Por Alexandra Eaton
21/08/2023 | 20h00
Atualização: 22/08/2023 | 10h10
7 min
de leitura
THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Por muitos anos, uma pintura do século 19 de três crianças brancas em uma paisagem da Louisiana manteve um segredo. Por baixo de uma camada de tinta que pretendia parecer o céu: a figura de um jovem escravizado.
Num díptico de imagens cedidas por Selina McKane (à esquerda) e Christies, a pintura 'Bélizaire and the Frey Children', atribuída a Jacques Amans, após restauro, e como ficou depois de pintada a figura de um jovem escravo negro por volta de 1900.
Num díptico de imagens cedidas por Selina McKane (à esquerda) e Christies, a pintura 'Bélizaire and the Frey Children', atribuída a Jacques Amans, após restauro, e como ficou depois de pintada a figura de um jovem escravo negro por volta de 1900. Foto: Selina McKane/Christies/The New York Times
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Encoberta por motivos que ainda não foram especificados, a imagem do jovem afrodescendente foi apagada da obra por volta da virada do século passado e definhou por décadas em sótãos e no porão de um museu.
Mas uma restauração de 2005 o revelou, e agora a pintura tem um novo lugar muito proeminente no Metropolitan Museum of Art.
“Há dez anos venho querendo adicionar uma obra dessas à coleção do Met”, disse Betsy Kornhauser, curadora de pinturas e esculturas americanas que cuidou da aquisição, “e esta é a obra extraordinária que apareceu”.
Kornhauser disse que o museu adquiriu a obra, conhecida como Bélizaire and the Frey Children, este ano, como parte de seu esforço maior para reformular o modo com o qual a história da arte americana é contada. A pintura, atribuída a Jacques Amans, um retratista francês da elite da Louisiana, ficará exposta na ala americana neste outono e novamente no ano que vem, durante a celebração do centenário da ala.
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A peça 'Bélizaire and the Frey Children', atribuída ao retratista francês Jacques Amans, no estúdio de conservação do Metropolitan Museum of Art.
A peça 'Bélizaire and the Frey Children', atribuída ao retratista francês Jacques Amans, no estúdio de conservação do Metropolitan Museum of Art. Foto: Elliot deBruyn/The New York Times
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Uma das razões pelas quais Bélizaire and the Frey Children chamou a atenção é a representação naturalista de Bélizaire, o jovem afrodescendente que ocupa a posição mais alta na pintura, encostado em uma árvore logo atrás das crianças Frey. Embora permaneça separado das crianças brancas, Amans o pintou em uma postura poderosa, com bochechas coradas e uma espécie de interioridade incomum para a época.
Jeremy Simien, um colecionador de arte de Baton Rouge, Louisiana, passou anos tentando encontrar Bélizaire depois de ver uma imagem da pintura online em 2013, após sua restauração, que apresentava todas as quatro figuras. Intrigado, ele continuou procurando, apenas para encontrar uma imagem anterior de 2005, depois que a pintura havia sido removida do Museu de Arte de Nova Orleans e colocada para leilão na Christie’s. Era a mesma pintura, mas faltava o jovem negro. Ele havia sido escondido.
“O fato de ele estar encoberto me assombrou”, disse Simien em uma entrevista.
Durante anos, Simien procurou a pintura em antigos registros de leilão, catálogos e arquivos de fotos. Ele perguntou a amigos se alguém a tinha visto e alguém tinha, em uma loja de antiguidades na Virgínia. De lá, Simien rastreou a pintura até uma coleção particular em Washington e acabou comprando-a por um valor não revelado.
Na época, ele não sabia quem eram as pessoas no retrato. Mas ele foi atraído pela história do jovem negro e pela tentativa de apagá-lo.
“Sabíamos que precisávamos descobrir quem ele era, como um filho da Louisiana”, disse Simien, “e como alguém digno de ser lembrado ou conhecido”.
Detalhe do quadro do século 19.
Detalhe do quadro do século 19. Foto: Elliot deBruyn/The New York Times
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A história por trás da pintura
Simien contratou Katy Morlas Shannon, uma historiadora da Louisiana que pesquisa a vida de indivíduos escravizados. Ela descobriu a identidade de todos no retrato e usou registros de propriedade e censo para chegar ao nome do jovem que havia sido encoberto: Bélizaire.
A partir daí, Shannon juntou os detalhes da vida de Bélizaire. Ele nasceu em 1822 no French Quarter. Sua mãe se chamava Sallie. Seu pai é desconhecido. Bélizaire tinha outros irmãos e irmãs - todos, exceto um, foram vendidos.
Quando ele tinha 6 anos, Bélizaire e sua mãe foram vendidos para Frederick Frey, um banqueiro e comerciante que, com sua esposa, Coralie e sua família, morava em uma grande casa no French Quarter na Royal Street e possuía vários escravos.
Bélizaire está listado como doméstico e sua mãe como cozinheira, funções que os manteriam próximos da família.
