Durante a tramitação da reforma da Previdência, em 1996, o STF julgou um habeas corpus preventivo de Epaminondas Patriota da Silva, contra ofícios expedidos por FHC que exigiam a apresentação dos idosos e aposentados em crematórios com o objetivo de livrar o país de pessoas que não ofereciam mais "vantagem à sociedade". O autor do habeas corpus impetrou a ação para assegurar o direito de continuar vivo. Seria um suposto morador da Rocinha. Mas na realidade era um personagem fictício.
O habeas foi negado por unanimidade, após os juízes fazerem chiste de estarem impedidos de julgar por serem parte interessada. Atribuída a setores da oposição, a ação foi impetrada após a publicação de uma matéria na Tribuna da Imprensa sobre os ofícios imaginários de FHC em um dos episódios de fake news mais burlescos da história de nossa imprensa.
Este bizarro episódio nos interessa por outras razões: expôs o estado de coisas subjacente à agenda da corte. Esta já alcançava, em 1996, dezenas de milhares de processos, atingindo nos anos 2010 mais de 90 mil. O contraste com outras cortes constitucionais deixa entrever a diferença colossal existente: a americana julga uma centena por ano. E como o caso escancara, inexistiam filtros minimamente efetivos.
O caso da cremação de idosos foi lembrado nos debates que marcaram a retomada da PEC da reforma do Judiciário na Câmara e que resultou em medidas centralizantes como a súmula vinculante e outras mudanças incorporadas à PEC 45 (2004). E marcou também os debates sobre a legislação que delegou novos poderes aos relatores nos recursos judiciais.
Foram medidas que miravam a ingovernabilidade judicial, cuja melhor expressão eram as liminares concedidas em primeira instância contra as reformas de mercado. Foram o ovo da serpente do ativismo processual individual, objeto de análise refinada do novo livro de Diego Arguelles, "O Supremo: Entre o Direito e a Política".
Muitos dos seus efeitos, no entanto, não foram antecipados.
Como afirmei aqui na coluna há cinco anos, decisões monocráticas sobre temas não conflitivos foram solução organizacional eficiente que se tornam disruptivas quando o que está em jogo é explosivo. Este "modelo de delegação" foi adotado por razões de eficiência e, sim, tornou-se brutalmente disfuncional. Sua mais clara manifestação foi a decisão de Toffoli anulando todas as provas da delação da Odebrecht.
Mas o problema não se cinge as patologias do ativismo processual; ele magnifica o problema da arbitragem politica hiperbólica recente. A anistia judiciária que vem sendo praticada no país não se reduz a ausência de colegialidade. É mais ampla.
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