da sociedade escolhido por organismos razoavelmente confiáveis, como a OAB e certas entidades de benemerência.
ConJur – Mas a censura não é vedada pelas leis do país?
Bandeira de Mello − Você diria que é proibido. Eu diria que não é tão proibido assim. Pegue a Constituição e veja o que ela diz a respeito da defesa da criança, inclusive na televisão. Portanto, seria perfeitamente possível, mas a palavra ficou amaldiçoada.
ConJur – Por que deveria haver censura?
Bandeira de Mello −  A imprensa escolhe o que noticia e usa uma merda de argumento que diz o seguinte: “Nós não somos responsáveis por essas coisas, isso existe, são os outros que fazem isso. Só estamos contando, nada mais.” Se fosse por isso, a humanidade não teria dado um passo, porque a humanidade adorava ver os cristãos sendo devorados pelos animais ou os gladiadores se matando. A humanidade adorava ver as supostas feiticeiras sendo queimadas. A humanidade sempre gostou de coisas de baixo nível e vis. Dizer que tem gente que gosta de assistir esses programas ordinários não é argumento válido. Você diz esse mesmo argumento para passar e acabou. A imprensa poderia dar notícias de coisas maravilhosas. Existe muita gente boa, que fazem coisas excelentes. Não. Ela noticia só o que há de pior, e você fica intoxicado por aquilo no último grau.
ConJur − O senhor acha que a imprensa deveria ser obrigada a noticiar outras coisas?
Bandeira de Mello − Acho que não dá para tolher a liberdade das pessoas nesse nível. Deveria haver uma regulamentação da imprensa importante.
ConJur − Em todos os meios: impresso, eletrônico?
Bandeira de Mello − Todos. De maneira que os que trabalham, os empregados, deveriam ter uma participação obrigatória e importante. O dono do jornal, da televisão tem direito ao dinheiro daquele lugar, mas não às opiniões. Porque do contrário não há mais a liberdade de pensamento. Há liberdade de meia dúzia de caras. O pensamento é dos que produzem o jornal, é dos jornalistas. Não é um problema de censura, é um problema de não entregar o controle a uma meia dúzia de famílias. Abrir para a sociedade, abrir para os que trabalham no jornal, ou na rádio ou na televisão, para que eles possam expressar sua opinião. E haver, sim, um controle ético de moralidade e impedir certas indignidades.
ConJur − Algum exemplo de uma indignidade cometida pela imprensa?
Bandeira de Mello − Mostrar crianças sendo torturadas ou mostrar corpos dilacerados. Isso incentiva [a violência], sim. O ser humano não é bonzinho. Você não tem que incentivar a maldade. Porque os EUA são desse jeito? Eles exportam para nós tudo o que há de pior. A boa imagem dos EUA no mundo quem dá é o cinema. Porque o cinema deles tem coisas muito humanas, muito boas também. Para cá vem o lixo, o povo gosta do lixo.
ConJur − Como o senhor vê as relações entre os homens?Bandeira de Mello − O fato de ser racional não faz o homem diferente dos animais que vivem em manada, que têm um cabeça que guia e os outros vão atrás. Na sociedade humana é igual, há os que pensam, e eles são poucos; os outros parecem que pensam, mas não pensam, repetem. Eles não têm coragem de pensar. E se cada uma resolvesse pensar, já imaginou o caos que viria a ser? O mundo tem que ser assim, alguns pensam e os outros acompanham o pensamento. Nós vivemos um período em que é a escória que pensa, que dirige. Mas claro que sempre existem seres notáveis que lutam contra a escória e dizem o que deve ser feito. São seres humanos maravilhosos.
ConJur – Como o senhor vê a advocacia hoje?
Bandeira de Mello − Na hora que se incorporou uma grande multidão é evidente que você vai perdendo sofisticação. Na verdade são dois raciocínios: você pode dizer que da quantidade sai a qualidade, o que também é verdade. Ao mesmo tempo em que você baixa [a qualidade] de certo lado, você propicia o surgimento de expoentes que não seriam vistos se não tivesse sido ampliada em muito a oportunidade.
