quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Como a matemática explica as cidades, FSP

 Edgard Pimentel

Estima-se que mais da metade da população mundial viva em cidades. A projeção para 2050 salta para quase 70%, de onde se conclui que a vida na cidade deve oferecer desafios cada vez mais estimulantes para quem se ocupa do planejamento desses espaços. Entre as ferramentas mais efetivas para essa tarefa está a matemática, e as instâncias em que ela aparece são, no mínimo, surpreendentes.

Antes de falar de ferramentas concretas, e do uso de matemática que acaba de sair do forno para deixar a vida nas cidades mais fácil, vale mencionar algumas curiosidades. A primeira tem a ver com a população dos maiores centros em um determinado país. O Censo 2022 calcula que São Paulo tenha pouco mais de 11 milhões de habitantes, enquanto o Rio de Janeiro teria 6 milhões, e Brasília quase 3 milhões de habitantes. A partir daqui, a população divide-se por dois a cada posição que descemos no ranking.

arte ilustra uma baleia azul sobre a qual está erguida uma cidade com prédios e árvores
Ilustração: Valentina Fraiz - Instituto Serrapilheira

Fato parecido acontece em Portugal, nos Estados Unidos e no Kiribati. Na verdade, esse é um padrão comum conhecido como Lei de Zipf, e há quem sugira explicações teóricas para tal fato. Uma delas tem a ver com externalidades de escala, e traduz-se pela máxima de quanto mais atividade existe em uma cidade, mais atividade esta cidade é capaz de atrair.

Outra classe de curiosidades urbanas tem a ver com a escala. Por exemplo, se uma população dobra de tamanho, como aumenta a criminalidade? Será que também dobra? E o número de postos de combustível? Em um artigo publicado em 2007 nos Proceedings da National Academy of Sciences, a prestigiada PNAS, o físico português Luís Bettencourt e seus colaboradores investigaram essa questão e obtiveram respostas de fato interessantes. Os pesquisadores propõem um modelo exponencial, em que a ocorrência de um fato (crime) ou a demanda por um serviço (postos de combustível) são determinados pela população da cidade elevada a um expoente. Se o expoente for igual a 1, o atributo em questão é linear com respeito ao tamanho da população. Um expoente maior do que 1 indica crescimento superlinear, enquanto um expoente menor do que 1 indica crescimento sublinear.

No caso dos crimes graves, o expoente estimado é 1,16, ou seja: se a população é multiplicada por 2, o número de crimes graves mais do que dobra. Quando o assunto são os postos de combustível, o cenário é diferente, com um expoente 0,77. Ou seja, aumentar a população por um fator K implica aumentar o número de postos de combustível por um fator K3/4. Uma curiosidade sobre o expoente 3/4: o mesmo expoente é encontrado na biologia, quando se estima a necessidade energética em termos do peso de um mamífero, por exemplo — talvez uma cidade seja só mais uma forma de organismo.

Até aqui, a conversa é mediada por informação empírica, e a matemática surge quando olhamos com cuidado para os dados. Entretanto, é de se esperar que matemática pura, teórica, seja capaz de orientar a formulação de políticas públicas que aperfeiçoam o funcionamento das cidades. Um exemplo fundamental tem a ver com o trânsito.

Mobilidade urbana implica, em grande medida, transportar uma massa (de pessoas) de um ponto a outro do espaço, da melhor maneira possível. Ou seja, um problema moderno de matemática conhecido como transporte ótimo. A pergunta é como desenhar um mecanismo que transporta pessoas através de uma rede de vias ao longo da cidade.

Vamos imaginar que uma cidade seja como um grafo, em que as vias são as arestas e os cruzamentos os vértices. O que nos interessa é encontrar um plano de transporte que permita mover massas de agentes ao longo do grafo da forma mais econômica possível. Na literatura, tal plano é referido como equilíbrio de Wardrop, desde que o matemático inglês John Glen Wardrop introduziu o conceito no começo dos anos 1950.

Um dos desafios da pesquisa atualmente é encontrar condições realistas sob as quais se demonstra a existência desses equilíbrios. Este ano, um avanço importante nessa direção foi obtido pelos matemáticos Héctor Chang-Lara e Sérgio Zapeta, ambos do Centro de Investigações Matemáticas, em Guanajuato, no México. Eles foram capazes de incorporar o volume de tráfico de toda a rede de transporte no modelo e ainda assim provar a existência de equilíbrio de Wardrop.

Outro problema urbano em que a matemática pode ser muito útil é a criminalidade. Modelos matemáticos baseados em equações diferenciais parciais ajudam a prever a densidade da atuação criminosa em uma área urbana e também permitem desenhar políticas públicas de combate ao crime. O princípio básico do modelo é a velha máxima de que a oportunidade faz o ladrão. Supondo que uma cidade seja composta por ruas paralelas e transversais, e que crimes aconteçam apenas nos cruzamentos dessas vias, o modelo considera a atratividade de cometer um crime em uma dada esquina.

Mensurar a atratividade implica estimar o potencial ganho do criminoso, a chance de ser apanhado, a taxa de sucesso do crime na área no passado etc. Uma vez que se caracteriza a atratividade, pode-se formular a probabilidade de uma ocorrência. Aqui, surgem duas equações dependentes entre si: uma que modela a atratividade e outra a probabilidade de um crime ocorrer. Ao abordar ambas em simultâneo, em tese seria possível conhecer a maneira mais eficaz de policiar uma dada região.

A matemática sempre oferece belas ferramentas para entender o mundo à nossa volta. No caso da vida urbana não é diferente. Seja na análise dos dados, seja na formulação de modelos sofisticados para atacar problemas concretos, a matemática é um oásis em qualquer selva de pedra.

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Edgard Pimentel é professor do Departamento de Matemática da Universidade de Coimbra e pesquisador do CMUC.

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