sábado, 16 de setembro de 2023

UMA MICROEXPLOSÃO HABITACIONAL Por Adriano Oliveira. MEIO


O sonho da casa própria, com quartos, garagem e um grande espaço para os cachorros e aquele almoço de domingo com a família parece estar cada vez mais distante da realidade do brasileiro médio. No lugar, uma singela alternativa tem se apresentado. Conhecido em países asiáticos e bem difundido na Europa, o fenômeno dos microapartamentos tem ganhado força nos últimos anos no Brasil. Apesar de não haver consenso sobre o quão micro o imóvel deve ser para ser oficialmente considerado micro, eles costumam ter, em média, 30m² de área, podendo ser encontrados em versões ainda menores, de apenas 10m². Localizados majoritariamente em pontos estratégicos das cidades, como polos gastronômicos, centros comerciais e áreas com opções de lazer e entretenimento, a aceitação desse tipo de empreendimento pelo público brasileiro parece ter sido positiva. Pelo menos na cidade de São Paulo, onde o número de apês minúsculos cresceu 3.427,33% em seis anos, segundo o Sindicato da Habitação de São Paulo (Secovi-SP). Foram 16.261 unidades de até 30m² vendidas no ano passado, contra as 461 lançadas em 2016. As zonas Oeste e Sul são responsáveis por três em cada quatro dessas moradias disponíveis na capital. Só o bairro de Pinheiros, incluindo a badalada Vila Madalena, na Zona Oeste, colocou à venda 18,4% do total de microapartamentos na cidade.

Quanto mais próximos do centro comercial e mais bem ancorados nas malhas de transporte público, menores e mais caros — ou seja, maior o custo do metro quadrado. As vendas desses imóveis cresceram no setor em que o mercado imobiliário chama de “segmento econômico”, custando até R$ 350 mil por unidade. O aluguel de uma dessas “quitinetes gourmet” passa facilmente dos R$ 2 mil.

Geralmente, quem procura essas opções de moradia são jovens adultos, solteiros, de classe média, que querem morar mais perto do trabalho ou em regiões bem localizadas de grandes cidades, como a capital paulista, com metrô e pontos de ônibus muito próximos da portaria do prédio. Apesar de serem mais raros, novos casais sem filhos também compram ou alugam esses studios. Mesmo que não haja espaço para ter uma cozinha completa, ou mesmo um lugar para lavar a roupa suja (literal ou figurada), o tamanho não é visto como problema, pois a ideia é fazer quase tudo fora: comer no restaurante, lavar na lavanderia, trabalhar na empresa ou em coworkings. Dormir pode ser em casa mesmo. Mas sem visitas, festas, ou reuniões de família.

Nem tudo se resolve na rua, porém. Laisa Stroher, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ e pesquisadora do LabCidade, lembra que no Brasil “temos uma urbanidade na maioria das cidades muito pobre em oferta de áreas de lazer e de convivência. Isso pode ser uma questão, pensando na qualidade de vida”.

E a saúde?

Em que pesem as comodidades de se viver em habitações como essas, especialistas apontam impactos significativos no bem-estar dos moradores. Para Simone Cohen, pesquisadora titular do departamento de saneamento e saúde ambiental da Fiocruz, os efeitos na saúde de quem habita microapartamentos começam na questão psíquica. Viver em espaços minúsculos faz com que a pessoa seja robotizada. “As pessoas precisam de espaços para relaxar, para poder dormir. Não são uma máquina que desliga e dorme.” Estar num apartamento tão pequeno afeta diretamente o lado psicológico do indivíduo, pela semelhança do ambiente com uma cela, segundo Cohen. “A casa deixa de ser um abrigo para se tornar um refúgio — da chuva forte, do vento e do frio.”