ConJur − E a OAB?
Bandeira de Mello − Eu não sou encantado com a atual gestão.
ConJur − Algum motivo?
Bandeira de Mello – 
Talvez seja injusto dizer isso. Se for comparar com homens como Seabra Fagundes, que já foi presidente, com Raymundo Faoro, fica difícil, certo? Foram homens notáveis. Foram pessoas que tiveram oportunidade de liderar porque o país passou por momentos difíceis e precisava de homens extraordinários. Agora vivemos momentos de normalidade. Talvez eu não esteja sendo justo com o nosso atual presidente, porque precisa ver o momento histórico em que ele está exercendo a presidência.
ConJur − A OAB pode ser considerada uma autarquia?
Celso Antônio Bandeira de Mello −
 É uma autarquia.
ConJur − Por quê?
Bandeira de Mello − 
É uma autarquia especial, que deve ter muita liberdade e é tratada de maneira muito diferente de qualquer outra autarquia. Veja que em um dos poderes do Estado, o Judiciário, obrigatoriamente membros da OAB fazem parte da banca examinadora. A OAB tem legitimidade ativa para ações diretas de inconstitucionalidade. A OAB é considerada por lei um serviço público. Entre as finalidades dela está defender a ordem democrática. A OAB é uma autarquia muito especial. Tem que ter muita independência para cumprir muito bem o papel dela.
ConJur − E em relação ao Supremo? Como o senhor vê a atuação da mais alta corte do país?
Bandeira de Mello 
- Nosso atual Supremo é melhor que o anterior. Não que eu não veja grandes problemas no Supremo porque em tudo isso há um erro: o fato de os ministros serem vitalícios.
ConJur − Isso é um problema?
Bandeira de Mello −
 Grave. Uma vez eu ouvi de um membro do supremo a seguinte frase: “Professor, tantas vezes nos chamam de excelência que a gente acaba pensando que é excelência mesmo”. Oito anos de mandato seria mais que o suficiente. O supremo devia ter um mínimo de [ministros] provenientes da magistratura de carreira. E não tem praticamente ninguém. Agora cresceu com a escolha dessa senhora [Rosa Weber], que é de carreira. Mas na verdade, tem muita gente do Ministério Público, da Advocacia. Tem que ter, mas não pode ser maioria. Porque diga−se o que quiser dos juízes, eles são treinados desde o comecinho para pelo menos tentar ser imparcial. Você não precisa ter simpatia pelos votos daquele juiz, mas você reconhece que ele é sério, dedicado, esforçado, conhece aquilo que está falando, e você respeita. Há juízes no Supremo que são absolutamente independentes, assim como há uns que você diz: que lástima, como é que está lá?
ConJur − O senhor poderia indicar quem são?
Bandeira de Mello − Claro que não.
ConJur – O STF legisla?
Bandeira de Mello −
 Essa é uma maneira reacionária de encarar. Ele [STF] não tem posição de legislador nenhum. Agora se o legislador não faz a lei e o STF tem que decidir, ele vai fazer o que? Tem que decidir seguindo os princípios da Constituição e as normas constitucionais, é o dever. Se cabe alguma crítica a isso é ao Legislativo. Não sei qual é o pior dos Poderes da República, mas eu penso que é o Legislativo. O Legislativo é uma lástima pela péssima qualidade dos seus membros, sem prejudicar figuras notáveis lá dentro.
ConJur − Recentemente o seu nome foi citado em algumas reportagens colocando-o como intermediário de um encontro entre o ex-presidente Lula e o ministro Ayres Britto.
Bandeira de Mello −
 Isso é coisa típica da imprensa. O Lula nunca foi íntimo meu, nunca foi. Em segundo lugar, se alguém pensasse que eu iria fazer a cabeça do ministro Ayres Britto é porque é tonto. O ministro Ayres Britto é um homem absolutamente independente, inteligente e muito culto. Vê lá se eu conseguiria fazer a cabeça do Carlos? E vê lá se eu ousaria tentar fazer a cabeça do Carlos? Se você respeita um amigo, você tem que saber qual é o seu limite. Você não pode falar para o cara fazer isso ou aquilo. No entanto, a Folha de S.Paulo disse que eu fui contratado para aliciar o ministro Carlos Britto no caso daquele italiano...
