Por que Coutinho, ‘o maior centroavante que o Brasil já teve’, se fecha numa névoa espessa, procurando conter a própria glória?
19 de maio de 2012 | 17h 11
CHRISTIAN CARVALHO CRUZ - O Estado de S. Paulo Aliás
Ainda no alto da Serra do Mar eu olhava o tempo horrivelmente bonito, de nuvens cinza baixíssimas, garoa, mas com o sol forte brilhando sobre a vegetação, e pensava que aquilo bem podia resumir o Coutinho. Eu nunca estivera com ele. Mas depois de ler a seu respeito e ouvir algumas pessoas, levava para o nosso encontro a impressão de que o eterno camisa 9 do Santos, lembrado em qualquer botequim como “o maior centroavante que o Brasil já teve”, na velhice tinha se tornado aquele céu contraditório, uma névoa espessa esforçando-se para conter a própria glória. De modo geral as opiniões que eu reunira convergiam para a imagem de um astro sombrio: “Foi gênio, só que muito ressentido. Nunca lidou bem com o fato de ter passado a carreira – e a vida – à sombra do Pelé”.
Christian Carvalho Cruz/Divulgação
O Santos jogaria logo mais pela Libertadores, mas na mesa de tranca, estranhamente, ninguém falava
No começo da semana, um reforço. Saiu no jornal que o Coutinho se recusou a participar do documentário Santos, 100 Anos de Futebol Arte, de Lina Chamie, porque não lhe pagaram. “O filme vai rodar o mundo, alguém vai lucrar. E os artistas não tiveram cachê. Achei melhor não participar”, foi a explicação dele, que ainda se queixou dos confetes todos derramados sobre Neymar e seus 108 gols pelo Santos. “Não citam Pepe (405 gols), Toninho Guerreiro (283), Dorval (198), Edu (183). Tem muita gente na frente.” Tem Coutinho na frente, com 370, o terceiro maior artilheiro da história do clube. “Montei o filme com a entrevista que ele me deu e não autorizou o uso. Era inconcebível falar dos 100 anos do Santos sem falar do Coutinho”, conta Lina Chamie. No último dia de edição eu ainda telefonei para tentar demovê-lo. Ele não foi rude. Disse apenas ‘Não quero mesmo participar’.” Entrevista não há, mas Coutinho está lá, marcando gol e tendo seu nome gritado pelo locutor: “Cou-ti-nho!”
Nos últimos meses, ele também quis ficar fora do livro Os 10 Mais do Santos, de Thiago Arantes, cobrou para aparecer em Pelé – Primeiro Tempo (depoimentos de ex-jogadores, jornalistas e autoridades) e, no ponto alto das celebrações do centenário do clube, o dia do lançamento do belíssimo Santos – 100 Anos de Futebol Arte, de Odir Cunha, preferiu jogar cartas no bar da esquina a se juntar a alguns ex-companheiros no salão nobre da Vila Belmiro. O que passava? Não bastava o Pelé ter dito e repetido que sem o Coutinho, a quem chama de “irmão”, não teria feito a metade dos 1.091 gols que fez pelo Santos? Não adiantava Almir Pernambuquinho, outro craque santista, ter explicado que para conseguir brilhar ao lado de Pelé só mesmo jogando muuuuita bola? Aquele tipo quase masoquista de autossabotagem me fascinava. Liguei para ele pedindo uma entrevista. “Claro. Amanhã às 3 da tarde no salão do Didi, em frente ao portão 6 da Vila.” Nem quis saber o tema da conversa. Foi direto e objetivo, resoluto, como nos bons tempos de goleador que não brincava em serviço.
O Didi é criador do topete do Pelé e até hoje atua como seu personal hair stylist. Apesar de aparar o bigode no Didi semanalmente, curioso o Coutinho ter marcado o encontro ali. As paredes do pequeno salão são forradas de imagens do... Pelé. Tem Pelé em todas as fases, de todos os tamanhos, desenhado, fotografado, pirografado. O Coutinho está aqui e li, mas nunca sozinho. Aparece sempre na formação tradicional do timaço dos anos 60, naquela linha de ataque que até hoje soa como Bach: Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe. Nenhuma do Coutinho sozinho, Didi? “Tem essa aqui, fiz questão de guardar. Este é o Coutinho”, ele apontou, sorrindo, um retrato pendurado mais para o fundo mal iluminado do recinto. E o “este é o Coutinho” serviu menos para identificar o cliente do que para resumir sua personalidade. Na foto, um Coutinho em fúria estica o dedo a milímetros do nariz de um árbitro, que parece se esquivar andando para trás. A legenda diz somente “A bronca do craque”. Sua figura ameaçadora, de olhos de açoite, me lembrou Muhammad Ali, o boxer.