Se a saúde mental é afetada, o próximo passo é a biológica. Um exemplo: por conta do tamanho, a ventilação não é adequada, na maioria dos casos, o que pode fazer o morador desenvolver problemas respiratórios com o uso excessivo do ar condicionado. “Quando você condiciona o ar e não faz a manutenção adequada, tirando filtros e limpando, daqui a pouco está respirando todo o ar contaminado vindo de fora”, destaca Cohen. Mesmo que o ar seja centralizado, pode haver um problema de adaptação com a temperatura. “Muitas vezes a pessoa é mais friorenta, então, ou ela fica com o ar desligado [e calor] ou com frio.”

Além do fator mental e biológico, entra em cena a questão física. Mesmo morando sozinha, uma pessoa com sobrepeso ou obesidade pode ter dificuldades de circular pelos espaços. Isso fica mais evidente no banheiro, que é reduzido, amontoando box, vaso sanitário e lavatório de uma maneira que dificulta a locomoção de quem não tem um porte físico delgado. “Um apartamento desses está sendo desenhado para pessoas mais magras”, pondera Cohen.

Democracia habitacional

Ainda que parte da oferta desses microapartamentos seja feita com apoio de políticas públicas, como o financiamento facilitado pelos programas Minha Casa Minha Vida, dos governos petistas, ou do Casa Verde e Amarela, da gestão anterior, esses imóveis não ajudam a reduzir o déficit habitacional. Até porque, pelo espaço dessas moradias, não são famílias inteiras que moram lá, mas pessoas solteiras e sem filhos, com alguma reserva financeira para pagar os altos valores cobrados por aluguéis ou parcelas de financiamento. Ficam de fora os de baixa renda, que vivem em áreas de risco ou não têm nenhuma condição de pagar por uma moradia. “A gente vê essa contradição. Por um lado, temos um visível crescimento da população de rua e aumento dos despejos relacionados ao aluguel, enquanto acontece essa explosão dos microapartamentos, incentivados pela política pública”, analisa Laisa Stroher.

Com o perfil de valor alto pela metragem, a consequência é a chamada gentrificação das áreas onde esses empreendimentos são erguidos. Em vez de atender a população mais pobre, eles a expulsam dali. “Esses novos empreendimentos, muitas vezes, vêm substituindo habitações que antes eram ocupadas por grupos sociais de menor renda”, pondera Stroher. Nessa lógica, esses imóveis acabam sendo alvo de especulação imobiliária. Os imóveis acabam usados para investimento para quem quer lucrar com aluguéis altos ou para locação de curto prazo, de Airbnb. Ou na clássica reserva de valor de mercado, ficando frequentemente vazios.

Para Stroher, as políticas públicas estão focadas na produção de novas moradias, atreladas à política econômica de alavancar a economia por meio da construção civil. Em vez disso, o melhor seria diversificar a oferta, olhando para diferentes grupos sociais. “Teria de ter, por exemplo, uma política direcionada à população em situação de rua; população que mora em cortiços; urbanização de favelas, com melhorias das condições urbanas; e políticas de ocupação dos imóveis vazios”.

O centro é branco

Um estudo do LabCidade mostra que essas construções, além de não diversificar a classe social do público que habita novos empreendimentos do centro urbano, também favorece um grupo racial específico. O mapa produzido pelos pesquisadores mostra que são as pessoas brancas das classes média e alta que habitam esses bairros transformados pelo mercado imobiliário da capital paulista, restando aos negros os conjuntos habitacionais construídos por políticas públicas como os CDHUs e as Cohabs.

As áreas na região central em que aparece um domínio negro, como a Bela Vista, Santa Efigênia e Sé, têm esse perfil pela presença de pensões e ocupações, enquanto a população branca se divide entre áreas verticais, na região da Paulista e Higienópolis, e mais horizontais, com mansões em bairros como o Pacaembú. Esse processo não apenas deixa o centro mais elitizado como também embranquecido. “A gente vê que quem mora, principalmente, nas áreas mais verticalizadas da cidade é a população branca. E esses microapartamentos estão nesses novos empreendimentos verticalizados”, conclui Stroher.

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