ConJur − Cesare Battisti?
Bandeira de Mello −
 Cesare Battisti. [A Folha] Teve a petulância de dizer isso de mim. Eu diria: que lixo. No meu pensamento eu diria: que merda de jornal é esse que duas mulherezinhas escrevem isso de mim? Como se eu fosse capaz de fazer isso. Ainda disse que eu fui contratado. Eu não fui contratado, eu dei gratuitamente um parecer. Gratuitamente. O advogado, que era o Barroso, me telefonou e falou: “Celso, você daria um parecer sobre um caso, você se sente à vontade, você está de acordo com a tese? Só que eu não vou ter dinheiro para te pagar por ele”. Falei que não era caso de dinheiro. Devia ser visto como consciência cívica. Esse homem na Itália corria um risco terrível, se levassem esse homem para lá. Ele foi julgado à revelia praticamente. Aquele julgamento foi uma vergonha, foi na base da delação premiada que os outros caras o acusaram. No tempo do golpe, quando os militantes eram torturados eles procuravam apontar para alguém que estava fora do país, para não correr risco. Ele [Battisti] estava fora do país e disseram que foi ele que atirou. Ele estava na França naquela época, e os caras disseram que foi ele.
ConJur − Como o senhor viu a decisão do Supremo no caso?
Bandeira de Mello −
 Não terminou tão bem quanto eu gostaria. Mas acabou reconhecendo que é o presidente quem deveria decidir, que era a decisão correta. E justamente o ministro Carlos Britto, que eles disseram que eu tinha sido contratado para aliciar, foi o que votou contra.
ConJur − Vocês são amigos ainda hoje?
Bandeira de Mello –
 Muito. Nós somos amicíssimos, não só amigos. O Carlos é meu amigo há mais de quarenta anos, e foi meu aluno também.
ConJur − O senhor foi consultado quando ele foi indicado ao Supremo?
Bandeira de Mello −
 Ele mesmo diz a quem quiser ouvir que fui eu quem indicou ele. Fomos duas pessoas, Fabio [Konder] Comparato e eu. Nós fomos falar com o presidente da República na época.
ConJur – Em relação ao direito administrativo, que é a sua área, como que o senhor vê a Lei de Licitações hoje?
Bandeira de Mello − 
Ela está sendo dilacerada. Eles juntam um pedaço daqui com um pedaço de lá. Mas ela foi um grande progresso. A Lei de Licitações não é tão ruim quanto dizem. Ruim é essa lei feita para contratos de emergência para a Copa. Aliás, eu sou absolutamente contra a Copa no Brasil e a Olimpíada.
ConJur – O senhor se refere ao RDC, o Regime Diferenciado de Contratações?
Bandeira de Mello −
 Isso.
ConJur − Ele foi estendido recentemente para as obras do PAC. Como o senhor vê isso?
Bandeira de Mello −
 Acho um absurdo. É duro eu dizer isso porque a eleição da Dilma foi algo muito importante. Estou satisfeito com ela. Mas no governo dela foram feitas coisas muito... Por exemplo, as tais Parcerias Público Privadas. Isso no governo Lula é uma catástrofe. É um aprofundamento das privatizações. E essas medidas da Dilma são aprofundamentos de desmandos típicos do governo Fernando Henrique. É necessário dinheiro para coisas mais importantes: saúde e educação acima de tudo.
ConJur − O senhor então não acha necessário rever a lei de licitação?
Bandeira de Mello − 
Já estava na hora de fazer uma costurada nisso. Eu não vou dizer que está na hora porque a hora não é boa.
ConJur − Mas ela deveria ser revista em alguns pontos?
Bandeira de Mello −
 Ela precisava ser revista. Sabe que eu acho porque ela melhorou tanto? O pregão, que eu era contra, é uma coisa excelente.
ConJur − Por quê?
Bandeira de Mello − 
Dificulta o conluio dentre os participantes. Favorece uma coisa mais séria, é tudo feito ali, em voz alta, em público.
