A casa da minha infância tinha paredes de cal que soltavam lascas enormes como beiju. Seu jeitão de igreja de filme de terror não assustava crianças em alguma cidadezinha de interior, mas em uma paralela da Rebouças. Havia uma chaleira velha e pesada que apitava de um jeito que na época já era raro de se ouvir; diria que era espécie ameaçada, hoje praticamente extinta.
Anos à frente, lembro-me descendo a Augusta observando os lambe-lambes sobrepostos, misturando suas cores de modo indefectível: o preto, o branco e aquele rosa que se queria vermelho. Quem não tem essa referência mas conviveu com camisetas estampadas em casa e com o mimeógrafo sabe de que vermelho desbotado pelo tempo estou falando.
A gente tende a conceber a passagem dos anos pela sucessão de formas e comportamentos, mas é preciso ter em mente que o envelhecimento das coisas também muda, o que não é fácil de capturar —tanto que não se encontram livros ou ensaios em revistas de impacto contando a história do envelhecimento, na linha do que Foucault fez com a loucura e a sexualidade.
A ficção científica ilustra bem o desafio. No cinema, duas estéticas definem o clima da maioria das produções: utópica e cyberpunk. Aquela é marcada pelo signo da higiene, com muito branco, telas e outros vidros, além de sons sintetizados para criar atmosferas computacionais.
A assepsia dominante funciona bem em narrativas distópicas, por realçar a beleza falha das emoções humanas, como em "Black Mirror". Já esta encena a impureza, especialmente a de natureza maquínica, como em "Mad Max" e nas terras esquecidas pelo Império em "Guerras nas Estrelas", onde dirigíveis capazes de parar no ar sem hélices enferrujam em ferros-velhos como os nossos. O cyberpunk é poluído, servindo bem de pano de fundo para o mito do herói, que faz a audiência atravessar o sufoco mirando sentimentos reconfortantes como confiança, amor e honra.
Ambientes assépticos pressupõem que as coisas não envelhecem, o que não é realista, ao passo que o cyberpunk explora a degradação a partir de paradigmas antigos, sem levar em conta que as coisas se transformam de maneiras específicas em cada ciclo. Não sei do que serão feitas estas naves, mas duvido que a resposta seja ferro.
Outro domínio em que se aplica o princípio de que a degradação varia de época em época é o do envelhecimento humano. As pessoas da década de 1920 pareciam mais velhas do que seus pares da mesma idade de 2023. Isto não é apenas consequência de associarmos roupas, cabelos e posturas registradas em fotografias de baixa resolução aos nossos avós. Esta impressão está amparada por mudanças biológicas, as quais estão se acelerando.
A chave para compreendê-las é a noção de idade biológica, a qual circunscreve os fenômenos extragenéticos que determinam a variabilidade interindividual na saúde e aparência dos diferentes órgãos, incluindo a pele. "Ao passo que a idade cronológica se refere ao tempo de existência de uma pessoa, a idade biológica se refere às alterações epigenéticas e metilações do DNA, cujas expressões determinam quão saudável ela está e quais as suas chances de ter doenças ligadas ao envelhecimento. Enquanto a idade cronológica aumenta por igual para todos, a idade biológica não o faz" (Räsänen, 2021).
A idade biológica é fluida. Estresse crônico faz com que se eleve e o seu manejo rejuvenesce. Um experimento com pessoas de 50 a 72 anos mostrou que é possível reduzi-la em mais de 3 anos, adotando medidas não draconianas por 8 semanas (Fitzgerald, et al., 2021), enquanto casos anedóticos indicam que é possível ir muito além. Um exemplo é dado por Bryan Johnson, empresário de tecnologia obcecado pela juventude que supostamente reduziu a idade de sua pele em 22 anos, entre outros feitos, cuidadosamente publicizados.
Cientistas americanos mensuraram a relação entre as idades cronológica e biológica de uma grande amostra de adultos do seu país, entre 1988 e 2010. A conclusão foi que esta vem se alterando pela desaceleração da idade biológica.
A redução no passo do envelhecimento biológico leva-nos a organizar a vida em fases cada vez mais duradouras e a perceber a saúde e a aparência como mais estáveis do que no passado. É provável que também mude os juízos correntes sobre relacionamentos entre pessoas de gerações distintas e torne o entretenimento de base social cada vez menos nichado, dada a mitigação do contraste intergeracional aparente.
Em paralelo, o fenômeno leva a concepções e práticas determinadas pela elasticidade biológica das diferentes dimensões da nossa existência. O envelhecimento da pele e o crescimento da circunferência das orelhas com os anos não são igualmente flexíveis, ainda que ambos se relacionem com a degradação do colágeno. Será que orelhudos de 80 anos com cara de 40 serão o novo normal? Não creio, mas tampouco descarto a possibilidade de que novos fenômenos etários ganhem destaque em algumas décadas. Uma coisa é certa: vamos precisar muito da Mirian Goldenberg.
Estas pessoas viverão em ambientes parcialmente diferentes dos nossos. Em algum momento, as coisas velhas serão estas que hoje nos parecem inteiramente futuristas: os carros autônomos da Waymo, os primeiros computadores quânticos portáteis e o último modelo da linha iPhone.
