Há algumas semanas, durante um megaevento evangélico, o pastor Silas Malafaia, velho comparsa de Jair Bolsonaro, disse que o Brasil é de Jesus. Não é, mas vai que cola.
Em tese o Brasil é dos brasileiros e entre eles há muitos para quem Jesus não diz absolutamente nada. Há também quem não acredite em Deus. Nenhum Deus. O Brasil, que ainda é uma república e uma democracia, também é deles.
Dizer que o Brasil é de Jesus é uma maneira esperta de dizer que o Brasil é de quem fala em nome de Jesus, já que Jesus não fala por si. Nem Deus. Se falassem, quem fala por eles seria obrigado a calar a boca. E sair de fininho, se tivesse sorte. Imagine Silas Malafaia dizendo que o Brasil é de Silas Malafaia e de sua turma, na frente de Jesus. Não pegava bem. O que leva a crer que, para falar com segurança e tranquilidade em nome de Deus, só tendo certeza de que ele não vai aparecer ou não existe.
Os gays costumam ser uma obsessão de quem fala em nome de Jesus. E não só. Mundo afora a população LGBTQIA+ é alvo das fantasias mais raivosas e assassinas dos porta-vozes de Deus. Vai saber por quê. Os próprios incomodados não sabem responder. Não sabem exatamente onde está o problema nem a lógica. Repetem que está na Bíblia ou no Corão. É estranho que quem não respeita a vida dos outros espere que respeitem a sua. Também está na Bíblia. A Bíblia está cheia de contradições.
A Bíblia existe bem antes de Jesus nascer. Foi escrita há milhares de anos, ao longo de séculos, por gerações de escribas anônimos. Recém-publicado pela Cambridge University Press, "Why the Bible Began" (por que a Bíblia teve início), de Jacob L. Wright, professor de estudos bíblicos da Universidade Emory, tenta dar uma resposta histórica para a origem do Velho Testamento. Não tem a ver com Deus, mas com os homens, com poder e política, com a invenção e a sobrevivência de um povo e de uma nação.
Em meados do milênio que precedeu o nascimento de Cristo, Israel era uma tripa de terra sem maior interesse além de servir de ponte entre as grandes potências que a esmagavam e subjugavam (os egípcios de um lado; os assírios, os babilônios e os persas do outro; mais tarde também os gregos e os romanos).
Na verdade, nem Israel era o que hoje chamamos de Israel, nem os judeus um povo só. Estavam divididos em reinos rivais e antagônicos: Israel ao norte, tendo Samaria como capital, e a Judeia ao sul, onde fica Jerusalém. Outros povos habitavam a atual faixa de Gaza, a região do Neguev e as terras a leste do rio Jordão e do mar Morto.
Wright se pergunta por que apenas a união de dois pequenos reinos periféricos, massacrados por potências vizinhas, foi capaz de produzir um texto fundador que se mantém presente e determinante mais de dois milênios depois. Por que nenhum desses impérios vizinhos deixou nada parecido?
A resposta está na derrota, na condição do perdedor. Cercados por inimigos poderosos, sucessivamente escravizados, privados de Estado e território, só restava a esses dois pequenos reinos adversários compor uma identidade comum a partir da combinação das diferenças (entre clãs, etnias, cidades, histórias concorrentes e até mitos dos povos que os dominavam) num único corpus. Uma "narrativa nacional" feita de fragmentos heterogêneos.
A tese de Wright, incorporando achados arqueológicos relativamente recentes a uma leitura perspicaz das Escrituras, é que a Bíblia é uma ficção (uma "narrativa", como se convencionou dizer nos últimos tempos) que a rigor não corresponde à verdade dos fatos e à história porque tem antes a função histórica inédita de assegurar a criação de uma memória coletiva, comum, na diversidade e na adversidade, uma nação capaz de resistir e sobreviver sem Estado, sem rei, sem exército e sem território, o "povo do Livro".
A Bíblia é um monumento à derrota, ou mais propriamente aos derrotados. Faz parte das grandes narrativas da humanidade, as mais cativantes, que pedem paciência e força, porque o dia da vitória há de chegar.
No final das contas, é o que Silas Malafaia também espera ao dizer que o Brasil é de Jesus. Espera o fim do Estado democrático como regime plural, heterogêneo, de histórias concorrentes. Ensaia a invenção de uma nação homogênea, sujeita às leis, aos interesses e à história de um único grupo. Ao contrário da comunhão na diversidade proposta pelo projeto original e pedagógico da Bíblia segundo Wright, a sua quer ser, como muitas outras que desde então se serviram da palavra de Deus para erguer fronteiras, uma nação por exclusão.
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