ConJur − O senhor inicialmente era contra?
Bandeira de Mello −
 Totalmente. Era um conservantismo inconsciente. Era uma novidade, fiquei meio suspeitoso.
ConJur − E em relação ao RDC, o que o senhor critica nele?
Bandeira de Mello − 
Tudo, acho que está tudo errado.
ConJur − A começar por onde?
Bandeira de Mello −
 A começar por permitir que alguém faça o próprio projeto base e depois participe da licitação. A começar por isso.
ConJur − Qual a diferença em relação à Lei de Licitações?
Bandeira de Mello − 
Na Lei de Licitações, quem faz o projeto não pode disputar a licitação. Ele pode ter disputado a licitação para fazer o projeto, mas não para fazer a obra.
ConJur − O senhor tem uma definição para o que é interesse público?
Bandeira de Mello −
 Interesse público é o interesse que os cidadãos têm enquanto membros da sociedade. Por sermos membros da sociedade, nenhum de nós tem interesse de ser desapropriado, mas todos nós temos interesse que exista o título da desapropriação. Nenhum de nós tem interesse em ser multado, mas cada um de nós tem interesse que existam as multas de trânsito, por exemplo.
ConJur − Na época do governo FHC havia um grande número de ações por improbidade administrativa, e de certa forma, durante o governo do PT isso deu uma diminuída. O senhor acha que o Ministério Público amadureceu, houve alguma mudança?
Bandeira de Mello −
 No governo do Fernando Henrique houve muita corrupção, e essas ações eram uma demonstração disso. Houve corrupções confessadas, por exemplo, foi gravado o senhor Fernando Henrique dizendo que podia usar o nome dele numa licitação. O que aconteceu com ele? Nada. Ele está endeusado pela imprensa. Nada. O senhor Menem andou uma temporada na cadeia, o senhor Fujimori está [na prisão] até hoje, e com ele [FHC] nem isso aconteceu. Não estou dizendo que era para ele ir para a cadeia ou não. Mas foi um crime e não aconteceu nada. Olha os dois pesos e duas medidas. Pegaram aquele italiano [Salvatore Cacciola] e meteram na cadeia. Ele ficou algum tempo e agora está solto.
ConJur – E no governo Lula?
Bandeira de Mello − As pessoas podem dizer o que quiserem a respeito dele, mas só não se podem renegar fatos: 30 milhões de pessoas foram trazidas das classes D e E para as classes B e C. Basta isso para consagrar esse homem como o maior governante que esse país já teve na história. Mas não só isso. Foi, portanto, a primeira vez que começaram a ser reduzidas as desigualdades sociais, que a Constituição desde 1988 já mandava. E veja outro fenômeno tão típico: olha o ódio que certos segmentos da classe média têm deste governante, deste político. É profundo, visceral. É o ódio daqueles que não suportam alguém de origem mais modesta estar equiparado a ele.
ConJur − Como o senhor vê a sucessão no STF, com a proximidade da aposentadoria dos ministros Ayres Britto e Cezar Peluso?
Bandeira de Mello −
 Não tenho a menor expectativa a respeito de quem vem e quem não vem. Claro que eu queria um candidato, todo mundo sempre tem um. Mas o que eu penso não interessa.
ConJur − O senhor já leu as poesias do ministro Ayres Britto?
Bandeira de Mello −
 Claro. Gosto delas. São poesias despretensiosas como ele. O Carlos é uma pessoa maravilhosa, não é só um grande ministro, um grande juiz, um grande constitucionalista. Ele fez mestrado em Direito Constitucional com um ex-assistente meu, Celso Bastos. O Carlos eu já conhecia e fez Direito Administrativo, que era cadeira obrigatória, comigo. Nós já tínhamos um relacionamento pessoal muito bom. À noite em casa o Carlos tocava violão. Ele é um ser humano maravilhoso, e isso é a coisa mais importante que existe. Ele é uma pessoa para se tirar o chapéu. Se eu fosse espírita, diria que o Carlos não reencarna mais. Ele vai direto, de tão perfeito que é.
