sexta-feira, 25 de maio de 2012

História sem recalque


Ex-guerrilheiro que se tornou psicanalista fala do desamparo da tortura

19 de maio de 2012 | 16h 46

Ivan Marsigliae - O Estado de S. Paulo
Em 1970, aos 25 anos – um “adulto”, segundo diz – Reinaldo Morano Filho largou o quarto ano do curso de medicina na Pinheiros para se lançar em uma aventura tão incerta quanto perigosa. Paulista de Taquaritinga, com emprego no Banco do Brasil, diploma de direito e um Fusca 1967 para desfrutar da juventude sem aperreio, aderiu à Ação Libertadora Nacional (ALN) com a ideia de derrubar a ditadura militar pela força das armas.
A presidente e ex-presa política Dilma Rousseff se emociona na cerimônia de instalação da Comissão - Andre Dusek/ AE
Andre Dusek/ AE
A presidente e ex-presa política Dilma Rousseff se emociona na cerimônia de instalação da Comissão
Em pouco tempo seria preso, torturado e testemunharia o assassinato de companheiros. Foram 6 anos e meio nos porões da repressão, dos quais emergiu com sequelas que o tempo não desfaz. As menos dolorosas são as duas hérnias de disco (uma entre as vértebras L4 e L5, outra na região lombar) provocadas pela violência dos golpes. A pior, conta na entrevista a seguir, foi “a vivência do desamparo” da tortura.
Livre, Reinaldo tentou retomar a vida do ponto em que parou. Trocou apenas, e não por acaso, a pediatria pela psiquiatria, da qual derivaria para a formação na Sociedade Brasileira de Psicanálise. Hoje, mantém um consultório na zona oeste de São Paulo e ensina Freud a alunos da Escola Paulista de Medicina. Na semana em que foi instalada a Comissão da Verdade para apurar crimes cometidos por agentes do Estado entre 1946 e 1988, o analista de 66 anos pôs o País – e a si próprio – no divã.
A Comissão da Verdade é para valer?
Reinaldo Morano Filho - Tenho esperança de que ela vá suscitar debates e estimular revelações. Alguns já começaram a falar, aqui e ali, por conta do clima que se criou. As declarações daquele delegado do Espírito Santo (Cláudio Guerra, que detalhou sua participação na repressão em Memórias de uma Guerra Suja, da Topbooks) podem ser exageradas, mas parte do que ele fala é coerente com o que familiares de desaparecidos e pesquisadores de direitos humanos têm descoberto.
O que resta ainda por saber?
Reinaldo Morano Filho - Eu mesmo tenho coisas que gostaria de tornar públicas. Fala-se pouco dos furtos cometidos por agentes da repressão na época. Obras de arte, objetos pessoais, etc. Eu tinha um fusquinha 1967, adquirido com meu salário de funcionário do Banco do Brasil. Comprei da mãe de um colega do curso de medicina. Quando fui preso, dia 15 de agosto de 1970, o levaram. Anos mais tarde, acho em um arquivo de Campinas uma série de documentos: primeiro, um auto de apreensão do Fusca, datado de 16 de abril de 1971, quase um ano depois. Então, um encaminhamento do juiz auditor alegando que o veículo fora adquirido “com dinheiro da organização terrorista”. Em seguida, o mais fantástico: o carro foi transferido para o delegado Renato D’Andrea, citado em todas as listas de torturadores.
A Comissão recebeu críticas à direita e à esquerda. Para uns ela é revanchista; para outros, uma espécie de rendição, pois não tem dimensão punitiva. Qual sua opinião?
Reinaldo Morano Filho - A busca da justiça não é ressentimento, nem mágoa. Eu não tenho nem uma nem outra. Mas é nossa obrigação honrar a memória dos assassinados e perseguidos. Sobre eventuais punições, vai depender da correlação de forças. Não é assunto encerrado; pelo contrário, está se iniciando.
E a ideia, defendida por membros dos clubes militares, de que ela deveria investigar os ‘dois lados’ – também os crimes cometidos por militantes de esquerda?
Reinaldo Morano Filho - O palco da política é o Congresso, onde os termos da Comissão foram definidos. De que se trata? Do esclarecimento da prática de tortura, assassinato e desaparecimento enquanto política de Estado. Porque ela era institucionalizada, não um “excesso” cometido por poucos agentes.
Os clubes alegam que organizações como a de que o sr. tomou parte queriam implantar uma ditadura de esquerda.
