quinta-feira, 17 de agosto de 2023

RODRIGO ZEIDAN Protagonismo e regulação rígida do BC contribuem para juros altos, FSP

 Rodrigo Zeidan

Professor da New York University Shanghai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ.

[RESUMO] O Banco Central brasileiro tem uma autonomia sem paralelos no mundo e vem capitaneando o desenvolvimento do sistema financeiro do país, em um modelo de regulação muito diferente do americano e do chinês. A preservação da solidez de bancos e outras instituições, cerne da atuação do BC desde a crise de 1995, blinda o país de crises financeiras, mas contribui para a manutenção de taxas de juros estratosféricas.

"Somos um banco sólido. Como podemos ver no último relatório, estamos com mais de 50% acima do mínimo de capital exigido pelo Banco Central," afirmou com orgulho o vice-presidente de um dos grandes bancos brasileiros. "Mas isso significa um gigantesco capital parado, não?", retruquei. Passamos então a discutir os prós e os contras da regulação financeira no Brasil.

Os juros no Brasil, para muitas operações, são estratosféricos. Empresas não conseguem tomar empréstimos para crescer a taxas razoáveis, e os juros aos consumidores chegam a passar dos três dígitos por ano.

Moeda de um real - Mauro Pimentel - 29.ago.22/AFP

Contudo, resolver essa questão não é fácil. Soluções envolvem entender a evolução da arquitetura do sistema financeiro brasileiro e as escolhas regulatórias que fizemos e mantemos até hoje, além de compreender que algumas razões passam até pela nossa lenta Justiça. Em um país onde credores não têm segurança jurídica, o preço dos empréstimos tende a ser mais alto.

A estrutura de um sistema financeiro depende das condições legais e regulatórias e da infraestrutura de mercado. Por exemplo, o Pix e o vindouro Drex, o Real digital, dependem de regras de funcionamento e de uma infraestrutura técnica que permita que o sistema funcione a contento. É essa estrutura que determina como as instituições financeiras vão competir.

Por exemplo, no modelo chinês ou no americano, instituições financeiras podem inovar quase livremente, com reguladores correndo atrás e tapando buracos quando há possibilidade de crise financeira. Há também menor segmentação de mercado, com instituições competindo em todas as frentes, no crédito para pessoas físicas ou jurídicas, a curto ou longo prazo.

No modelo brasileiro que vigora hoje, nada importa mais que a solidez. O Banco Central pode até ter as ferramentas para destravar completamente os mercados, mas escolhe um sistema robusto e à prova de crises financeiras. O problema? Não há almoço grátis e convivemos com juros altíssimos em troca da extrema estabilidade do sistema.

Em parte, essa escolha vem pelos traumas da crise financeira de 1995. Poucos meses antes, o Plano Real tinha conseguido tirar a inflação dos quase 5.000% para pouco mais de 20% em 12 meses. A estabilidade econômica gerou um boom no consumo e trouxe para o mercado milhões de brasileiros antes excluídos pelas constantes altas dos preços.

Porém, um lado da economia não ia bem: os bancos. O desaparecimento dos ganhos financeiros gerados pela inflação descontrolada separou, de certa forma, o joio do trigo. Os bancos que tinham modelos de negócio sólidos se preparavam para a nova realidade, enquanto outras instituições patinavam. Quando bancos começaram a quebrar, teve início uma crise financeira que pôs em risco o plano de estabilidade econômica.

Para combatê-la, o governo federal criou o Proer (Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional) e o Proes (Programa de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual na Atividade Bancária), programas de reestruturação de bancos privados e públicos nos quais a instituição chegaria a aportar mais de R$ 30 bilhões.

No meio da crise, uma medida provisória mudou os rumos da regulação financeira no país. A MP 1.182/95 deu ao Banco Central o poder de definir os bancos que poderiam continuar operando, incluindo o poder de determinar o afastamento de suspeitos de práticas ilegais da administração de, impedir que os mesmos assumissem quaisquer cargos de direção ou administração de instituições financeiras e impor restrições às atividades da instituição financeira.

Essa MP e outras leis, bem como normas editadas pelo Banco Central, estabeleceram os principais pilares do sistema financeiro nacional. O BC capitaneou um processo de saneamento do sistema financeiro, em que bancos, seja por fraude, incompetência ou contágio da crise, se viram sem liquidez para continuar funcionando normalmente.

