domingo, 27 de agosto de 2023

MEIO Edição de Sábado: O Exército visto por dentro

 

Por Jussara Soares*

Numa caixa preta, de fechos e dobraduras douradas, revestida de vermelho, jazia um coqueiro de ouro. Ao menos naquele comecinho de janeiro, achava-se que era ouro. Na dúvida, melhor mandar avaliar. Na era digital, antes de qualquer exame físico, faz-se uma troca de fotos. Por WhatsApp. No reflexo da caixa preta, está a imagem de um homem calvo, idoso, sério, concentrado. Numa missão. É o general da reserva Mauro Lourena Cid. É uma prova num inquérito da Polícia Federal. É um registro difícil de negar, sequer minimizar. O Exército estava envolvido de forma incontornável na venda privada de um bem público. Era hora, nas palavras de um interlocutor da Força, de começar a "entregar as cabeças na tentativa de fazer o Exército parar de sangrar”.

O Alto Comando do Exército havia sido avisado na véspera, na noite de 10 de agosto, uma quinta-feira, de que a Polícia Federal faria uma operação mirando militares. Mergulhado no que já é considerada a mais extensa crise desde o fim da ditadura, o generalato previa mais um constrangimento às vistas de todos. Não imaginava, porém, a gravidade do que ocorreria na manhã seguinte. Policiais federais fizeram uma busca na residência de Lourena Cid, até ali um respeitado oficial de quatro estrelas. O reflexo na caixa e os detalhes do envolvimento de Lourena Cid e seu filho, o ex-ajudante de ordens e tenente-coronel Mauro Cid, numa investigação de esquema ilegal de vendas de presentes davam a dimensão do embaraço do qual o Exército tenta se desvencilhar. As minúcias do caso são muitas: a suspeita é que, atendendo a um pedido do filho, o general levou as esculturas — havia um barco dourado também — para serem avaliadas por lojas especializadas em janeiro deste ano em Miami, nos Estados Unidos. “Não valem nada. É, é... não é nem banhado, é latão”, decretaria Mauro Cid depois. Mas não só. Segundo a investigação, o dinheiro da venda de joias que valiam algo pro grupo passou pela conta do general.

Até se tornar alvo da PF, o general Lourena Cid vinha sendo amparado pelo Exército. Era defendido nos bastidores por colegas de farda, que tentavam poupar o oficial, separando o pai das suspeitas envolvendo o filho. Naquela sexta-feira, isso acabou. A crise mudou de patamar. Para blindar a instituição, a cúpula da Força optou por uma estratégia de individualizar as responsabilidades de militares, mesmo os de alta patente, investigados por inquéritos no Supremo Tribunal Federal (STF) e alvos da CPMI e da CPI do Distrito Federal que apuram os ataques golpistas de 8 de Janeiro. Pelos cálculos internos, ao menos 30 militares, da ativa e da reserva, foram citados ou estão envolvidos em investigações.

A tarefa de reconstruir a imagem da Força e as pontes institucionais é do atual comandante do Exército, general Tomás Paiva, nomeado por Lula em 21 de janeiro — 13 dias após os ataques contra a sede dos Três Poderes. Tomás ascendeu ao comando substituindo o general Júlio César Arruda, demitido com a justificativa de “fratura de confiança” após os atos golpistas. Naquela época, Arruda também resistia em impedir que o tenente-coronel Cid, braço direito de Bolsonaro, assumisse o 1º Batalhão de Ações e Comandos, unidade de Operações Especiais, em Goiânia.

Ao chegar ao topo do Exército, Tomás tomou medidas para atender o Palácio do Planalto, incluindo o bloqueio a Cid no comando em Goiânia, e assumiu o compromisso de “despolitizar” a Força, que hoje tem cerca de 205 mil integrantes na ativa. Já no dia 28 de fevereiro, ao divulgar suas diretrizes, o general escreveu querer o “fortalecimento da imagem do Exército como instituição de Estado, apolítica, apartidária, coesa, integrada à sociedade e em permanente estado de prontidão.” Se essas palavras soam familiares, é porque no dia 10 de agosto, aquela quinta do alerta sobre a operação da PF, Tomás redigiu a ordem fragmentária nº1, em que usa exatamente as mesmas. A ordem foi publicada somente no dia 18. Mas foi naquele turbilhão pré-Lourena Cid que Tomás sentiu que precisava reforçar para a tropa o comando de torná-la apolítica e coesa.