“Sabe que eu gostava desse rapaz?”, diz o Coutinho, já sentado à mesa de plástico do bar contíguo à barbearia do Didi, quando eu comento sobre sua semelhança com Ali, na juventude. Ele chegara sozinho, pilotando seu Toyota Corola preto. Desceu sorridente, de sandálias de couro sem meia, camisa azul de punhos desabotoados, unhas feitas e puxando a calça jeans para cima. Apesar da aparência de banho tomado, cheirava a cigarro. “O Zito vivia me dizendo ‘ah, neguinho, você é muito rebelde’. Vai ver é por isso que você me acha parecido com o Ali. Mas eu sempre fui bem mais preto e ele bem mais alto.” O apelido, por sinal, vem do seu corpo mirrado já na infância. Um coto, um cotinho, como chamavam em casa, em Piracicaba, ao terceiro dos cinco filhos de seu Waldermar e dona Antônia – ele funcionário de um engenho de cana, ela lavadeira. O “u” intrometeu-se quando chegou ao Santos, aos 14 anos (aos 15 já estava entre os profissionais). Feroz como Ali no ringue, ele diz que nunca foi. “Eu era mal-humorado, isso sim.”
Uma contradição, se você vir no YouTube a alegria circense do Santos daquele tempo. E também se olhar a fotografia do time reunido, na qual Coutinho, um menino de aparente espírito leve, aparece sorrindo e envolvendo Dorval e Pelé com os braços esticados. Ele me explica que o ponto de ebulição era o primeiro toque na bola. Nesse instante seu corpo se esvaziava de qualquer sensação de tempo e espaço, de qualquer preocupação ou lembrança, para se preencher imediatamente de um único sentimento: a vontade doentia de vencer. “Era nessa hora que fazia efeito a mijadinha do medo”, ele diz, referindo-se a ritualística última aliviada que o time inteiro dava no túnel de acesso ao gramado. “Eu mijava o medo fora ali, mas era ao encostar na bola que a ficha caía, que eu me transformava. Eu só pensava em não desperdiçar a chance quando ficasse de frente para o gol. Porque, escuta aqui, se você é um atacante e recebe a bola de frente para o gol, não tem como errar, só se for muito grosso. Basta levantar a cabeça. Se levantar a cabeça você enxerga tudo, tudo, tudo: o companheiro melhor posicionado, o goleiro, a torcida, o refletor, o bandeirinha, o zagueiro chegando... Então, se quiser chutar em vez de passar, é só ver a perna que o goleiro mexe primeiro e colocar a bola naquele lado. Ele nunca terá como voltar.” Realmente, muito fácil.
O Coutinho fala com a gente olhando o tempo todo na cara. Não baixa a cabeça, não volta os olhos para o lado, para o horizonte, para lugar nenhum. Meu plano era tentar conversar com ele sem citar o nome de Pelé, deliberadamente surrupiar da história o camisa 10 da tabelinha que deu tantas alegrias ao Santos e que de alguma forma parecia trazer desconforto ao 9. Quanto tempo duraria? Seria possível falar de Coutinho sem falar de Pelé? Não foi. Lá pelos cinco minutos de bola rolando o próprio Coutinho falou: “Eu era menino e um dia o Santos foi a Piracicaba enfrentar o XV. Eu quis muito assistir ao jogo porque se falava muito no rádio e nos jornais de um tal de Pelé. Eu queria ver o tal de Pelé. O Santos venceu por 4 x 0 com quatro gols dele. Na arquibancada comentei com um senhor que estava ao meu lado: ‘Esse Pelé é bom mesmo’. E ele respondeu: ‘O neguinho é demais’. Foi um choque. Eu achava que o Pelé era o branco da camisa 9 que tinha dado todos os passes pros gols. Este na verdade era o Pagão, que me deixou maluco e virou meu ídolo. ” Não precisa ser um craque da psicanálise para vislumbrar um Coutinho falando de si mesmo, de sua trajetória ao lado do grande Rei do Futebol. Pagão era o ídolo do Chico Buarque, eu comento. Coutinho rebate de primeira: “Mais depois dele sou eu”.