Reinaldo Morano Filho - Não dá para tergiversar sobre a história. Qual foi o grande pecado do presidente João Goulart? Ele estava em vias de estabelecer um regime comunista? As chamadas reformas de base de Jango eram bandeiras de aggiornamento, de atualização democrática da sociedade, que na Europa já estavam resolvidas havia 200 anos. Quem interrompeu o debate democrático foi a ditadura, não as organizações de esquerda que se opuseram a ela depois.
Qual é a sua pior lembrança da tortura?Reinaldo Morano Filho - A vivência do desamparo. Um desamparo absoluto na hora em que você está pendurado num pau de arara com um bando de animais – que não são animais porque os animais não fazem isso – a sua volta batendo, gritando. Acontece de você precisar usar o banheiro, isso não ser permitido, e você acabar evacuando lá, ouvindo gozação. É uma situação extremamente humilhante.
Já encontrou um torturador pela frente?
Reinaldo Morano Filho - Em março de 1991, numa audiência na Câmara Municipal sobre as ossadas do cemitério de Perus. Fui depor contra Josecyr Cuoco (delegado do Deops paulista em 1970), que tinha participado da minha prisão. Ele foi o primeiro que me agrediu, na chegada, com um soco no nariz. Fazia exatamente 20 anos, eu já tinha feito análise, mas ainda assim a gente tem uma espécie de revival. O sentimento que prevalece é a raiva. Anos depois, vim a saber que Josecyr era sobrinho-neto da minha avó.
O torturador gosta do que faz?
Reinaldo Morano Filho - A (psicanalista e membro da CV) Maria Rita Kehl usou uma expressão para ser referir a isso: gozo, um termo lacaniano. Eu chamo de prazer mesmo. Um prazer sádico, do poderoso que é dono da situação diante de alguém desamparado. Esse sadismo se manifesta às vezes de forma sexualizada. Por isso, a quantidade de estupros e abusos.
De que maneira a psicanálise o ajudou a lidar com a experiência nos porões?Reinaldo Morano Filho - O registro de um trauma depende da pele psíquica de cada um, do quanto aquela agressão fere a pele psíquica do indivíduo. Após a tortura, o clima de terror permanece. E você compartilha de uma angústia coletiva a cada vez que um preso é levado para a sala de torturas ou para uma “diligência” onde, sabe-se, será assassinado. Freud tem uma passagem sobre o desamparo em que o localiza no nascimento do ser humano. O bebê humano, diferentemente do de outras espécies, é indefeso. Deixado à própria sorte, não consegue nem se virar, morre. Isso cria um registro na mente infantil, que gera o medo do desamparo. A experiência da tortura só faz exacerbar essa marca.
Que marca a tortura lhe deixou?Reinaldo Morano Filho - Mesmo com todos os anos de análise que fiz, hoje me vejo como alguém que tem um colorido... meio depressivo. Nada que me atrapalhe a vida, talvez até ajude em minha profissão. Mas fica uma espécie de nuvem, que eu não tinha antes.
Que efeito tem para o sr. a volta desse tema ao debate público nacional?Reinaldo Morano Filho - Quando outras narrativas começam a surgir, há um certo alívio. No sentido de que não somos mais os únicos a falar. Isso aconteceu mesmo, não éramos malucos.
Em um artigo na revista Piauí o ex-guerrilheiro, economista e um dos pais do Plano Real, Persio Arida, reavaliou seu passado na luta armada e concluiu que ela contribuiu apenas ‘por vias tortas’ para o retorno da democracia. O sr. concorda?
Reinaldo Morano Filho - Eu me lembro quando o grupo do Persio chegou ao DOI-Codi. A Beth Mendes (então militante política, depois eleita deputada federal pelo PT em 1983) foi presa com eles. A chegada do grupo causou certo rebuliço, porque eram todos muito jovens, estudantes secundaristas. Eu já tinha 25 anos, era um adulto, advogado formado. Considero minha adesão à luta diferente da do Persio. Eu tinha participado de toda aquela esperança pré-golpe. Não aderi à luta armada porque um dia de manhã acordei e falei “gosto de dar tiros, vamos ver onde posso saciar essa compulsão”. Fiz por falta de opção, por não poder participar da vida política. Não concordo com a opinião do Persio e prefiro a do (ex-guerrilheiro) Ivan Seixas: a ditadura foi alvejada de várias formas. Eu tomei parte em uma delas.

