Por Luciana Lima
Em Nova York, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva estava especialmente bem-humorado na noite de terça-feira. Voltou para o hotel e, ao passar pelo saguão, aproximou-se, sorridente, de um bloco de jornalistas que insistia por uma entrevista. Já chegou se justificando. Dando batidinhas no relógio de pulso, ponderou que já era tarde e prometeu dar atenção aos repórteres no dia seguinte. Houve reclamações — afinal, Lula não havia, em momento algum da viagem, atendido a imprensa. Antes de pegar o elevador, Lula fez uma provocação. “Eu quero saber se vocês gostaram do discurso.” Repórter costuma só replicar com perguntas: “O senhor gostou? Como foi a recepção?”. E Lula, orgulhoso: “Eu gostei. Fui eu que fiz”, ele riu.
O tal discurso havia sido proferido pela manhã, na abertura da 78ª reunião da Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Foi um texto medido, palavra por palavra. E o processo foi intenso. Foi Lula quem fez, mas não sozinho. Ghostwriters levavam versões ao presidente no intervalo das agendas e, a cada conferência, saíam com mais demandas. Não está bom, arruma aqui, muda o parágrafo de lugar, puxa outra ideia, redige diferente. Lula fez um pedido especial. Queria falar sobre a desigualdade “em todas as suas dimensões”: dentro dos países, históricas, sociais, econômicas e políticas. E pediu também um tom a mais para o final do texto. “A desigualdade precisa inspirar indignação.”
A intenção era chegar à ONU com uma marca, uma ideia que conversasse com aquela que ele havia levado à tribuna há 20 anos: a fome. Era preciso não cair na mesmice, apresentar um novo ângulo, capaz de envolver. A noção da desigualdade abarcava todas as mensagens. E essa foi a palavra que mais apareceu no texto: 14 vezes. “Indignação", quatro vezes. “Lula usou um discurso histórico seu (o do combate à desigualdade) para amalgamar tudo que falou. Usou essa ideia como fio condutor”, analisa, em conversa com o Meio, Hussein Kalout, cientista político, professor de Relações Internacionais e pesquisador de Harvard. O presidente falou da desigualdade como epicentro do desequilíbrio mundial. “Se você resolve o problema da desigualdade, seja no aspecto humano, predatório, social, político, nas assimetrias econômicas e financeiras, você consegue resolver boa parte do resto”, explica Kalout.
O Meio ouviu também Guilherme Casarões, cientista político e professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas. Para ele, Lula conseguiu fazer uma relação importante entre as crises que o mundo vive hoje e o tema da desigualdade. “O Brasil já falava isso 20 anos atrás, mas agora me parece que as questões que o país e o mundo vêm lidando são mais urgentes. E Lula conseguiu fazer esse vínculo de causa e efeito, numa avaliação muito correta.” Tanto Kalout quanto Casarões estavam em Nova York e acompanharam de perto as repercussões da atuação de Lula.
As canetas
Quando Lula respondeu aos jornalistas que havia gostado do próprio discurso, não disse que se tratava de uma autoria múltipla. Até a madrugada daquela terça, alguns auxiliares se ocuparam dos ajustes. Só em Nova York, o rascunho levado do Brasil passou por cinco reuniões, entremeando a carregada agenda que o presidente teve nos Estados Unidos, que incluiu jantares com empresários, dezenas de reuniões bilaterais, além da tradicional participação do Brasil na abertura dos debates dos presidentes, algo que ocorre desde 1947.
Pelo menos quatro pessoas trabalharam na confecção do texto que, depois, ainda passou pelo crivo do secretário de Imprensa, José Chrispiniano, e do chefe do cerimonial da Presidência da República, embaixador Fernando Igreja. Dos que deram a base para o discurso, o mais assíduo interlocutor de Lula é o embaixador Celso Amorim, assessor especial cuja sala fica no mesmo andar da do presidente no Palácio do Planalto. Amorim é amigo de muitos anos e filiado ao PT. Foi ministro de Relações Exteriores nos primeiros mandatos do petista e, em 2022, esteve o tempo todo ao seu lado, na pré-campanha e e na corrida presidencial. É de Amorim o tom de crítica ao “neoliberalismo”. “Muitos sucumbiram à tentação de substituir um neoliberalismo falido por um nacionalismo primitivo, conservador e autoritário”, dizia esse trecho.
Embora o embaixador seja o principal conselheiro de Lula nessa área, de acordo com pessoas próximas do presidente, engana-se quem pensa que o presidente não tem sua própria visão de política externa. “Os dois conversam de igual para igual”, disse uma fonte do governo.
Já o diplomata Audo Araújo Faleiro, da equipe de Amorim, vem cumprindo outro papel importante: o de fazer a mediação entre o pensamento de Amorim, de alinhamento à esquerda mundial e a abordagem a questões espinhosas, como Venezuela e anti-imperialismos, e o Itamaraty, cuja tradição é de não-alinhamento automático e isenção, comandado pelo embaixador Mauro Vieira. Interlocutores próximos ao presidente negam que haja embate entre os dois, mas admitem visões distintas de mundo.
