segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Conheça o risco de mulheres sob efeito de MDMA, Marcelo Pinto, FSP

 

Ambiente interno da balada, com pista e pessoas. As luzes são rosas e azuis nas telas
Vitrinni Lounge, que tem casas no Rio de Janeiro e em São Paulo - Henrique Augusto/ Divulgação

O risco de hipertermia (superaquecimento) com MDMA na balada é bem conhecido. Menos gente terá ouvido falar de hiponatremia, níveis perigosamente baixos de sódio no organismo que parecem afetar mais as mulheres jovens e que podem se agravar com a ingestão de água para combater o superaquecimento.

O alerta aparece no artigo de revisão "Mulheres e MDMA: Particularidades de Gênero e Sexo", publicado dia 23 em inglês no periódico International Review of Psychiatry. Os autores são brasileiros: Fabio Carezzato, Ilana Falcão de Arruda, Caio Petrus Monteiro Figueiredo e João Mauricio Castaldelli-Maia.

O grupo de médicos pesquisadores atua na área de psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. O psiquiatra Carezzato trabalha há uma década com uso problemático de drogas por mulheres e coordena um ambulatório que as atende no Instituto Perdizes da FMUSP, na rua Cotoxó.

Ele conta que se decidiu a fazer uma revisão ampla do assunto depois de ser procurado por jornalistas, em dois carnavais seguidos, para falar sobre o efeito em mulheres do MDMA (base do ecstasy, também conhecido como bala). Nessas entrevistas, o foco já era a hiponatremia.

São raros os casos de baixo nível de sódio após consumir MDMA, mas não se descarta que os sintomas conduzam a quadros graves. Náusea, vômito, dor de cabeça, confusão, letargia e convulsão podem evoluir para encefalopatia, edema cerebral e, excepcionalmente, morte.

Para não causar pânico entre jovens que usam MDMA com certa frequência, cabe registrar que no Reino Unido, onde mais de 750 mil pessoas usam a droga a cada fim de semana, complicações após consumo de ecstasy ocasionam menos de quatro óbitos por ano. Um risco diminuto, comparável ao de morrer atingido por um raio (duas ocorrências anuais).

O número de mortes por MDMA varia de 1 a 17 por ano em outros países, mas não há dados para o Brasil. Um levantamento na Califórnia indicou que, de 2000 a 2005, apenas 73 casos de hiponatremia documentada puderam ser relacionados ao uso MDMA, dos quais 55 ocorreram com mulheres.

"Acredito que seria muito importante a avaliação em um número maior de mulheres, pela suscetibilidade tanto aos efeitos terapêuticos quanto colaterais do MDMA. A maior parte da população estudada é de homens militares da reserva", diz Carezzato, referindo-se a testes clínicos com a substância em psicoterapia para transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).

O MDMA é o psicodélico em estágio mais avançado de estudos para uso terapêutico. A agência americana de fármacos FDA deve receber ainda neste ano os dados finais dos testes clínicos de fase 3, e se espera para 2024 sua autorização para apoio a tratamentos psicoterápicos de TEPT.

Muitos pesquisadores preferem chamar o MDMA de empatógeno, ou entactógeno, por sua capacidade de induzir a aproximação com outras pessoas e consigo mesmo (traumas incluídos). A droga atua não só sobre o circuito da serotonina, como os clássicos psicodélicos DMT (ayahuasca), LSD, mescalina (peiote) e psilocibina (cogumelos), mas também da oxitocina, hormônio envolvido na formação de vínculos sociais e amorosos.

No artigo, a literatura revisada indica que garotas buscam drogas como MDMA para lidar com emoções negativas. Já os rapazes costumam se iniciar por pressão dos pares ou atração por sensações fortes.

Em contrapartida, elas apresentam mais efeitos adversos, como ansiedade. Também têm probabilidade maior de contrair doenças sexualmente transmissíveis ao abrir mão de camisinhas, no estado alterado de consciência.

No aspecto fisiológico, elas parecem menos propensas a desenvolver hipertermia e mais vulneráveis à hiponatremia. Essa diferença entre os sexos aparenta ser mediada por hormônios como o estrógeno.

Ilana Falcão de Arruda, terceiranista na residência em psiquiatria, narra que um dos estágios mais marcantes para ela se deu no Programa da Mulher Dependente Química (Promud) do Instituto de Psiquiatria da FMUSP, quando pôde ver de perto particularidades do uso de substâncias em mulheres, tanto do ponto de vista biológico quanto psicossocial.

"Sendo mulher, a questão mais ampla da falta de investigação científica sobre diferenças entre sexos e entre gêneros nas respostas a substâncias, sejam elas de abuso ou fármacos, sempre me chamou atenção e preocupou", diz a co-autora do artigo. Cita uma revisão do periódico Lancet, de 2019, segundo a qual 8 em 10 dos medicamentos retirados de circulação entre 1997 e 2001 eram mais prejudiciais para mulheres do que para homens.

Sacos plásticos e mesa com pílulas coloridas de MDMA apreendidas em operação policial
Pílulas de MDMA apreendidas em operação policial - Couperfield / Adobe Stock

O psiquiatra Carezzato assinala que só começaram a aparecer casos de hiponatremia na história do uso recreativo de MDMA, e de forma súbita, depois que se implementaram ações de redução de danos estimulando a ingestão de água para evitar a hipertermia. Dançando e suando muito, os níveis de sódio no organismo iam baixando continuamente.

É o clássico efeito não pretendido de uma medida positiva: a hidratação contrapõe o superaquecimento e, ao mesmo tempo, aumenta o risco da hiponatremia. Depois de configurada, esta pode ser tratada com uma injeção intravenosa de 100 ml a 3% de sódio.

Já para sua prevenção concomitante com a da hipertermia, uma recomendação seria consumir líquidos isotônicos em lugar de água. Ilana Arruda pondera, porém, que as bebidas comerciais desse tipo costumam ter muito açúcar, o que pode contribuir para a desidratação.

Ela aponta que há medidas mais simples e mais garantidas: não beber mais que um litro por hora de água, não combinar com o uso com álcool e fazer lanchinhos salgados. E, se possível, fazer pausas e sair da pista de dança de tempos em tempos.

Quanto ao eventual licenciamento do MDMA para estresse pós-traumático, a médica diz ser possível que haja diferença na efetividade ou na segurança do tratamento para homens e mulheres, de modo que a escolha de dose, por exemplo, possa sofrer influência de fatores relacionados ao sexo biológico. "Sem dúvida seria importante que a FDA exigisse evidência de segurança em ambos os sexos de forma independente."

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AVISO AOS NAVEGANTES - Psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.

Sobre a tendência de legalização do uso terapêutico e adulto de psicodélicos nos EUA, veja a reportagem "Cogumelos Livres" na edição de dezembro de 2022 na revista Piauí.

Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira".


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