Falando mais como psicanalista que como alguém que participou dos acontecimentos, o sr. acha que ‘recalcar’ essa parte da história tem consequências no País hoje?
Reinaldo Morano Filho - A situação vigente, de tortura como método de investigação nas delegacias de qualquer biboca do País, tem a ver com essa história de violência. Que é anterior até à ditadura, vem da escravidão e da permanência de uma cultura da impunidade. “Bate, tortura, que não dá em nada.” O momento que estamos vivendo é a chance de uma outra fala: “Quer fazer, faça. Mas você corre o risco de ser denunciado. E, quem sabe, num País mais maduro, apenado.” O desrecalque é também uma redenção. Trata-se de uma necessidade, uma obrigação e uma contribuição que a gente tem que fazer para o Brasil. 

Hilton Authentic


Por que Coutinho, ‘o maior centroavante que o Brasil já teve’, se fecha numa névoa espessa, procurando conter a própria glória?

19 de maio de 2012 | 17h 11
CHRISTIAN CARVALHO CRUZ - O Estado de S. Paulo Aliás
Ainda no alto da Serra do Mar eu olhava o tempo horrivelmente bonito, de nuvens cinza baixíssimas, garoa, mas com o sol forte brilhando sobre a vegetação, e pensava que aquilo bem podia resumir o Coutinho. Eu nunca estivera com ele. Mas depois de ler a seu respeito e ouvir algumas pessoas, levava para o nosso encontro a impressão de que o eterno camisa 9 do Santos, lembrado em qualquer botequim como “o maior centroavante que o Brasil já teve”, na velhice tinha se tornado aquele céu contraditório, uma névoa espessa esforçando-se para conter a própria glória. De modo geral as opiniões que eu reunira convergiam para a imagem de um astro sombrio: “Foi gênio, só que muito ressentido. Nunca lidou bem com o fato de ter passado a carreira – e a vida – à sombra do Pelé”.
O Santos jogaria logo mais pela Libertadores, mas na mesa de tranca, estranhamente, ninguém falava - Christian Carvalho Cruz/Divulgação
Christian Carvalho Cruz/Divulgação
O Santos jogaria logo mais pela Libertadores, mas na mesa de tranca, estranhamente, ninguém falava
No começo da semana, um reforço. Saiu no jornal que o Coutinho se recusou a participar do documentário Santos, 100 Anos de Futebol Arte, de Lina Chamie, porque não lhe pagaram. “O filme vai rodar o mundo, alguém vai lucrar. E os artistas não tiveram cachê. Achei melhor não participar”, foi a explicação dele, que ainda se queixou dos confetes todos derramados sobre Neymar e seus 108 gols pelo Santos. “Não citam Pepe (405 gols), Toninho Guerreiro (283), Dorval (198), Edu (183). Tem muita gente na frente.” Tem Coutinho na frente, com 370, o terceiro maior artilheiro da história do clube. “Montei o filme com a entrevista que ele me deu e não autorizou o uso. Era inconcebível falar dos 100 anos do Santos sem falar do Coutinho”, conta Lina Chamie. No último dia de edição eu ainda telefonei para tentar demovê-lo. Ele não foi rude. Disse apenas ‘Não quero mesmo participar’.” Entrevista não há, mas Coutinho está lá, marcando gol e tendo seu nome gritado pelo locutor: “Cou-ti-nho!”
Nos últimos meses, ele também quis ficar fora do livro Os 10 Mais do Santos, de Thiago Arantes, cobrou para aparecer em Pelé – Primeiro Tempo (depoimentos de ex-jogadores, jornalistas e autoridades) e, no ponto alto das celebrações do centenário do clube, o dia do lançamento do belíssimo Santos – 100 Anos de Futebol Arte, de Odir Cunha, preferiu jogar cartas no bar da esquina a se juntar a alguns ex-companheiros no salão nobre da Vila Belmiro. O que passava? Não bastava o Pelé ter dito e repetido que sem o Coutinho, a quem chama de “irmão”, não teria feito a metade dos 1.091 gols que fez pelo Santos? Não adiantava Almir Pernambuquinho, outro craque santista, ter explicado que para conseguir brilhar ao lado de Pelé só mesmo jogando muuuuita bola? Aquele tipo quase masoquista de autossabotagem me fascinava. Liguei para ele pedindo uma entrevista. “Claro. Amanhã às 3 da tarde no salão do Didi, em frente ao portão 6 da Vila.” Nem quis saber o tema da conversa. Foi direto e objetivo, resoluto, como nos bons tempos de goleador que não brincava em serviço.