Elton Bezerra é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 12 de agosto de 2012

Dupla dos mais belos museus


ANTONIO GONÇALVES FILHO - O Estado de S.Paulo
A teoria sem prática não existe para o casal de arquitetos Todd Williams e Billie Tsien. Eles estão juntos há 36 anos, dirigem um escritório que emprega 35 pessoas e dele nunca saiu um traço arbitrário, desses que arquitetos voluntariosos desenham no ar e depois deixam para assistentes resolver no mundo real. O maior exemplo da boa arquitetura da dupla é o recém-inaugurado museu da Fundação Barnes na Filadélfia, belo edifício que não apenas abriga uma coleção de arte inestimável (pinturas de mestres flamengos, italianos e de quase todos os impressionistas) como ilumina uma extensa área no corredor cultural ao norte da cidade. Para Todd Williams, um museu é isso, uma extensão da casa de cada um dos visitantes, cuja construção deve começar de dentro para fora - "pois é mais na área interna que externa onde se passa nossa vida".
Em maio deste ano, a Fundação Barnes abriu as portas de sua nova casa na Filadélfia, apresentando seu milionário acervo disposto de forma acessível ao público. Nesse novo edifício, o caráter íntimo das antigas galerias do museu original em Merion, na Pensilvânia, foi totalmente reproduzido. Ao mesmo tempo, a dupla fez bom uso da luz natural e vidros que deixam à vista os jardins externos. Tudo para ser fiel ao projeto educacional do velho Albert C. Barnes, químico que fez fortuna nos anos 1920 - com um remédio criado para curar doenças venéreas e prevenir cegueira infantil - adquirindo um acervo de 2.500 obras que tem gênios como Cézanne, Matisse e Picasso.
Barnes seguia os ensinamentos do filósofo John Dewey, um dos criadores da psicologia funcional que teve importante papel na reforma educacional americana. Para ele, um museu deveria ser, antes de tudo, uma instituição dedicada à difusão do conhecimento, não um depósito de obras. Todd Williams e Billie Tsien comungam desse credo, rejeitando o conceito de espetáculo que parece comandar a cabeça de Frank Gehry, arquiteto que projetou o Guggenheim de Bilbao. Williams, educadamente, diz que o respeita, mas não vê um museu como uma casa de shows. "Não é o papel dos governos cuidar dos museus no futuro e, portanto, é preciso criar condições para que essas instituições se mantenham de maneira autônoma, oferecendo serviços ao público". Isso inclui, no caso do museu Barnes, um generoso salão de café com 50 mesas, espaços para cursos, teatro e sala de concerto. "Um museu tem de ser caloroso, não um lugar frio de exposição", recomenda Williams.
Talvez sua observação tenha ressonância numa cidade onde o principal museu, que abriga o melhor acervo da América Latina, o Masp, tem um café de rodoviária com carpete vagabundo, uma rampa sebosa da gordura vinda de um restaurante no subsolo, grama crescendo solta no maior vão livre do Brasil e lixo circundando o prédio. Williams, educado, não faz comentários sobre a cidade, mas fica impressionado com a uniformizada arquitetura paulistana. "O mais incrível é que o Brasil tem uma variedade incrível de pedras". E madeiras de antigas construções que poderiam ser reutilizadas. No novo museu da Fundação Barnes, ele usou ipê. "Não consigo pensar num projeto sem desenhar tudo, do prédio aos móveis", diz Williams.
Sua mulher Billie confirma que o primeiro impulso da dupla ao aceitar um projeto é o desafio de criar prédios que sejam espaços de convivência e difusão cultural. "Fizemos poucas residências e aceitamos criar em espaços diferentes como o Museu do Folclore e o Museu de Arte do Arizona porque queremos fazer projetos íntegros, com bons propósitos, que resistam aos anos." Todd Williams acrescenta: "E que, sobretudo, não sejam gestos sem propósito, que saiam da prancheta só como desenhos bonitos ". Ter o nome em evidência não diz nada. Bom mesmo é ser respeitado, como ele.

