Natalia Pasternak —lembrada com carinho pelo grande público por defender políticas baseadas no método científico contra a pseudociência durante a pandemia da Covid— foi de heroína inconteste a figura polêmica. E qual o motivo dessa mudança? Defender o método científico contra a pseudociência, agora em novo contexto.
Saímos da pandemia e voltamos para um mundo no qual práticas pseudocientíficas gozam de respaldo social e mobilizam recursos. Por que não combatê-las todas agora também? É o que Pasternak faz no seu novo livro "Que bobagem! Pseudociência e Outros Absurdos que Não Merecem Ser Levados a Sério". E acaba tendo alvos muito diferentes do negacionismo da extrema direita.
A partir do momento que uma prática se oferece como tendo efeitos concretos sobre a saúde humana, é possível testá-la para ver se a realidade condiz com a promessa, seja qual for sua origem cultural, sua estética ou a "epistemologia alternativa" que ela arroga para si. Cloroquina, florais, homeopatia, alopatia; estão todos no mesmo barco e devem ser testados.
De maneira geral, considero essa atitude cientificista positiva, ao incitar as pessoas a questionarem mais, a se acostumarem a cobrar evidências, rejeitar superstições e a nutrir uma atitude irreverente perante todo tipo de afirmação ou autoridade espiritual. Ocorre que, se levada longe demais, ela acaba gerando má vontade. E perde de vista que nem toda pseudociência ou "medicina alternativa" é igual. Há aquelas que prejudicam a saúde da população e aquelas que são inócuas, ou até positivas por seus impactos no bem-estar psicológico.
A cloroquina, durante a pandemia, convidava ao comportamento de risco (pois a pessoa se acreditava imune aos piores sintomas da Covid). Além disso, a crença nela predispunha a pessoa a ser contra a vacinação, única resposta efetiva conhecida à Covid. Era uma crença, portanto, nociva à saúde pública numa questão que tirava milhares de vidas diariamente. Já a crença em florais, cristais ou homeopatia, por exemplo, desde que não se proponha a tomar o lugar de tratamentos médicos convencionais, especialmente no que diz respeito a doenças graves, é basicamente inócua.
Enquanto ficarem em seu quadrado, como fontes de apoio paralelas ao tratamento médico convencional, sem substituí-lo, práticas de medicina alternativa não precisam ser vistas como inimigas, por mais que sejam pseudocientíficas.
Há ainda um elemento social em jogo. Quando um artigo de Pasternak no jornal O Globo ("Religião não é medicina!") contra a inclusão de práticas religiosas afro no rol de Práticas Integrativas e Complementares (PICs) do SUS é ilustrado por uma foto de um terreiro afrobrasileiro, isso apenas nos remete ao preconceito secular a que essas religiões sempre estiveram sujeitas. Para piorar, como apontado pela autora feminista Joice Berth em sua conta de Instagram, publicar esse texto no momento em que o Brasil investiga o assassinato de uma mãe de santo e líder quilombola é particularmente insensível. Isso acaba manchando o projeto de expandir o alcance da ciência.
O ser humano vive imerso na irracionalidade, e é com muito esforço e disciplina mental que coloca algumas áreas de sua vida sob algum tipo de critério racional. Se fôssemos puramente racionais, não levantaríamos da cama de manhã. Afetos, sentido de propósito, visão de mundo, crenças fundamentais, intuições morais; tudo isso foge ao domínio da razão, e ainda mais do método científico. Se estamos condenados a largas doses de irracionalidade, concentremos nossos esforços para combater as suas formas mais nocivas, e deixar o resto em paz.
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