O Didi é criador do topete do Pelé e até hoje atua como seu personal hair stylist. Apesar de aparar o bigode no Didi semanalmente, curioso o Coutinho ter marcado o encontro ali. As paredes do pequeno salão são forradas de imagens do... Pelé. Tem Pelé em todas as fases, de todos os tamanhos, desenhado, fotografado, pirografado. O Coutinho está aqui e li, mas nunca sozinho. Aparece sempre na formação tradicional do timaço dos anos 60, naquela linha de ataque que até hoje soa como Bach: Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe. Nenhuma do Coutinho sozinho, Didi? “Tem essa aqui, fiz questão de guardar. Este é o Coutinho”, ele apontou, sorrindo, um retrato pendurado mais para o fundo mal iluminado do recinto. E o “este é o Coutinho” serviu menos para identificar o cliente do que para resumir sua personalidade. Na foto, um Coutinho em fúria estica o dedo a milímetros do nariz de um árbitro, que parece se esquivar andando para trás. A legenda diz somente “A bronca do craque”. Sua figura ameaçadora, de olhos de açoite, me lembrou Muhammad Ali, o boxer.
“Sabe que eu gostava desse rapaz?”, diz o Coutinho, já sentado à mesa de plástico do bar contíguo à barbearia do Didi, quando eu comento sobre sua semelhança com Ali, na juventude. Ele chegara sozinho, pilotando seu Toyota Corola preto. Desceu sorridente, de sandálias de couro sem meia, camisa azul de punhos desabotoados, unhas feitas e puxando a calça jeans para cima. Apesar da aparência de banho tomado, cheirava a cigarro. “O Zito vivia me dizendo ‘ah, neguinho, você é muito rebelde’. Vai ver é por isso que você me acha parecido com o Ali. Mas eu sempre fui bem mais preto e ele bem mais alto.” O apelido, por sinal, vem do seu corpo mirrado já na infância. Um coto, um cotinho, como chamavam em casa, em Piracicaba, ao terceiro dos cinco filhos de seu Waldermar e dona Antônia – ele funcionário de um engenho de cana, ela lavadeira. O “u” intrometeu-se quando chegou ao Santos, aos 14 anos (aos 15 já estava entre os profissionais). Feroz como Ali no ringue, ele diz que nunca foi. “Eu era mal-humorado, isso sim.”
Uma contradição, se você vir no YouTube a alegria circense do Santos daquele tempo. E também se olhar a fotografia do time reunido, na qual Coutinho, um menino de aparente espírito leve, aparece sorrindo e envolvendo Dorval e Pelé com os braços esticados. Ele me explica que o ponto de ebulição era o primeiro toque na bola. Nesse instante seu corpo se esvaziava de qualquer sensação de tempo e espaço, de qualquer preocupação ou lembrança, para se preencher imediatamente de um único sentimento: a vontade doentia de vencer. “Era nessa hora que fazia efeito a mijadinha do medo”, ele diz, referindo-se a ritualística última aliviada que o time inteiro dava no túnel de acesso ao gramado. “Eu mijava o medo fora ali, mas era ao encostar na bola que a ficha caía, que eu me transformava. Eu só pensava em não desperdiçar a chance quando ficasse de frente para o gol. Porque, escuta aqui, se você é um atacante e recebe a bola de frente para o gol, não tem como errar, só se for muito grosso. Basta levantar a cabeça. Se levantar a cabeça você enxerga tudo, tudo, tudo: o companheiro melhor posicionado, o goleiro, a torcida, o refletor, o bandeirinha, o zagueiro chegando... Então, se quiser chutar em vez de passar, é só ver a perna que o goleiro mexe primeiro e colocar a bola naquele lado. Ele nunca terá como voltar.” Realmente, muito fácil.

O Coutinho fala com a gente olhando o tempo todo na cara. Não baixa a cabeça, não volta os olhos para o lado, para o horizonte, para lugar nenhum. Meu plano era tentar conversar com ele sem citar o nome de Pelé, deliberadamente surrupiar da história o camisa 10 da tabelinha que deu tantas alegrias ao Santos e que de alguma forma parecia trazer desconforto ao 9. Quanto tempo duraria? Seria possível falar de Coutinho sem falar de Pelé? Não foi. Lá pelos cinco minutos de bola rolando o próprio Coutinho falou: “Eu era menino e um dia o Santos foi a Piracicaba enfrentar o XV. Eu quis muito assistir ao jogo porque se falava muito no rádio e nos jornais de um tal de Pelé. Eu queria ver o tal de Pelé. O Santos venceu por 4 x 0 com quatro gols dele. Na arquibancada comentei com um senhor que estava ao meu lado: ‘Esse Pelé é bom mesmo’. E ele respondeu: ‘O neguinho é demais’. Foi um choque. Eu achava que o Pelé era o branco da camisa 9 que tinha dado todos os passes pros gols. Este na verdade era o Pagão, que me deixou maluco e virou meu ídolo. ” Não precisa ser um craque da psicanálise para vislumbrar um Coutinho falando de si mesmo, de sua trajetória ao lado do grande Rei do Futebol. Pagão era o ídolo do Chico Buarque, eu comento. Coutinho rebate de primeira: “Mais depois dele sou eu”.
Às portas dos 69 anos, ele leva uma vida confortável em Santos. Dá aulas de futebol em projetos sociais em Cubatão e Extrema (MG) e tem imóveis de aluguel. “Precisar não precisamos. Eu e a patroa trabalhamos ainda porque não conseguimos ficar parados”, diz o Coutinho, explicando que a opção de não participar dos livros e filmes nada tem a ver com falta de dinheiro. “É uma questão de justiça. Quando é pro Santos eu faço. Se tem intermediário que vai levar grana com o meu nome, quero a minha parte. Abre um livro sobre o Santos aí. O autor marcou quantos gols? Conquistou quantos títulos? Estourou quantas vezes o joelho? Então, o Coutinho e as outras estrelas do espetáculo que fizeram tudo isso não levam nada? Tô fora”, ele esbraveja, dando uma banana. Mas assim você se sabota, Coutinho, fica fora da história de um esporte no qual foi um dos maiores, eu arrisco. “Não preciso disso. Sou reconhecido todos os dias na rua, dou palestras, meus amigos gostam de mim. Veja só, no mês que vem sai a minha biografia autorizada. Eu autorizei porque o autor é legal, um cara sério. Não quis levar vantagem. E eu nem pensei em fazer 70% das vendas pra mim, 30% pra ele. Fiz questão de que fosse meio a meio.”
A “patroa” do Coutinho é a Vera Lúcia, com quem logo celebrará bodas de ouro. Ela costura 400 sungas por semana para uma confecção. Em casa mesmo. Acha fácil conviver com o Coutinho, “só precisa ter paciência”. O chama de Honoróio, que é o terceiro nome de um homem sem sobrenome: Antônio Wilson Honório. Eles tiveram três filhos, duas meninas e um menino. O rapaz, Kleber, que jogou no juvenil do Santos – com a camisa 10 – morreu em 1989, aos 23 anos. O Coutinho não gosta de tocar no assunto, mas está assim na biografia autorizada Coutinho, o Gênio da Área, de Carlos Fernando Schinner: “A morte do filho é ainda hoje um assunto tabu para o ex-camisa 9. Coutinho não fala sobre a doença que matou Kleber e, ao lembrar-se do filho, com a voz embargada e lágrimas nos olhos, não se perdoa, acha que não ajudou o rapaz o bastante, como realmente deveria”. Sem saber o que dizer, digo que posso imaginar a dor que ele sente. O Coutinho me fulmina como numa cobrança de pênalti sem paradinha: “Você também perdeu um filho? Ah, não? Então, me desculpa, você não pode imaginar a dor que eu sinto”. Aos domingos, ele vai conversar com Kleber na missa da Igreja Santa Josefina Bakhita. “Sou devoto dela, uma santa dos escravos.”
O joguinho de tranca que o Coutinho disputa todas as noites ali mesmo no bar ao lado do Didi ainda vai longe. Seus companheiros de mesa brincam que, ao contrário dos tempos de centroavante, no pano verde felpudo ele segura demais o jogo. E tem pudores de sujar canastra com coringa de outro naipe. Coisas do Coutinho. Do Neymar ele não quer falar. De seleção brasileira, só um pouquinho, sempre em profundidade: “Seleção? Podemos chamar de seleção um time sem o Arouca, c@&*)*#?!”, ele pergunta retoricamente, citando o atual médio-volante do Santos e encaixando na frase um palavrão que rima com baralho. “O Mano Menezes não dura até a Copa. Deve entrar esse aí no lugar”, continua, apontando com o queixo o estádio do Peixe do outro lado da rua.
O “esse aí” é Muricy Ramalho, que de um jeito ou de outro tem um quê marrento do Coutinho. O Santos jogaria logo mais pela Libertadores e estranhamente nenhum dos quatro na mesa de tranca falava de futebol – nem mesmo o dono do estabelecimento, que carrega 12 escudos do Santos tatuados nos braços e um na testa. Ninguém xinga, ninguém bate na mesa... Uma modorra que só vendo. Coutinho acaricia o joelho direito que lhe custou a Copa de 62 e acabou sendo sua ruína, pede outra cerveja e acende um cigarro que talvez diga muito dele. Um Hilton Authentic.