Às portas dos 69 anos, ele leva uma vida confortável em Santos. Dá aulas de futebol em projetos sociais em Cubatão e Extrema (MG) e tem imóveis de aluguel. “Precisar não precisamos. Eu e a patroa trabalhamos ainda porque não conseguimos ficar parados”, diz o Coutinho, explicando que a opção de não participar dos livros e filmes nada tem a ver com falta de dinheiro. “É uma questão de justiça. Quando é pro Santos eu faço. Se tem intermediário que vai levar grana com o meu nome, quero a minha parte. Abre um livro sobre o Santos aí. O autor marcou quantos gols? Conquistou quantos títulos? Estourou quantas vezes o joelho? Então, o Coutinho e as outras estrelas do espetáculo que fizeram tudo isso não levam nada? Tô fora”, ele esbraveja, dando uma banana. Mas assim você se sabota, Coutinho, fica fora da história de um esporte no qual foi um dos maiores, eu arrisco. “Não preciso disso. Sou reconhecido todos os dias na rua, dou palestras, meus amigos gostam de mim. Veja só, no mês que vem sai a minha biografia autorizada. Eu autorizei porque o autor é legal, um cara sério. Não quis levar vantagem. E eu nem pensei em fazer 70% das vendas pra mim, 30% pra ele. Fiz questão de que fosse meio a meio.”
A “patroa” do Coutinho é a Vera Lúcia, com quem logo celebrará bodas de ouro. Ela costura 400 sungas por semana para uma confecção. Em casa mesmo. Acha fácil conviver com o Coutinho, “só precisa ter paciência”. O chama de Honoróio, que é o terceiro nome de um homem sem sobrenome: Antônio Wilson Honório. Eles tiveram três filhos, duas meninas e um menino. O rapaz, Kleber, que jogou no juvenil do Santos – com a camisa 10 – morreu em 1989, aos 23 anos. O Coutinho não gosta de tocar no assunto, mas está assim na biografia autorizada Coutinho, o Gênio da Área, de Carlos Fernando Schinner: “A morte do filho é ainda hoje um assunto tabu para o ex-camisa 9. Coutinho não fala sobre a doença que matou Kleber e, ao lembrar-se do filho, com a voz embargada e lágrimas nos olhos, não se perdoa, acha que não ajudou o rapaz o bastante, como realmente deveria”. Sem saber o que dizer, digo que posso imaginar a dor que ele sente. O Coutinho me fulmina como numa cobrança de pênalti sem paradinha: “Você também perdeu um filho? Ah, não? Então, me desculpa, você não pode imaginar a dor que eu sinto”. Aos domingos, ele vai conversar com Kleber na missa da Igreja Santa Josefina Bakhita. “Sou devoto dela, uma santa dos escravos.”
O joguinho de tranca que o Coutinho disputa todas as noites ali mesmo no bar ao lado do Didi ainda vai longe. Seus companheiros de mesa brincam que, ao contrário dos tempos de centroavante, no pano verde felpudo ele segura demais o jogo. E tem pudores de sujar canastra com coringa de outro naipe. Coisas do Coutinho. Do Neymar ele não quer falar. De seleção brasileira, só um pouquinho, sempre em profundidade: “Seleção? Podemos chamar de seleção um time sem o Arouca, c@&*)*#?!”, ele pergunta retoricamente, citando o atual médio-volante do Santos e encaixando na frase um palavrão que rima com baralho. “O Mano Menezes não dura até a Copa. Deve entrar esse aí no lugar”, continua, apontando com o queixo o estádio do Peixe do outro lado da rua.
O “esse aí” é Muricy Ramalho, que de um jeito ou de outro tem um quê marrento do Coutinho. O Santos jogaria logo mais pela Libertadores e estranhamente nenhum dos quatro na mesa de tranca falava de futebol – nem mesmo o dono do estabelecimento, que carrega 12 escudos do Santos tatuados nos braços e um na testa. Ninguém xinga, ninguém bate na mesa... Uma modorra que só vendo. Coutinho acaricia o joelho direito que lhe custou a Copa de 62 e acabou sendo sua ruína, pede outra cerveja e acende um cigarro que talvez diga muito dele. Um Hilton Authentic.
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