Como será esta experiência do envelhecimento das coisas? Para tentar avançar um pouco neste novo campo do conhecimento e compartilhar isso contigo, conversei com especialistas das mais variadas áreas. Dois deles trouxeram insights que se encaixam como uma luva a este momento, em que tão importante quanto falar do envelhecimento do que ainda não existe é entender sua presença em nossas biografias e experiências atuais.
Fernando Mungioli, editor da revista Projeto, a principal da arquitetura atual, me concedeu uma entrevista sobre envelhecimento na arquitetura e no urbanismo, enquanto João Marcello Bôscoli, lendário produtor musical, aceitou o desafio de fazer o mesmo no plano da realidade sonora. A ocupação do espaço e as experiências sonoras, domínio no qual entram as sonoridades das diferentes épocas, são pilares fundamentais para uma fenomenologia da passagem do tempo.
As conversas foram gravadas e transcritas pela minha equipe. Em seguida, fiz colagens com as reflexões, editadas para reforçar a clareza, e enviadas à dupla de especialistas para rechecagem.
O ACERVO SONORO DAS DIFERENTES ÉPOCAS TRADUZ PERCEPÇÕES DE ENVELHECIMENTO SONORO
"Cada época tem seu acervo sonoro próprio. A gente pode dividi-la em décadas, ciclos de sete anos ou gerações. De todas as formas, será possível identificar timbres próprios, que não são apenas oriundos das coisas novinhas em folha, mas dos nheco-nhecos do período."
"O som com jeitão digital, que a gente conhece tão bem, surgiu nos anos 1970 e chegou ao grande público na década seguinte, quando a Yamaha lançou o Dx7, que veio a se tornar o sintetizador mais vendido de todos os tempos. Não só ele foi responsável pelo surgimento das sonoridades sintéticas que marcaram época como suas diferentes versões trazem timbres ligeiramente diferentes, o que reflete a sensação dos artistas e do público de que determinada sonoridade ficou velha. Outro ponto interessante é que muitos sintetizadores têm funções para reproduzir sons típicos das diferentes décadas, provando que essas paisagens sonoras variam de maneira sistemática e deixam de ser atuais, o que é uma forma de envelhecer" (J.M. Bôscoli).
POSTURA FRENTE AO ENVELHECIMENTO DAS CASAS REFLETE MUDANÇA DE MENTALIDADE
"As mudanças nas paisagens urbanas dos últimos 40 anos são imensas. Muitas têm a ver com novas tecnologias, mas outras têm a ver com mudanças de mentalidade. A percepção da necessidade de manutenção mudou, tanto na classe média quanto entre os mais pobres."
"Essa ideia de repintar a casa ou a fachada do prédio periodicamente é relativamente nova e decorre do barateamento de tintas e outros materiais, aliada a dois fatores: a disseminação da preocupação com a estética dos espaços compartilhados e o fato de as fachadas terem crescido em importância nas equações de status, coisa que a gente nota pelo entusiasmo no uso de cores e materiais da estação ou da moda" (F. Mungioli).
PAISAGENS SONORAS NOS ESPAÇOS INTERIORES E VEÍCULOS REDEFINEM A DECADÊNCIA
Elevadores e carros são dois elementos de transformação sonora marcante. Segundo astrônomos da Universidade Colúmbia (2019) e outros, elevadores espaciais são uma opção mais viável para a visitação recorrente da lua do que foguetes. Há quem discorde, mas não deixa de ser interessante pensar como essas estruturas hipotéticas devem afetar a paisagem física e sonora ao redor e como devem ampliar nossa percepção de grandeza. Ultrapassados, podem vir a representar os maiores trambolhos da história da humanidade, vide que o cabo a ser ancorado na superfície dos dois corpos celestes precisa ter 400 milhões de metros de extensão.
"O som do elevador dos anos 1930 é inconfundível. A estridência da porta sanfonada de metal, o som do rotor e dos cabos fora de balanço, o rangido do banquinho do ascensorista, essas coisas viraram marcas da passagem do tempo após o surgimento dos elevadores modernos, em cujas cabines acarpetadas com botões vimos nascer novos sons, por sua vez tornados antigos pelos elevadores sem botões que dão frio na barriga enquanto sobem, dos prédios da av. Faria Lima."
"A gente passou de uma era em que a estética envolvia poucos cuidados sonoros para uma de barulhos controlados, que então deu origem à do silêncio acima de tudo, dos vidros blindados e compressores de ar, típicos do século 21. Hoje estamos na fase das luzes de cozinha que não devem clicar e tudo leva a crer que mesmo esta tendência um dia deve mudar."
Os carros das décadas de 1950 a 1980 tinham assinaturas sonoras próprias. Há o som do Mustang, o som do Dodge, o do Fusca e tantos outros. Hoje isso se tornou algo muito nichado e exclusivo, como Ferrari e Harley-Davidson ilustram. Como estes sons eram específicos, a gente também notava os efeitos do envelhecimento de cada modelo. Esta diferenciação se perdeu, o que não é ruim já que estamos falando de barulho, mas subtrai a personalidade dos veículos e do próprio ambiente urbano."