Os rumos da metrópole


ANTONIO GONÇALVES FILHO - O Estado de S.Paulo
A terceira edição do Arq.Futuro, encontro internacional de arquitetos e urbanistas promovido pela Bei+, braço da Bei Editora, começa amanhã com uma palestra do jovem arquiteto e engenheiro italiano Carlo Ratti, de 41 anos, conhecido por concretizar projetos impossíveis como um pavilhão cujas paredes de água provocaram há quatro anos reações alucinadas dos visitantes da Exposição Mundial de Zaragoza.
Ratti trabalha para o conceituado MIT, o Instituto de Tecnologia de Massachusetts. É um daqueles arquitetos que tentam colocar no presente o futuro imaginado nos desenhos animados do passado, como Os Jetsons, aquela família com robôs e toda a parafernália eletrônica de um bom lar futurista. O Arq. Futuro, no entanto, não trouxe apenas visionários que pensam no avenir digital. O encontro semestral, realizado desde o ano passado, traz nesta edição premiados arquitetos que lidam tanto com a questão da habitação popular, como o chileno Alejandro Aravena, como o casal americano Todd Williams e Billie Tsien, que vem se especializando na criação de museus, passando por Thaddeus Pawlowski, autor de gulliverianos projetos de infraestrutura em Nova York.
Além desses, o encontro tem arquitetos brasileiros em ascensão, como Ângelo Bucci, e outros com mais anos de estrada, como Isay Weinfeld, que tem no Hotel Fasano o mais completo exemplo da elegância despojada de seus projetos. Weinfeld e o empresário Otávio Zarvos, que também participa do encontro, são responsáveis por prédios que modificaram a fisionomia da Vila Madalena, em São Paulo.
Além dos nomes citados, ainda participam do Arq.Futuro Fernando de Mello Franco e André Corrêa do Lago, que conversam com os arquitetos, além dos mediadores Philip Yan e Karen Stein. Todo esse esforço, naturalmente, para ajudar São Paulo a ter uma arquitetura com menos prédios falsamente neoclássicos e mais criativos, condizentes com a importância da metrópole no cenário mundial. Mas não foi só a expressão artística que motivou a empresária Marisa Moreira Salles, da Bei+, ao criar o Arq.Futuro e trazer ao Brasil, no ano passado, arquitetos premiados com o Pritzker, como Jacques Herzog, sócio do escritório Herzog & De Meuron, que assina o projeto do Complexo Cultural Luz. Foi principalmente a arquitetura como elemento de transformação social que a levou a apostar no projeto, diz ela.
Este ano, o Arq.Futuro ensaia passos para ampliar o projeto e levá-lo a outras capitais. Em março, o Rio de Janeiro já havia recebido estrelas da arquitetura como a iraquiana Zaha Hadid, radicada em Londres, e o japonês Shigeru Ban. Quase 1.500 pessoas participaram das palestras e fóruns. Depois deste novo encontro em São Paulo, será a vez de Belo Horizonte, seguida por Salvador. "Cada metrópole precisa encontrar sua vocação e São Paulo parece que ainda não achou a sua, ao contrário de Nova York, Londres e Tóquio", observa a organizadora do evento. Talvez a passagem de cidade industrial para uma de serviço possa evitar a catástrofe urbanística que se anuncia para a urbe.
O convite à dupla de arquitetos Todd Williams e Bille Tsien, o americano e sua mulher de origem chinesa, justifica-se pela experiência dos dois como nomes de referência quando o assunto é o corredor cultural de uma cidade. Não se recupera o centro só com ele, mas a sua presença é um ponto de partida importante para seu resgate, para a promoção do convívio social e do trabalho educacional na comunidade.
O museu da Fundação Barnes, na Filadélfia, aberto ao público em maio, é uma prova de como uma coleção fabulosa (as melhores obras de Cézanne, Matisse e outros) se tornam acessíveis ao público graças ao projeto generoso do casal. "Colocá-los em contato com estudantes de arquitetura vai mostrar como a inteligência na recuperação de espaços supera amarras que um encontro de políticos e construtores não resolveria", conclui Marisa Moreira Salles.