Os registros sugerem que o retrato foi pintado por volta de 1837, quando Bélizaire tinha 15 anos. Ele foi a única pessoa na pintura a sobreviver até a idade adulta. Duas irmãs Frey, Elizabeth e Léontine, morreram no mesmo ano, provavelmente de febre amarela. Seu irmão Frederick morreu alguns anos depois.
Jeremy K. Simien, um colecionador de arte de Baton Rouge, que resgatou 'Bélizaire and the Frey Children' da obscuridade.
Jeremy K. Simien, um colecionador de arte de Baton Rouge, que resgatou 'Bélizaire and the Frey Children' da obscuridade. Foto: Bron Moyi/The New York Times
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Quase 20 anos mais tarde, depois que os negócios do velho Frederick Frey fracassaram e ele morreu, sua viúva vendeu Bélizaire para a Evergreen Plantation. Shannon, que trabalhava na plantação na época de sua pesquisa, disse que ele é a única pessoa escravizada na plantação da qual existe uma imagem.
Bélizaire foi listado em inventários até 1861, quando a Guerra Civil começou. Logo depois, Nova Orleans caiu nas mãos do Exército da União.
“Ele sobreviveu à Guerra Civil e viveu o suficiente para experimentar a liberdade?” disse Shannon. “Não sabemos porque a trilha para por aí.”
O retrato permaneceu na família Frey por mais de um século. Não está claro quando Bélizaire foi retirado da pintura, mas Craig Crawford, um conservador que fez trabalhos de restauração adicionais no ano passado, estima que, com base no padrão das fissuras, o encobrimento provavelmente aconteceu por volta de 1900. Quem fez isso e o porquê é desconhecido, mas sabe-se que a segregação se aprofundou na virada do século em Nova Orleans. Shannon disse sobre a época: “Nenhuma pessoa branca de qualquer posição social em Nova Orleans naquela época gostaria que uma pessoa negra fosse retratada com sua família em sua parede”.
Na década de 1950, Eugene Grasser, tataraneto de Coralie Frey, lembra-se de pegar a pintura no sótão de uma tia idosa com seu pai e prendê-la no teto do carro (junto com outro retrato de família mais tarde identificado como obra de Jacques Amans). Eles o guardaram em uma garagem atrás da casa de seus pais.
Em 1971, a mãe de Grasser ofereceu-lhe a obra, mas a pintura não combinava com sua decoração modernista. Por isso, foi doada ao Museu de Arte de Nova Orleans.
Katy Morlas Shannon, historiadora da Louisiana que usou registros de propriedades e do censo para encontrar um nome para o jovem negro que foi encoberto em uma pintura do século 19, em Nova Orleans.
Katy Morlas Shannon, historiadora da Louisiana que usou registros de propriedades e do censo para encontrar um nome para o jovem negro que foi encoberto em uma pintura do século 19, em Nova Orleans. Foto: Bron Moyi/The New York Times
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As fotografias da pintura, então chamadas de Três Crianças em uma Paisagem, mostram uma quarta figura aparecendo como um fantasma. Segundo documentos do museu, o retrato continha “o escravo que cuidava das crianças”.
O museu de Nova Orleans não limpou ou restaurou a pintura e a guardou por 32 anos até que o museu removesse a obra.
Em leilão, a pintura foi vendida por US$ 6.000 para um negociante de antiguidades da Virgínia que estava interessado no que poderia estar sob a pintura. Ele pediu a uma conservadora, Katja Grauman, para fazer um teste de limpeza.
Ela tratou pequenas áreas onde a figura parecia estar e primeiro revelou um casaco e depois um rosto. “Restauramos muitos retratos americanos de crianças e muito raramente você vê um negro neles”, disse ela.
O negociante posteriormente vendeu a pintura para um colecionador particular em Washington, onde Simien a encontrou em 2021.
Nem o Met nem Simien divulgaram quanto o museu pagou pelo retrato da família Frey. Mas os retratos do século 19 de pessoas de ascendência africana, mesmo com pessoas não identificadas, atraíram preços altos. Em janeiro de 2023, um retrato de duas meninas, uma branca e uma afro-americana, foi vendido na Christie’s por pouco menos de US$ 1 milhão. Em maio de 2022, em um leilão na Carolina do Norte, um retrato de uma mulher não branca livre foi vendido por $ 984.000 para o Museu de Belas Artes da Virgínia em Richmond.
O Met planeja investigar a pintura da família Frey para saber mais sobre a vida de Bélizaire. O que levou à sua inclusão em um retrato de família tão íntimo? Ele sobreviveu à Guerra Civil? Há descendentes?
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Mas a identificação de Bélizaire, propositalmente apagada, já é uma descoberta surpreendente. Funcionários do Met disseram que a pintura é na verdade o primeiro retrato naturalista na ala americana de um sujeito negro nomeado em uma paisagem do sul.
Ter “todas as informações documentadas sobre esse jovem que aparece no retrato é realmente extraordinário”, disse Kornhauser.
Isso foi crucial para que o Met decidisse adquirir a obra. Sem os esforços de Simien e Shannon para descobrir sua identidade, a pintura provavelmente ainda estaria em uma coleção particular, fora de vista, esperando para ser conhecida. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES
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