“O general Tomás, quando assumiu, fez sua diretriz para os quatro anos. A ordem fragmentária vem reforçar e detalhar aspectos dessa diretriz. O mais importante dessa ordem é a criação desse grupo de trabalho para tratar todos os assuntos, como a coesão, a família militar, moradia e salário”, disse um auxiliar próximo ao comandante do Exército. O grupo a que esse general se refere é o Grupo de Trabalho de Apoio à Gestão Institucional (GTAGI), sob coordenação do Estado Maior do Exército (EME), comandado pelo general Fernando Soares. “Não se trata de um gabinete de crise clássico. Até porque o Exército não tem o conhecimento de tudo o que está acontecendo, as investigações estão sob segredo de Justiça”, acrescenta o militar. Além disso, a cúpula entende que não tem como atuar disciplinarmente ou abrir um inquérito porque esses fatos não ocorreram dentro da instituição, embora os envolvidos sejam militares. “É um gabinete que vai adotar medidas para melhorar a informação para o público interno e externo, mostrar para a sociedade o que fazemos e que desvios são fatos de pessoas e não da instituição.”

Ex-ajudante de ordens dos presidentes Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, de quem se tornou bastante próximo, Tomás Paiva é considerado habilidoso e moderado politicamente. No governo do presidente Michel Temer, atuou como chefe de gabinete do general Eduardo Villas-Bôas, o então comandante do Exército que, às vésperas do julgamento de Lula em 2018, publicou um tuíte para mandar um recado ao Supremo. Tomás Paiva teria atuado para atenuar o tom daquela mensagem, segundo um aliado. Já no governo Bolsonaro, o general esteve à frente do Comando Militar do Sudeste e, inúmeras vezes, ciceroneou o ex-presidente no Hotel de Trânsito em São Paulo. A avaliação de Lula ao indicá-lo ao comando do Exército era de que Tomás manteve a neutralidade em todos os postos, sem se deixar contaminar pelo chefe político da ocasião.

Agora, Tomás é algodão entre cristais. Do lado esquerdo, os militares são acusados de leniência com os intentos golpistas de Bolsonaro e seus apoiadores. Do outro, à direita mais extrema, são criticados por não terem atendido aos apelos por uma intervenção militar. Uma pesquisa da Genial/Quaest apontou que o número de brasileiros que dizem confiar “muito” no Exército caiu de 43% para 33%. A comparação foi feita com resultados de um levantamento de dezembro de 2022. A sondagem mostrou que 36% dizem confiar “pouco” e 18% afirmam “não confiar”. O dado que mais chama atenção é que a queda da confiança foi mais acentuada entre eleitores do ex-presidente Bolsonaro. Neste grupo, o percentual dos que “confiam muito” despencou de 61% para 40%, e os que “não confiam” escalaram de 7% para 20%. É gente que foi insuflada, por anos, a acreditar que os militares tomariam o poder caso Bolsonaro perdesse.

Não tomaram, mas talvez muitos quisessem fazê-lo. Ao menos, essa é a percepção que ficou para a sociedade civil. Seguindo a instrução de individualizar responsabilidades, um general diz que a repercussão política dentro do Exército se restringia a Brasília, não era uma realidade nas unidades espalhadas pelo país. “A politização ocorre em certas pessoas que estavam próximas ao núcleo de poder. Isso, sim, aconteceu. Para alguns que estavam em Brasília e foram ocupar cargos no Executivo ocorreu a politização, para os demais não. A tropa não se politizou. Embora individualmente as pessoas tenham suas preferências, elas não deixaram de cumprir ordens porque uma autoridade é de direita ou esquerda.”

Ao negar a contaminação política da tropa, oficiais atribuem o desgaste à “generalização brilhante”. Esse é um conceito amplamente difundido nas Forças Armadas. Segundo o Manual de Operações Psicológicas do Exército, essa é uma técnica de propaganda para confundir a opinião pública com a "utilização de exageros e palavras com alta conotação emotiva, como paz, honra e liberdade, intimamente associadas com ideias de uso comum, sem que haja necessidade de clara definição desses conceitos na mente do público.” Não surpreendentemente essa tática passou a ser atribuída a comunistas pela direita. O general Braga Netto, chefe da Casa Civil e ministro da Defesa de Bolsonaro, chegou a usar a expressão na Câmara dos Deputados quando foi chamado a explicar a atuação do colega Eduardo Pazuello, general e ministro da Saúde. Braga Netto disse que atos em defesa de Bolsonaro, que pediam intervenção militar, eram demonstração de patriotismo. Quem dizia o contrário estaria usando a tática “socialista” da “generalização brilhante”, afirmou Braga Netto. “O senhor pega, no meio de uma multidão toda com bandeira amarela, uma ou duas pessoas que realmente fazem algo antidemocrático e generaliza."

Despolitizar indivíduos ou instituições não é algo trivial nem que se faça por decreto. Mesmo que se tente. Ainda durante o governo Bolsonaro, a participação de militares — incluindo da ativa — no Executivo levantou o debate de como criar travas para evitar a contaminação política das Forças. A jornalista Lydia Medeiros noticiou que o ministro das Relações Governamentais, Alexandre Padilha, tem em sua mesa uma proposta de emenda constitucional que proíbe que militares voltem aos postos após ocupar cargos políticos. O texto, segundo a colunista, teria partido do Ministério da Defesa. Ao Meio, militares afirmam que desconhecem discussão neste sentido e citam que a legislação atual já prevê que integrantes das Forças Armadas ao serem eleitos passam automaticamente para reserva, assim como comandante do Exército ao ser indicado pelo presidente da República.

Se não há forma clara de despolitizar as tropas, na prática, o grupo de generais e coronéis do gabinete da não-crise terá duas missões principais. A primeira delas é dedicar-se a discutir propostas de aumento de salário, proteção social e outras medidas que melhorem a vida de militares, em especial de baixa patente, descontentes com a diferença salarial com o alto escalão. A segunda é criar estratégias de se reconectar com a população, reforçando o caráter “mão amiga” presente do grito de Guerra do Exército. Ou seja, destacando ações do Exército nas diferentes regiões do país. “Não há duvida de que estamos sofrendo uma fricção à imagem, o Exército está sob holofotes ruins. Vamos reconstruir fazendo o que sempre fizemos, apoiando a população, cumprindo as tarefas de defesa da pátria e nas fronteiras, e mostrando o profissionalismo e lisura. Não adianta a gente querer que isso seja a curto prazo, pois não será” avalia um oficial. As primeiras reuniões do grupo estão marcadas para os dias 5 e 19 de setembro.

Enquanto isso, o comandante do Exército tem rodado o país visitando unidades militares. Desde que assumiu o comando, viaja pelo menos uma vez por semana na tentativa unir a Força, debelar focos de insatisfação e, consequentemente, insubordinação nas tropas. Foi desse exercício de escuta que decorreu o esforço para melhorar as condições de vida das baixas patentes.

Em outra frente, auxiliado pelo ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, o general Tomás busca interlocução com outros atores da República. Nesta semana, o presidente da CPMI dos atos golpistas, o deputado Arthur Maia (MDB-BA), esteve no Quartel-General em uma reunião com o Tomás e Múcio. O encontro teria sido solicitado pelo parlamentar. Ao deixar o QG, Maia defendeu a instituição e repetiu o discurso do Exército de que os desvios são individuais. “A condição individual de alguns membros não diminui o papel das Forças Armadas. Houve sim, dentro do Exército, pessoas que queriam manifestar sentimento contra a democracia. Não Exército como instituição, mas pessoas físicas.”

Nesta sexta-feira, dia 25, a cerimônia do Dia do Exército foi acompanhada pelo ministro do STF, Alexandre de Moraes, responsável pelos inquéritos que miram o ex-presidente Bolsonaro e militares próximos, e pelo diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Rodrigues. O convite aos dois foi feito por intermédio do ministro da Defesa. Em seu discurso, o comandante prometeu ser severo com “desvios de conduta”, reforçando o recado de que não haverá blindagem a militares. “Esse comportamento coletivo não se coaduna com eventuais desvios de conduta, que são repudiados e corrigidos, a exemplo do que fez Caxias, o forjador do caráter militar brasileiro”, disse Tomás Paiva. A ordem é clara. A missão, difícil.

*Jussara Soares é repórter de política em Brasília. Passou pelo GloboEstadão e Época, entre outros. Nos últimos anos, dedicou-se à cobertura do governo Bolsonaro, da direita e das Forças Armadas

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