"A popularização dos carros elétricos deve girar novamente esta roda, pela adição de sons ao conjunto-identidade dos carros. Não há razões para não adicionar personalidade sonora a estes carros, mas ela sempre vai transparecer sua natureza fabricada que, por ser de base eletrônica, não deve se alterar muito com o tempo" (J.M. Bôscoli).
EVOLUÇÃO DOS MATERIAIS DE CONSTRUÇÃO AFETA A EXPERIÊNCIA E RETARDA A DEGRADAÇÃO
"Muitos edifícios estão sendo planejados para envelhecer de maneira diferente do passado. Um dos responsáveis por isso é o concreto de alta densidade, que suporta mais carga e é bem mais resistente aos efeitos da variação de temperatura. Um exemplo interessante de aplicação acontece no edifício Aya, que fica na Cidade Matarazzo (São Paulo) e homenageia a ayahuasca com seu nome. Sua fachada exibe uma emulação do cipó-jagube, ingrediente do alucinógeno ancestral. Trata-se de uma escultura grande e delicada, feita em concreto de alta densidade para que se mantenha intacta pelas próximas décadas, coisa que seria impossível se fosse de concreto comum."
"Em outra frente, vem crescendo o uso de polímeros que selam os metais e produzem colorações que praticamente não desbotam. A resina Valflon é um exemplo. Assim, essa experiência das construções que vão perdendo a cor com o tempo tende a se tornar menos comum."
"Outro caso que merece atenção é o do uso da madeira. No Japão é possível ver prédios de mais de 20 andares que simplesmente não usam concreto. Sua base é a madeira engenheirada, um material feito de lâminas de madeira coladas de forma específica, com veios cruzados, o que dá resistência e durabilidade às peças, em contraste com o MDF, igualmente laminado. Esta é a tecnologia usada na loja da Dengo, na av. Pedroso de Moraes (São Paulo)."
"Como o material é bonito, a prática é deixá-lo aparente — inclusive as lajes — o que cria uma experiência estética diferente daquela oferecida pelas construções em concreto. No Japão existem construções de madeira engenheirada de quase meio século, e o que se observa é que este produto tem um jeito próprio de envelhecer: ele escurece. Possivelmente, vamos ver mais desse tipo de estrutura no futuro e vamos reconhecer as antigas pelas mudanças de cor de lajes e paredes, coisa que não faz sentido no mundo da alvenaria" (F. Mungioli).
O ENVELHECIMENTO DE CARROS E RUAS
"O asfalto usado em novas vias e no recapeamento vem mudando, em parte porque há novas moléculas sendo usadas na produção de mantas e em parte porque há mais consciência social sobre os males do asfalto que esburaca rapidamente. Não é à toa que o prefeito de São Paulo está divulgando que o recapeamento em curso usa asfalto de melhor qualidade. Esta tendência aponta para um futuro em que as ruas serão menos esburacadas. Este fator deve caminhar junto com a transição de materiais na fabricação automotiva, com menos ferro e mais materiais sintéticos, que resistem melhor a impactos e ao tempo" (F. Mungioli).
Por outro lado, vale notar que esta não é a tendência que se observa em mobiliário e diversas outras áreas. Conforme especialistas ouvidos recentemente pelo Washington Post, as peças atuais são em sua vasta maioria descartáveis, desfazendo-se na primeira mudança ou antes disso. Aquela ideia de móveis estruturalmente intactos, mas marcados pelo tempo, está desaparecendo.
SOM, SILÊNCIO E ALIENAÇÃO NAS DÉCADAS VINDOURAS
"O volume médio das cidades vem aumentando. As pessoas estão falando cada vez mais alto, entre outras coisas porque usam muito o celular em lugares barulhentos e escutam música com fones que se inserem na orelha e castigam a cóclea. Há uma epidemia de surdez por causa disso, o que não deixa de ser irônico porque os principais responsáveis são menos os sons involuntariamente compartilhados do que os sons consumidos privadamente para a diversão."
"Este tipo de experiência mudou bastante nas últimas décadas, começando pelo fato de que mais de 90% da música escutada na atualidade flui por fones de ouvido —algo impensável há algumas décadas. Muitos fones atuais possuem recursos para tornar o som imersivo, tal como se os instrumentos estivessem distribuídos ao redor de quem escuta, mas o hardware em si praticamente não mudou desde que surgiu. Fones ainda são transdutores com almofadinhas."
"A mesma coisa acontece com as caixas acústicas: no fundo, elas pouco mudaram, mas fato é que hoje existem opções baratas e menores do que uma garrafa de água, que geram um som ensurdecedor, o qual alimenta as batalhas sonoras nas praias brasileiras. O futuro disso não é envelhecer, mas, com sorte, desaparecer" (J.M. Bôscoli).
É possível que o volume médio caia com a substituição dos veículos à gasolina por elétricos, mas o ponto principal que é a exposição a sons cada vez mais altos, só irá mudar por meio de campanhas maciças de conscientização.
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