Os desafios da manufatura do século 21


Como será a manufatura no século 21?
Essa talvez seja a questão que vale uma nação. Quem acertar, pega o bonde do desenvolvimento. Quem errar, marca passo.
O próprio Estados Unidos, com suas inúmeras think tank esbarrou em um erro monumental de análise. Definiu o que seriam as indústrias de ponta, concentrou nelas o esforço estratégico e permitiu que as indústrias da geração anterior – automobilística, eletroeletrônica etc. – se transferissem para a Ásia.
O resultado foi a perda do dinamismo do mercado interno e a enorme crise que se sucedeu ao fim da bolha de crédito.
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Mesmo assim, o enigma continua à espera de quem o desvende.
Discussão relevante ocorreu na 2a Conferência de Inovação Brasil-EUA,
“Parcerias para  a prosperidade no século 21”, promoção conjunta da ABDI (Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial), MBC (Movimento Brasil Competitivo) e Compete (Council on Competitiveness).
O ponto central da mesa foi discutir se os dois países estão preparados para liderar a manufatura do século 21, se existem condições objetivas de parceria estratégica. E também sobre o papel da Universidade e do sistema educacional científico nessa batalha.
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A conclusão da mesa é que onde houver mão-de-obra intensiva, a China é absoluta. Mas países com tecnologia avançada têm condições de manter um setor manufatureiro robusto.
David Arkless, presidente de uma empresa de Recursos Humanos com mais de 4 milhões de funcionários, estimou que cerca de 250 milhões de pessoas vivem fora de seus países de origem por causa do trabalho. Especialmente após a grande crise de 2008.
Arkless rebate a visão de que os EUA se tornaram a única e verdadeira economia de serviços do mundo. Pesquisa recente de sua empresa estimou que o setor de manufaturas nos EUA deve crescer consistentemente nos próximos 15 anos, mas com um desenho diferente da manufatura tradicional.
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Opinião diversa foi apresentada pela General Eletric, através de Mark Little, vice-presidente senior. Nos áureos tempos da financeirização, com Jack Welch no comando, abriu uma série infindável de frentes. Agora, voltou a focalizar, desfazendo-se de inúmeras participações fora do seu foco.
Uma das reavaliações da GE foi sobre a importância de fazer a manufatura onde a tecnologia é desenvolvida, motivo que a levou a investir em fábricas em regiões pobres dos EUA. Certamente, a opinião da GE tem muito mais peso do que a de um head hunter.
Outra prioridade foi criar um centro de pesquisas de classe mundial no Brasil, similar ao que têm nos EUA, Alemanha e Índia. Vantagens brasileiras: crescimento, clientes significativos (Petrobras, Vale Embraer) e sistemas universitários mais fortes.
Segundo Little, a Internet acelerou de maneira inédita a inovação. Nos próximos 20 anos serão criadas mais coisas do que a soma de tudo o que foi criado na história, prevê a GE.
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Nesse cenário, prevê Jan Simek, reitor da Universidade do Tenessee, as universidades terão papel fundamental para o futuro da manufatura. A parceria da sua universidade com a Dupont foi essencial para desenvolver um biocombustível à base de etanol.