A história de como, por escassez de microchips e fragilidade das instituições sob Bolsonaro, o Brasil quase ficou sem eleição eletrônica em 2022 — e como Barroso a salvou |
Por Pedro Doria
Quando começava o segundo semestre, em 2021, o ministro Luís Roberto Barroso recebeu em seu gabinete o embaixador de Taiwan no Brasil, Tsung-che Chang. Barroso estava ansioso e o embaixador não faria muito para tranquiliza-lo. “Para minha surpresa”, ele lembra, “era um diplomata mórmon que a cada frase repetia ‘Deus há de prover’.” Quanto mais o ministro explicava a situação, por mais que entrasse em detalhes, que descrevesse o problema, a resposta era a mesma. “Deus há de prover.” Ao se despedir, Barroso arriscou. “Mas, além de Deus, alguém mais pode ajudar?”
Ministro do Supremo, Barroso estava presidente do Tribunal Superior Eleitoral e tinha a responsabilidade de organizar talvez a mais complexa eleição presidencial da história da Nova República. Em junho, foi informado por teleconferência, pelos executivos da Positivo Tecnologia, de que não conseguiriam entregar em tempo as 225 mil urnas eletrônicas que a empresa do Paraná havia sido contratada para montar. Quase metade das urnas que a eleição nacional precisava. Ocorre que a escassez pós-pandemia da Covid no mercado mundial de microprocessadores fazia com que comprar chips se tornasse quase impossível. Cada urna levava dois microchips, um fabricado pela americana Texas Instruments, o outro pela taiwanesa Nuvoton. Barroso precisava consegui-los ambos. E rápido.
Enquanto o presidente do TSE conversava com o embaixador de Taiwan, tramitava na Câmara o projeto de lei 135/2019, da deputada Bia Kicis, tentando obrigar o voto impresso. A lei não seria aprovada e o projeto seguiria para arquivamento em agosto. Ninguém que acompanhava a política, em Brasília, acreditava que o voto impresso se tornaria exigência legal. Mas o presidente Jair Bolsonaro já estava engajado no ataque ao sistema eleitoral brasileiro, assim como ao Poder Judiciário. O objetivo político do PL 135/19 não era virar lei, era ser derrotado e, com isso, mobilizar com mais intensidade a base eleitoral do candidato à reeleição. Criar o argumento de que “o sistema vai roubar a eleição de Bolsonaro”. Em setembro, no dia 7, enquanto a independência completava 199 anos, por sete vezes a PM do Distrito Federal impediu que caminhoneiros avançassem para invadir o prédio do Supremo Tribunal Federal. Em São Paulo, discursando para a maior multidão que se reuniu para assisti-lo desde que chegara à presidência, Bolsonaro afirmou que não mais obedeceria a decisões do ministro Alexandre de Moraes, colega de Barroso no STF e seu vice-presidente, no TSE. Aquele segundo semestre foi seu momento de maior agressividade.
E enquanto isso, sem que o país soubesse, Barroso tinha este problema nas mãos: a empresa que havia ganho a licitação para entregar 225 mil urnas eletrônicas novas não ia conseguir fazê-lo. Não era pouco. As eleições presidenciais de 2022 contariam com 577.125 urnas. As urnas que o TSE havia adquirido representavam 40% do total. Havia um plano de contingência para recauchutar modelos antigos ainda à disposição, mas ainda assim faltariam.
Talvez um percentual considerável das seções eleitorais precisasse voltar à cédula de papel. Neste cenário, como sustentar o argumento de que o voto eletrônico deveria seguir puro? Ou, mais precisamente, como evitar que Bolsonaro ampliasse a confusão no ambiente eleitoral?
