Minha vida não é fácil. Meus pendores institucionalistas me tornam um fiel defensor do princípio da separação dos Poderes, que prevê um Judiciário independente do Executivo e do Legislativo. Penso que juízes constitucionais devem ter o poder de invalidar leis ou alterá-las para adequá-las à Carta, mas não podem abusar dessa prerrogativa, isto é, precisam resistir à tentação de agir como legisladores positivos.
Como conciliar isso com minha disposição a apoiar que o STF reconheça o direito ao aborto, descriminalize o uso de drogas e até decida sobre questões que nem estão em pauta, como a liberação da eutanásia? Entendo que leitores fiquem tentados a me tachar de hipócrita, que se opõe a que magistrados atuem como legisladores, exceto quando tentam implantar as normas que eu apoio. Mas existe uma explicação teórica para a minha posição.
A maioria das Constituições traz uma seção dedicada às garantias individuais, que faz recurso a conceitos abstratos de direito e liberdade. As Cartas evocam coisas como direito à privacidade e liberdade de expressão, de associação, mas não entram nos detalhes. Uma das funções de cortes constitucionais é definir os termos em que esses direitos e liberdades se articulam. Ao fazê-lo, estabelecem os contornos do próprio contrato social, que rege as relações dos cidadãos entre si e com o Estado.
Sob essa perspectiva, me parece muito razoável que os juízes definam que o direito à intimidade é de tal ordem que não admite que o legislador interfira sobre decisões irredutivelmente pessoais, como dar ou não sequência a uma gravidez, usar ou não substâncias psicotrópicas e continuar ou não existindo.
É claro que nesse pacote, ao menos na forma como eu o advogo, também entram pautas que desagradam à esquerda, como a legalização do jogo e o direito de clérigos de fazer pregações contra a homossexualidade ou que defendam a submissão de mulheres.
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