sábado, 23 de setembro de 2023

Casarão na rua Augusta guarda história de Spazio Pirandello, mercado de cultura nos anos 1980, FSP

Vicente Vilardaga
SÃO PAULO

Poucas construções guardam tanta história em São Paulo quanto o casarão no número 311 da rua Augusta, que hoje abriga a Cantina Piolin. Ali teria morado o escritor Oswald de Andrade na juventude e também funcionou o Spazio Pirandello, o bar e restaurante fervilhante durante boa parte dos anos 1980.

Há quatro décadas, o prédio, na região central da cidade, reunia a boêmia de esquerda e vibrava na atmosfera do fim do governo de João Batista Figueiredo, da abertura política, das Diretas Já e das mudanças de comportamento na sociedade.

O lugar ainda desperta a memória afetiva de pessoas que passaram por lá, aproximaram-se de celebridades e desfrutaram de noitadas conversando sobre todos os assuntos sem repressão. Os frequentadores habituais do bar o chamavam de "Piranda" e quem foi ao Pirandello nunca esqueceu.

Imagem do salão principal de uma cantina italiana, com mesas dispostas lado a lado e quadros nas paredes
O casarão na rua Augusta que há duas décadas abriga a cantina Piolin era onde funcionava o Spazio Pirandello nos anos 1980 - Zanone Fraissat/Folhapress

Sua trajetória foi tão marcante que rendeu dois livros, "Contos Pirandellianos – Sete Autores à Procura de um Bar", que comemorava o aniversário de cinco anos do estabelecimento, e "Spazio Pirandello – Assim Era, se lhe Parece", do jornalista Wladimir Soares, sócio na casa do ator e cozinheiro Antônio Maschio —morto em 2013.

"Era um espaço de segurança para a diversidade de ideias, posicionamentos, opiniões, sexualidades e de gênero", descreve o pesquisador da USP e professor Newton Branda, frequentador do Pirandello. "Todo mundo tinha muito estilo, havia uma absoluta liberdade de expressão e as roupas da época tinham um visual colorido e com figuras geométricas."

Branda lembra do bar com nitidez, com a visão de quem era estudante de jornalismo na PUC (Pontifícia Universidade Católica), em 1985, com 18 anos. Ele se vê subindo a escada lateral que dava acesso aos salões internos do casarão construído em 1905 e dar de cara com um espaço movimentado e com pessoas bem informadas e progressistas. "Na época, eu era estudante e tinha a sensação de estar entrando em um templo onde se encontravam os sacerdotes do conhecimento e da intelectualidade, o que para mim era um sonho."

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O carisma de Maschio, que era um eficaz assessor de imprensa e lançou a ideia de que o casarão teria sido habitado por Oswald, contribuía muito para a promoção do local. Wladimir Soares, que também recebia os clientes na entrada com um estilo todo próprio e quase sempre com chapéu, era crítico de música popular do Jornal da Tarde e cuidava de pôr de pé as ideias do sócio, como uma exposição com obras de Pablo Picasso de coleções privadas brasileiras em 1981, centenário do pintor.

No seu livro, Soares descreve o Pirandello como um caso bem-sucedido de marketing. Era um espaço múltiplo, que reunia bar, restaurante, livraria, galeria, antiquário. Aconteciam eventos o tempo todo. Havia uma calçada da fama, uma banda animada e constantes encontros políticos, artísticos e lúdicos. Soares e Maschio comandaram o bar até 1985 e depois o transferiram para dois gerentes da casa que levaram o negócio adiante até 1989, quando o fecharam por desavenças. Nesse período final de quatro anos, seus fundadores continuaram a organizar eventos, mas sem o mesmo empenho da fase inicial

"O Pirandello era um mercado de cultura, um mix de ações", afirma Soares. "Ainda estávamos na ditadura, mas era um lugar realmente democrático e aberto a todos."

O professor de literatura da USP Luiz Roncari era um dos frequentadores que chamavam o lugar de Piranda e foi um dos sete autores dos "Contos Pirandellianos".

"Frequentei o Pirandello por um bom tempo, ele foi o herdeiro do Quincas Borba e do Riviera, quando a boêmia paulista procurava um canto para compensar os danos da ditadura", lembra Roncari. "Era um bar mais alegre do que triste, como todo bar e toda festa que se enfeita para esconder a melancolia."

Os empresários Wladimir Soares e Antônio Maschio, donos do restaurante Spazio Pirandello, posam para foto em 1985
Os empresários Wladimir Soares e Antônio Maschio, donos do restaurante Spazio Pirandello, posam para foto em 1985 - Paulo Leite - 5.jan.85/Folhapress

Para Roncari, o Pirandello "foi bom enquanto durou, ajudou-nos muito a suportar a nossa 'noia', como dizem os italianos." Ele conta que ouviu falar da história de Oswald de Andrade na casa, mas que não há nenhuma comprovação de que tenha morado ali.

Também coautor do livro de contos sobre o Pirandello, o escritor Reinaldo Moraes diz que o bar "tinha tudo a ver com o movimento da sociedade civil pela redemocratização do país". "Quando inaugurou, eu estava morando na França. E assim que cheguei todo mundo só falava dele", conta. "Era um negócio bem bolado de marketing cultural, mais de esquerda e aproveitava a insatisfação geral com o governo militar. Além disso, tinha uma frequência eclética."

Quanto à moradia de Oswald de Andrade, Moraes diz que há muita controvérsia. "A família de Oswald tinha muitos terrenos na região, mas até onde eu sei não eram exatamente ali", afirma. "Wladimir e Maschio deixavam a história rolar porque isso contribuía para a mística do lugar."

Apesar dos rumores, quem construiu e habitou a casa durante muito tempo e a deixou para seus herdeiros foi um farmacêutico que usava o porão como laboratório para fazer experiências científicas.

O jornalista Eugênio Melloni, então estudante da Faculdade Casper Líbero, é outro que tem recordações claras do Pirandello. Lembra da efervescência do lugar e dos selinhos transgressores que Maschio dava nos amigos que chegavam.

Outra memória de Melloni é a gustativa. Seu prato preferido era o Isadora Duncan: frango a doré recheado com queijo prato, coberto com molho rosé e acompanhado de arroz branco e batata palha. No restaurante, cada prato tinha o nome de uma personalidade do mundo das artes e do conhecimento.

Além das várias camadas de história que o casarão guarda, a própria Cantina e Pizzaria Piolin tem uma longa tradição e sua própria trajetória virtuosa. Sempre foi um restaurante popular, frequentado pelo pessoal que trabalha nos teatros do centro e com público cativo. Fundada em 1969 por José Alves de Godoy, o Mosquito, ex-garçom do Gigetto, funcionou até o século passado em outro endereço da rua Augusta, no número 89. Só em 2000 transferiu-se para o casarão que foi do Pirandello.

A proprietária do Piolin, Regina Alves de Godoy, filha do fundador, fez uma completa reforma no prédio em 2012 e manteve a maior parte das características arquitetônicas originais. "Fiz uma reforma grande na parte dos fundos onde existia um quintal e os três salões viraram quatro", conta. "E a parte de baixo, o porão, que o Pirandello usava como espaço de exposições, transformei numa área operacional."

De alguma maneira as vibrações do Pirandello persistem por ali. O casarão continua sendo muito frequentado e se mantém conservado. Patrimônio da cidade, ele preserva uma enorme carga imaterial.

 

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