terça-feira, 19 de setembro de 2023

A esfinge lava-jatista, em síntese, Conrado Hübner Mendes, FSP

 

Jair Bolsonaro trouxe de volta miséria e fome, pólio e sarampo, medo e censura. Ampliou o medo de falar sobre justiça e o medo de existir por sua sexualidade e cor da pele. Disse que cada um é livre para agredir a diferença, ignorar a morte e desobedecer a lei. As ruas repercutiram.

Augusto Aras tem muito a ver com isso. Sabe o que fez no inverno passado. Omitiu-se, intimidou desafetos e exauriu a energia institucional e moral do Ministério Público Federal. Ilegalmente. Não correu risco de pagar pelo malfeito porque teve astúcia para trancar investigações criminais contra si. E audácia de buscar recondução e divulgar, como suas, realizações de outros procuradores que atuaram sob risco de perseguição.

Também rastejou, beijou a mão e discursou teses jurídicas do gabinete bolsonarista. Passou agora a fazer o mesmo na direção de Lula. A tradição da pornografia colaboracionista sem ideologia, só arrivismo, não foi inventada por ele, mas ganhou ali versão de singular repugnância.

0
Aras e Lula no plenário do STF, em sessão de abertura do ano Judiciário - Fellipe Sampaio-1.fev.23/SCO/STF

Em entrevista para a Folha, em 2021, Aras foi perguntado como "sonha que sua biografia entre para a história". Respondeu "abra meu Lattes". Indagado por Thais Bilenky, no podcast Alexandre, sobre críticas à sua gestão, retrucou "vá pesquisar".

Criticado por Miriam Leitão, alegou que "essa senhora parece ter um fetiche comigo". Seu ideal de respeito a mulheres, afinal, é permitir a elas "o prazer de escolher a cor das unhas que vão pintar, do sapato que vão usar".

A série da esfinge lava-jatista abriu o Lattes e foi pesquisar. Não por fetiche, mas curiosidade. Resumiu o que encontrou nesses oito capítulos. Descreveu a manipulação retórica de uma esfera pública que desistiu de entender a profunda equivalência entre lava-jatismo e anti-lava-jatismo, entre Aras e DallagnolGilmar Moro, entre os autodeclarados "garantistas" e os heterodeclarados "punitivistas".

PUBLICIDADE

Um xadrez inteiramente político, pintado com o verniz da fraseologia jurídica.

Lula, enquanto isso, debate a sucessão do PGR com juristas do mesmo tronco familiar. Consulta até Gilmar Mendes, o juiz que viabilizou sua prisão, acelerou remoção de Dilma Rousseff e posou de herói do estado de direito. A advocacia progressista por autodeclaração, que gritou golpe mas nunca deixou de adular o facilitador do golpe, continua a lutar por influência e honorários, sua causa primária. O bacharelismo cordial explica.

Lula tem nova chance de se fazer refém da teia magistocrática. Basta emplacar os agentes do domínio de Gilmar & Cia na PGR e no STF. Mas poderia fazer diferente.

Um novo PGR precisa ter as qualidades gerais para os cargos jurídicos mais altos do país, como trajetória de peso e notório saber. Mas precisa de bem mais do que isso. Diante da terra arrasada, deve ter um plano para reconstruir os laços de confiança entre os vários níveis do MPF; de liderança para gerir uma instituição desse porte, da qual não é chefe hierárquico, mas regente de procuradores com autonomia funcional.

Precisa também ter diagnóstico claro dos abusos que o MPF cometeu na última década: o MPF da Lava Jato de Curitiba e a PGR sob a liderança de Augusto Aras. Deve praticar independência além de se dizer independente. E entender que é mais importante ser independente do que receber medalhinhas de generais, abraços do presidente ou livro de homenagem da advocacia à sua "obra".

O novo PGR será fundamental para o MPF do futuro, mas também para escrutinar o descalabro operado por Aras no passado. Deve investigar, por exemplo, por que a minuta de decreto de golpe, encontrada com o ex-ministro da Justiça, além de instituir estado de defesa, criava "Comissão de Regularidade Eleitoral" com assento destacado para o MPF. Talvez tenha a ver com a ideia de "democracia militar" que Aras esposou. Ou coisa mais grave.

Aras afirmou que fanáticos acampados em quartéis e estradas, no aquecimento para a tentativa de golpe de 8 de janeiro, eram "rescaldo indesejável, porém compreensível". Lula poderia ajudar a eliminar esse "rescaldo indesejável, porém compreensível" do bolsonarismo.

O fim do mandato de Aras só não é melancólico porque a melancolia supõe algum autorrespeito. Mas Aras sairá vitorioso se, no seu lugar, Lula nomear um de seus clones: inexpressivo na carreira, dócil com o poder, indócil com a crítica, indiferente ao sofrimento, inescrupuloso com a Constituição.

Nenhum comentário: