terça-feira, 15 de agosto de 2023

Por que acreditamos em fake news, mas não no jornalismo?, Wilson Gomes, FSP (definitivo)

 Uma coisa ainda intriga quem permaneceu lúcido nesta década terrível da política brasileira: como determinado relatos, por mais implausíveis que possam parecer a quem os examina com cautela, sempre encontram multidões decididas não só a passá-los adiante como também a se comportar como se fossem verdades pelas quais se pode matar ou morrer. Para confirmar esse espanto, basta ver a lista de fake news sem pé nem cabeça disseminadas durante o surto de antipetismo (2016-2020) e no auge da pandemia de coronavírus (2020-2022).

O contrário é verdadeiro e igualmente impressionante. Relatos provenientes de fontes sérias, profissionais e que gozam de uma razoável reputação de honestidade, sempre encontram multidões que convictamente lhes negará qualquer credibilidade.

O ceticismo e a credulidade, portanto, principalmente em situações de crise e polarização, parecem não ter exatamente base na realidade, uma vez que haverá milhões dispostos a crer em boatos, inclusive em boatos falsos e maledicentes, como fake news, e a descrer, com a mesma intensidade, no noticiário ou em relatórios científicos.

A questão aqui não é se as pessoas creem ou não nos boatos —já sabemos que sim—, mas como inferem a sua autenticidade, que recursos usam para concluir se podem ou não confiar na sua veracidade. E, inversamente, como chegam à conclusão de que devem recusar a plausibilidade de outros relatos, boatos, notícias ou relatórios científicos que sejam.

Na ilustração preto e branco de Ariel Severino, uma mão segura um celular.  Na tela, notícias de jornal desfocadas, dela pulam dois cachorros raivosos, seus corpos metade recorte de jornal, metade desenho a bico de pena.  Estão se abalançando sobre um outro cachorro, todo em bico de pena, que anda vagarosamente e com a sombra feita de recorte de jornal.
Ilustração de Ariel Severino para coluna de Wilson Gomes de 15 de agosto de 2023 - Ariel Severino/Folhapress

Algumas décadas de pesquisa sobre boatos, e, mais recentemente, sobre esse peculiar tipo de boato que são as fake news, nos indicam pelo menos três bases para a decisão subjetiva sobre a confiabilidade de um relato. Por razões de espaço, tratarei hoje apenas da primeira delas: a congruência entre o relato e as atitudes já adotadas pelo indivíduo ou seu grupo.

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Atitudes são posições afetivas e cognitivas, estáveis e constantes, que supõem decisão já tomada sobre valores, princípios e preferências. Que atitudes já adotadas têm decisivo impacto nos juízos que fazemos é sustentado por número considerável de pesquisas. Preferência política, identificação, orientação religiosa, inclinações morais, tudo isso pesa na nossa percepção e no nosso juízo sobre os fatos e definitivamente nos inclina, de maneira mais ou menos inconsciente, para determinadas decisões que nós pensamos ser autônomas e baseadas puramente na razão.

Em suma, inclinações enviesam de forma decisiva as nossas decisões, inclusive aquelas sobre a confiabilidade do que escutamos ou lemos. Por isso, mesmo boatos absurdos são tomados como verdade, enquanto reportagens muito bem apuradas podem ser descartadas como mentiras deslavadas.

As atitudes que adotamos estão, geralmente, em diferentes estágios de sedimentação, de forma que alguns estratos são mais suscetíveis a negociações com a realidade e à influência do ambiente, enquanto outros estão tão arraigados que somos capazes de enfrentar, por elas, tanto o ambiente social quanto a própria realidade, mas não cedemos. Tornam-se filtros tão poderosos na nossa relação com os acontecimentos que nem sequer damos ouvidos ao que é dissonante da posição cognitiva e emocional que adotamos; menos ainda consideramos a plausibilidade do que está sendo dito. Assim como, inversamente, acolhemos integralmente o que confirma nossas expectativas e desejos, independentemente de qualquer juízo de probabilidade.

A charge de Jean Galvão publicada na Folha mostra bolsonaristas quebrando tudo na praça dos três poderes. Um deles grita para um segundo que está socando com um pedaço de ferro uma parede de vidro: “No domo da Terra Plana não!”
Jean Galvão

Pesquisas empíricas durante algumas décadas registraram como ondas de boatos foram, em várias ocasiões, congruentes com atitudes muito enraizadas no ambiente social, como o autoritarismo, o supremacismo, animosidades étnicas e nacionalistas, o medo de inversão do status social, a autodefesa em relação à moralidade sexual, preconceitos raciais e religiosos, o sentimento anticomunista etc. Assim como a disseminação dos sentimentos antipolítica e antipetista, entre 2016 e 2020, eram consistentes com a onda de boatos que surgiu na época, do mesmo modo como a atitude anticientífica, obscurantista e de alinhamento ao trumpismo, de 2020 a 2022, foram congruentes com a onda de fake news negacionistas daquele momento.

Isso leva também ao comportamento contrário, de recusa de qualquer informação que desafie a crença, se choque contra as convicções arraigadas, enfrente as atitudes já adotadas pelo grupo de identificação. Pois assim como é melhor estarmos acompanhados do que estarmos certos, também é verdade que não permitiremos que uma malta de fatos brutos, mesmo provenientes do jornalismo, faça qualquer mal às nossas lindas convicções.

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