Quando foi chanceler de Lula, de 2003 a 2010, tinha, a seu exemplo, a sombra de um assessor especial — Marco Aurélio Garcia, na época. Na disputa, era Amorim o mais ouvido por Lula. Ainda é. Mauro Vieira, que já foi chefe de gabinete de Amorim, não tem essa veia partidária e, do grupo de ghostwriters, é o interlocutor mais recente de Lula. Vieira também já foi embaixador nos Estados Unidos e na Argentina e chanceler durante o governo da presidente Dilma Rousseff. Na prática, Amorim seria o grande formulador da política externa de Lula e Vieira, o executor. Mas quando o assunto é discurso, no final das contas, embora o peso da influência de Amorim fique na casa dos 70%, quem arbitra é Lula, segundo uma fonte palaciana.
Argumentos fechados e acordados, eis que entra o escritor e jornalista José Rezende Junior. Ele se incumbe de dar a “alma de Lula” ao discurso. E dessa “alma”, em especial a atual, Resende entende. Já fazia isso na campanha, na pré-campanha e, antes, voluntariou-se para escrever cartas para sindicatos, entidades e associações, enquanto Lula estava na prisão, em Curitiba.
Na posse do petista, um bom exemplo de leitura de Rezende sobre o sentimento que o presidente desejava passar se traduziu na frase: “Não existem dois Brasis. Somos um único país, um único povo, uma grande nação”. Lula havia pedido a ele um tom que atendesse a necessidade de “unir o Brasil”, depois da polarização e da disputa acirrada com Jair Bolsonaro.
Segundo fontes do governo, no processo de construção do discurso, em Nova York, um dos auxiliares perguntou ao presidente o que ele queria dizer para se diferenciar do antecessor, considerado um completo desastre nos organismos multilaterais. E Lula disse que queria, com precisão, informar que não haveria subserviência do Brasil a qualquer potência. O objetivo era passar a mensagem de que o Brasil não quer ser hegemônico, mas também não aceitará submissão a nenhuma outra hegemonia. Lula queria um recado forte contra o “vira-latismo”. Na linguagem mais usual do presidente, ele costuma usar a frase “O Brasil não fala grosso com a Bolívia e nem fino com os Estados Unidos”.
Pessoas próximas do presidente dizem que ele costuma ter calafrios quando assiste a atitudes que considera subservientes, principalmente aos Estados Unidos, e costuma citar com frequência o episódio ocorrido há mais de duas décadas, em 2002, quando o então ministro Celso Lafer, chefe do Itamaraty no governo de Fernando Henrique Cardoso, precisou tirar os calçados ao passar por uma vistoria para entrar nos Estados Unidos. Era uma averiguação de segurança, depois que o inglês Richard Reid foi preso, tentando detonar explosivos em seu tênis num vôo entre Paris e Miami. A lista dos “chanceleres descalços” incluiu o brasileiro, o russo, Igor Ivanov, e a chanceler chilena, María Soledad Alvear Valenzuela.
Nesse contexto, entre as idas e vindas do discurso, iam se alterando a ordem, os sentidos, o peso de algumas ideias. Lula incluiu a Guerra da Ucrânia como mais um conflito em meio a tantos outros. A Ucrânia entrou por último na ordem dos parágrafos que faziam a defesa da “paz duradoura”, depois que Lula falou da Palestina, Haiti, Iêmen, Líbia, Burkina Faso, Gabão, Guiné-Conacri, Mali, Níger, Sudão e Guatemala.
A inversão da ordem dos parágrafos não foi aleatória. O tema da Ucrânia é sensível para Lula. Em uma entrevista nos Emirados Árabes, no mês de abril, quando ele voltava de uma viagem à China, o presidente brasileiro sugeriu a ambivalência de culpa pela guerra. Lula queria se livrar de vez desse desgaste. Desta vez, o presidente brasileiro não admitia errar e queria uma fala marcante. Para Hussein Kalout, Lula conseguiu, com o discurso, elevar seu prestígio e “se recuperar das arranhaduras impostas à sua imagem em função de declarações desencontradas e de recuos forçados”. “Isso demonstra que ele tem capacidade de poder exercer um papel preponderantemente positivo, se o quiser fazê-lo. Mas tem que ser com temperança e equilíbrio.”
Já Guilherme Casarões entende que “o caso da Ucrânia é totalmente novo para Lula. Ele foi salomônico demais, buscando encontrar uma resposta que ao mesmo tempo não sofresse um massacre do Ocidente, totalmente engajado na questão, e mantivesse uma boa relação com a Rússia, um parceiro importante, membro dos Brics”.
A nova ordem
Na opinião de Kalout, o discurso de Lula recupera a “dignidade”, perdida nos discursos do Brasil na ONU durante o governo de Jair Bolsonaro, quando só aconteciam “falas calamitosas”. “Foi um discurso sóbrio, equilibrado, consistente e marcante”. No entanto, é necessário esperar para saber se representará uma correção de rota na política externa brasileira, diante de desacertos que ele observou no primeiro semestre. “A política externa no primeiro período não teve substância. Foi uma política muito desconjuntada, e havia uma incompreensão de que a ordem internacional mudou e não dava para reeditar a política de 20 anos atrás”, observou.
Um exemplo de iniciativa que até o momento não deu resultado foi a tentativa de se recriar a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), anunciada por Lula no encontro organizado em Brasília no final de maio, com a presença de todos os chefes de Estado da região. “Isso é um momento de incompreensão do governo. É evidente que no entorno do presidente tem gente com uma visão boa de política externa, mas tem alguns com uma visão ainda nostálgica. Aí, depende de quem está sendo ouvido e em que hora”, ponderou.
Casarões pondera que as dificuldades de Lula se centraram na questão da Venezuela e ditaduras de esquerda na América Latina, como a Nicarágua, e da Ucrânia. "Essa é uma dificuldade histórica do PT, que tem uma relação com essas lideranças e regimes. Mas Lula não teve uma condução da política externa ruim no primeiro ano. O que houve foi uma dificuldade natural de um governo que acaba de chegar de compatibilizar agendas históricas, que estavam mais ou menos na inércia, com o mundo atual”.
Um outro ponto crucial da agenda externa de Lula no primeiro semestre foi a campanha para o uso de moedas alternativas ao dólar, numa disposição de recuperar relações com a China. Kalout não vê problemas nesse movimento, desde que o Brasil deixe sua postura clara diante da divisão mundial existente hoje. “É necessário separar a natureza das duas missões. Depois do hiato criado por Bolsonaro e das animosidades estabelecidas com a China, era necessária uma visita à China. Foi uma missão eminentemente comercial. Ao passo que a missão aos Estados Unidos tem um caráter essencialmente político. Portanto, não são coisas comparáveis”. Kalout aponta que, embora algumas declarações tenham sido interpretadas de excessiva simpatia à China, “essas interpretações podem ser equivocadas. Mas aí cabe, com o tempo, ir esclarecendo”.
Houve realmente um cuidado da diplomacia brasileira em evitar pautas divergentes com os Estados Unidos na reunião que Lula fez com o presidente Joe Biden. Aliás, a desenvoltura com que Lula e Biden conversaram em público sobre temas caros aos dois chegou a ser comemorada pelo governo. Os dois extrapolaram tempos de fala em um tema no qual Lula se sente absolutamente confortável: o trabalho. Os dois presidentes assinaram um acordo de parceria para melhorar as condições de trabalho em seus países. O acordo, para Biden, ocorre quando o país passa por um momento de greves. Já para Lula, representa um momento posterior às flexibilizações das relações pós-pandemia e a necessidade de se ter uma regulação mais moderna, que consiga dar conta dos novos ofícios.
O horizonte
Que o discurso de Lula na ONU foi bom quase todos concordam. Mas e depois? Criar indignação diante das desigualdades não é uma tarefa fácil. Mais difícil é colocar de pé mecanismos para reduzi-las. Depois de falar da fome, em 2003, Lula conseguiu desenvolver ações a longo prazo que tiveram efeito no Brasil. Agora, o desafio parece maior, porque a proposta mexe com fatores externos e com mudanças de paradigmas internacionais, inerentes ao capitalismo.
O tempo do discurso é diferente do tempo da política. E, para muitas perguntas sobre pontos da fala de Lula, ainda não existem respostas. “Vai ter reforma do Conselho de Segurança? Não se sabe quando. Isso depende de múltiplos atores. Vai ter reforma do sistema econômico? Isso vai depender da evolução do sistema internacional, da recomposição de forças. Tudo isso vai levar à união coletiva para o combate à desigualdade? Mas quem vai financiar isso? Quanto o Brasil está disposto a bancar? Quem vai bancar? E quem vai mandar no fundo de combate à desigualdade?”, questiona Kalout.
O próprio Brasil apresentou alguns caminhos. “Não só Lula falou da desigualdade como problema, mas ofereceu a solução, que é trabalhar em conjunto para promover o desenvolvimento, sobretudo nos países mais pobres”, aponta Casarões. Lula defendeu, no discurso, que os Brics surgiram em resposta a uma crise econômica que os países ricos não conseguiram resolver. E alertou que os objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS), que começaram em 2015 como a mais ambiciosa agenda da ONU, pode se tornar um fracasso antológico se os países não se dispuserem a trabalhar juntos e combater as desigualdades.
O que se tem hoje de concreto é que o Brasil está incumbido de organizar o G20, principal fórum econômico internacional, e prometeu priorizar programas para inclusão social, redução da desigualdade, da fome e da pobreza, ações para frear o aquecimento global, entre outros pontos. Também há no horizonte do governo a realização da Conferência do Clima (COP-30). Isso até 2026, quando termina o mandato de Lula. “O Brasil tem que trabalhar. Mas trabalhar sozinho não funciona. Então, tem que articular, criar consenso. Isso num momento em que há um processo de fragmentação do sistema internacional.” Sinais trocados sobre uma eventual aliança vocacionada para um dos lados do embate global atual podem não ajudar. Discursos — e ações — bem trabalhados nos temas relevantes para todo o planeta, sim.
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