A primeira ação de Barroso foi procurar ajuda com o Itamaraty. O chanceler Carlos França foi amistoso, mas inoperante. Tinha, em mãos, duas questões que limitavam seu espaço de ação. A primeira era com Taiwan. Após passar dois anos atacando a China, o governo Jair Bolsonaro começou a criar tanto ruído que as exportações do agronegócio para seu principal cliente começaram a encontrar dificuldades. França tentava amaciar o caminho com Beijing. O Brasil não tem relações diplomáticas oficiais com Taiwan — em Brasília, não há uma embaixada plena. Tsung-che Chang era o diplomata responsável por uma representação comercial e cultural. Iniciar uma conversa naquele momento, considerava o chanceler brasileiro, era temerário. Poderia irritar os chineses. França tinha um segundo problema: seu chefe. Ajudar o Judiciário em geral, o TSE em particular, não estava nos planos.
Barroso partiu, então, para o improviso brasileiro. Ele próprio, ministro do Supremo, presidente do TSE, ia tocar a diplomacia. Ocorre que, até 28 de julho de 2021, o embaixador americano no Brasil ainda era Todd Chapman, o enviado de Donald Trump. E ele recusou cada um dos convites do ministro para conversa. Quando Chapman enfim deixou o cargo, o governo Joe Biden recusou-se a substituí-lo até haver um novo ocupante no Planalto. Isso deixava Barroso sem ter com quem conversar. Não havia caminho oficial.
Quem veio em socorro foram dois embaixadores aposentados. Pelo lado brasileiro, Rubens Barbosa, e pelo americano, Thomas Shannon. Um havia servido em Washington e, o outro, em Brasília. Tinham trânsito fluido e os dois se engajaram na conversa com a Texas Instruments que, quando enfim compreendeu a delicadeza daquele carregamento em particular de microprocessadores, os liberou para a Positivo.
Mas ainda havia Taiwan. “Deus há de prover.” E proveu. Passados dias longos, o embaixador retornou a Barroso. Muito formal, com muita antecedência, o diplomata explicou ao ministro que ele receberia uma ligação no dia 9 de setembro de um dos três vice-ministros de Relações Exteriores da ilha. Uma ligação, que por ser feita de uma metade para a outra do mundo, aconteceria às 22h.
E Barroso esqueceu.
Era o auge da tensão, dois dias após o Sete de Setembro bolsonarista. Dia no qual deputados começavam a debater a possibilidade de impeachment, Arthur Lira se fechara em copas em Alagoas e o ex-presidente Michel Temer aterrissara em Brasília para costurar o pedido de desculpas de Bolsonaro com Alexandre de Moraes.
Dias exaustivos. Às 22h, quando tocou o telefone, o presidente do TSE estava de pijamas, em casa, assistindo à vitória do Flamengo de Renato Gaúcho por 3 a 0 contra o Fortaleza. A chamada era por vídeo. Não havia tempo de trocar de roupa.
Foi uma conversa curta a de Luís Roberto Barroso, de pijamas, com o vice-chanceler de Taiwan. Enquanto o ministro erguia o telefone para manter na tela sua imagem apenas do pescoço para cima, ouviu. Taiwan havia requisitado à Nuvoton que separasse para a Positivo 400 mil microchips. Era só pegar. “Tive de explicar a ele que só poderíamos comprar os 225 mil licitados”, lembra o ministro.
A Positivo conseguiria entregar até março de 2022 todas as urnas.
Essa é daquelas histórias que não podem se perder, então fica aqui. Para o registro. Mas ela também diz muito sobre o Brasil. Por um lado mostra como problemas simples se tornam muito mais complexos quando um presidente sequestra instituições. Itamaraty omisso, Congresso Nacional alheio e um debate delicado, como o da dificuldade de montar as urnas para uma eleição nacional, tendo de ser feito a portas fechadas. O Brasil funciona mal quando travas artificiais são postas no funcionamento do Estado. Mas, no Brasil, improvisa-se. Caminhos diferentes são encontrados. Como, de fato, foram.
Em meio à confusão, num momento, Barroso chamou a seu gabinete o assessor de cooperação internacional do Supremo, José Gilberto Scandiucci Filho. “Você tem diante de si a missão da sua vida”, afirmou. A missão era descobrir quem precisava ser envolvido para conseguir que as empresas compreendessem que a democracia brasileira dependia daqueles dois carregamentos de microchips. Tudo em meio a uma escassez mundial, com transnacionais pesadas pagando alto para entrar na frente na fila de compra. Deu certo.
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