O Banco Central interveio em bancos como o Econômico (fundado em 1834), Bamerindus (1929) e Nacional (1944), que foram liquidados por meio de um modelo banco bom/banco ruim. As instituições eram divididas em duas entidades, e aquelas com ativos e dívidas "saudáveis" eram postas à venda, enquanto o BC cuidava dos créditos podres.

Enquanto isso, os bancos estaduais, muitos dos quais haviam sido quebrados para ajudar na eleição de políticos locais, foram privatizados (o Santander chegou a pagar R$ 7,05 bilhões pelo Banespa em 2000, quase R$ 5 bilhões a mais que o segundo maior lance, do Unibanco).

Hoje, o sistema financeiro é muito diferente do existente no início do Plano Real, mas o cerne da atuação do Banco Central continua a mesma: a busca de solidez quase acima de tudo.

Captura regulatória é a ideia de que as empresas conseguem, seja por pressão ou litigiosamente, limitar o poder dos reguladores. No Brasil, ocorre o inverso. O Banco Central tem uma autonomia que a maioria das autoridades monetárias mundiais nem sonha em ter. O processo de desenvolvimento do nosso sistema financeiro acontece capitaneado pelo BC e não necessariamente por inovações financeiras das instituições, como em outros países.

Isso, no entanto, não quer dizer que o status quo é necessariamente ruim e que o sistema não muda. Ao longo das últimas décadas, o Banco Central travou várias batalhas, algumas mais e outras menos importantes, para destravar o crédito —desde que, claro, sem reduzir a solidez do sistema.

Por exemplo, em 2002, ano em que Lula se elegeu pela primeira vez, a maior parte da dívida pública estava dolarizada e era de curtíssimo prazo, com o Tesouro às vezes enfrentando problemas para rolar os títulos. Ao longo dos anos seguintes, o BC liderou o processo de extensão do perfil da dívida. Hoje, ela não somente está quase toda em moeda nacional como tem um perfil adequado a um país de renda média.

O Sistema Brasileiro de Pagamentos, o Tesouro Direto, o Pix, o Cadastro Positivo e, agora, o Drex são importantes medidas para desembaraçar transações comerciais. Ao longo da última década, apareceu algo que quase não existia no Brasil: um mercado de dívidas privadas de longo prazo. No passado, empréstimos de longo prazo para empresas eram quase um monopólio do BNDES. Se os agentes não queriam comprar títulos públicos de longo vencimento, que dirá de títulos privados?

Mas mudanças regulatórias, como a criação de debêntures incentivadas, nas quais investidores não pagam Imposto de Renda, e a redução dos juros entre 2017 e 2020, mudaram esse cenário. Em um trabalho recente, Ernani Torres, Luiz Macahyba e Norberto Montani Martins mostram como esses dois fatores tornaram atrativo para as empresas emitir novos títulos de dívida, se beneficiando de custos financeiros mais baixos. Como os juros tinham caído, investidores passaram a buscar maior rentabilidade, comprando títulos corporativos com juros mais elevados que os da dívida pública de então.

Ainda assim, a busca pela segurança limitou o crescimento desse mercado. Em um primeiro momento, pessoas físicas podiam comprar esses títulos, mas normas do BC e da CVM (Comissão de Valores Mobiliários) limitaram o acesso de investidores a títulos com mais risco, por exemplo, que os do Tesouro Direto.

Hoje, a Selic em dois dígitos limita o crescimento desse segmento de crédito para empresas de médio e de grande porte, mas com uma redução na taxa básica, esse mercado deve voltar a crescer (os autores argumentam que os incentivos, hoje restritos a certos setores, também devam ir para investimentos da indústria de transformação).

Entretanto, enquanto algumas partes do sistema avançam, em outras parece que não saímos do lugar. Pequenas empresas e consumidores continuam a enfrentar taxas de juros estratosféricas —isso quando têm qualquer acesso a crédito. Isso acontece mesmo com a entrada dos novos bancos digitais e outras fintechs.

Por que isso? Em grande parte, porque o mercado de crédito brasileiro é extremamente concentrado. Em outra, por causa do excesso de compulsórios e crédito direcionado. Essas são decisões institucionais.

Por último, a nossa Justiça lenta contribui para isso, mas a falta de competição de mercado explica muito mais os juros estratosféricos que qualquer outra coisa (em artigo na Revista Brasileira de Finanças, analiso os estudos sobre o assunto para consolidar nosso entendimento sobre por que os juros no Brasil são tão altos).

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