terça-feira, 22 de agosto de 2023

Julgamentos sobre mães revelam a ideologia de onde partem, Vera Iaconelli, FSP

 A expressão "mãe só tem uma" foi usada desde os tempos do Império para diferenciar a mãe branca —genitora e parente— da cuidadora negra. As mães de leite e amas-secas eram escravas (as futuras babás) que se ocupavam da molecada que depois seriam seus donos ou patrões. A máxima servia para negar um fato considerado constrangedor: sempre houve muitas "mães", nem sempre da mesma etnia.

Mas "mãe só tem uma" também é uma forma atual de fingir que a categoria mãe é homogênea e reúne a nata do cuidado com a prole. Mãe seria não só a mulher que teve filhos mas uma espécie de pokémon evoluído da mulher. Ao tornar-se mãe, a mulher passaria de Pikachu a Raichu, apagando automaticamente a parte de sua biografia na qual sexuada rimava com balada.

A longa história de como chegamos à idealização da figura da mãe vai da fogueira em que se queimavam as bruxas ao burnout onde se queimam as profissionais e donas de casa. Para resumir, trata-se de ter empurrado a tarefa de cuidar —da casa, da família e da sociedade— para as mulheres, na tentativa de desonerar os homens, as empresas e o Estado em troca do selo de bela, recatada e do lar. O convencimento era feito pela ameaça física, de carregar a vexatória letra escarlate, da morte social que levava aos suicídios nas figuras de Anna Karenina e de Madame Bovary. Agora, o olhar vigilante das mídias funciona para enaltecer as mães ou para cancelá-las de vez.

Reza a lenda, desde fins do século 19, que as mulheres são instintivamente provedoras de cuidados e que homens são provedores financeiros. Mas não há como negar que a maioria absoluta das mulheres sempre acumulou as duas funções. Da divisão sexual do trabalho sobrou para a mulher a função "flex", enquanto o homem sequer cumpre sua parte no sustento de grande parte dos lares.

(Em tempo: está para ser votada a lei que regulariza a licença-paternidade)

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As obrigações femininas se multiplicaram na mesma medida em que as expectativas se tornaram surreais.

Pensemos o julgamento midiático do caso da atriz Larissa Manoela, cujos pais a teriam impedido de ter acesso à própria fortuna, alegando que era para protegê-la de exploradores. A lei brasileira é bem clara sobre o que é de quem nas situações de trabalho infantil, e o argumento de proteção da filha contra a ganância de estranhos se torna risível quando se sabe que a "filhinha" está com 22 anos. A psicanálise não perdoa a coincidência da data na qual essa bomba foi solta. Está aí um presente do Dias do Pais que não deixa dúvidas do destinatário.

Tão ruim quanto ter um pai/mãe invejoso/a, egoísta e ganancioso/a é ter um pai/mãe omisso/a diante de arbitrariedades cometidas contra o filho/a. No entanto, de lá para cá, só se ouve falar da mãe da atriz, como se o pai fosse uma flor de formosura.

Larissa Manoela com a mãe, a pedagoga Silvana Taques, e com o pai, o representante comercial Gilberto Elias, em foto publicada por ela nas redes sociais - @larissamanoela no Instagram

Em um mundo onde "mãe é tudo", a interpretação oscila entre ser tudo de bom —idealizada— e tudo de mau —execrada. Se ela é tudo, é o pai que está fora da conta.

A pergunta que insiste, e que revela o viés ideológico, é como uma mãe seria capaz de invejar, odiar, competir ou lesar um filho. A resposta é que existem tanto tipos de mães (e de pais) quanto existem tipos de mulheres (e homens) e que nesse grupo estão neuróticos, psicóticos, perversos, psicopatas, chatos, inconvenientes, gente boa, gente esquisita, enfim, tudo que pudermos colocar no balaio da humanidade.

Em cada filho se projeta uma miríade de expectativas, fantasias, ressentimentos, medos que só serão revelados no dia a dia da relação, em ato. Nem sempre o que se revela é simpático e, por vezes, é claramente criminoso. Para esses últimos, existe a lei. Para os demais, a eterna reflexão sobre o que os levou a serem pais/mães.

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