O Cerrado está esgotado. A estiagem que enxuga as árvores retorcidas e o solo ácido é costumeiramente cruel. Mas é o homem o agente central da aceleração na exaustão da “savana brasileira”. O Cerrado registrou um crescimento de 16,5% no desmatamento entre junho de 2022 e junho de 2023, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Entre janeiro e junho deste ano, o Inpe já registrou aumento de 21% na devastação do Cerrado em relação aos mesmos meses do ano passado. A destruição está em ascendente. Em maio deste ano, desmatou-se 83% a mais que no quinto mês do ano passado.
Talvez pelo cenário de natureza peculiar, de árvores tortuosas e vegetação rasteira, seja difícil para alguns ligar a noção de desmatamento ao Cerrado. Mas ele está lá. Acelerado. O Cerrado é o segundo maior bioma brasileiro, atrás apenas da Amazônia, ocupando 20% do território nacional com seus mais de dois milhões de quilômetros quadrados originais. É uma Europa Ocidental no coração do Brasil. Metade disso (48%) já foi devastada. É — ou era — a parte sul do bioma, que abrange pedaços de Paraná, Minas e São Paulo.
Desde a campanha presidencial, o presidente Lula (PT) tem falado muito de Amazônia. Com a ministra Marina Silva ao lado, prometeu reduzir o desmatamento na região já a partir do primeiro dia de mandato. E tem cumprido. O aumento da devastação no Cerrado destoa das reduções percebidas na Floresta Amazônica, que, em 2023, teve 33% de alertas de desmatamento a menos, segundo o Sistema Deter, do Inpe. Mas o crescimento de um e a diminuição do outro são parte do mesmo fenômeno. Para além das ligações naturais entre dois ecossistemas fronteiriços, o bioma do coração do Brasil virou destino para quem desmatava na região Norte. Sozinhas, entretanto, a estiagem e a migração amazônica não explicam o risco para o Cerrado.
A resposta está nos grãos, na carne e na posse: cerca de 75% do desmatamento deste ano no bioma foi registrado na região que divide Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, o Matopiba, atualmente a maior fronteira agrícola brasileira. O agronegócio responde por cerca de 97% do desmatamento do ecossistema, numa dinâmica que é basicamente luta por terreno — e terreno para boi dormir. “A gente observa 33 milhões de hectares de pastagens degradadas ou subutilizadas. A Embrapa estima que cada hectare pode receber quatro cabeças de gado; no Cerrado, a média é de apenas uma”, explica Yuri Salmona, pesquisador do Instituto Cerrados. O que completa o tridente de um ecossistema em crise são as escrituras e titulações. Enquanto a Amazônia tem boa parte de seu território como terra pública, o Cerrado, a “savana brasileira”, está em mãos particulares, o que dificulta a ação do Estado e a regulamentação. Hoje, o Cerrado tem apenas 8,3% de sua extensão protegida, seja em áreas demarcadas ou Áreas de Proteção Ambiental (APA), com somente 3% de áreas de proteção integral.
Essas questões mantêm lá em cima a devastação que, historicamente, é muito alta. “Aumentar o desmatamento é ruim por si só, mas aumentar num lugar que já tem 50% do bioma morto é suicídio”, aponta Salmona. “É como se o Cerrado fosse um homem já muito careca que ainda perde muito cabelo.”
Os segredos da terra
A frase geralmente é usada para o estado de São Paulo, mas Salmona a reivindica para o Cerrado: “Nosso bioma é a locomotiva da nação”, diz ele, que defende um olhar apaixonado para o momento do meio ambiente no país. A centralidade do ecossistema no mapa deveria ser copiada para as ações públicas, como ele diz. Para a política institucional. Já foi, por força de convenção internacional, lá em 2010, pelo Tratado de Aichi. O acordo previa, entre muitas outras medidas, que, até 2020, todos os biomas dos signatários teriam 17% de suas áreas protegidas por Unidades de Conservação. A Comissão Nacional da Biodiversidade (Conabio) foi escalada para acompanhar a evolução das demandas, mas o negócio “não pegou” por aqui. A Conabio foi esvaziada por decreto de Bolsonaro em 2020, justamente no ano de encerramento do prazo para as metas estipuladas. Nem metade da meta de preservação foi cumprida.
É sobre isso que Yuri fala quando prega que temos de “repensar o país a partir do Cerrado”, ideia que talvez traga outros dividendos. O Cerrado é a marca da resistência. São as árvores que se contorcem sob um sol escaldante e vermelho, é a mata espinhosa e quebradiça, singular. Única. Arranha o corpo e não se deixa passar despercebida. É, em partes, ser mais como Madalena Soares. “Madá” é uma mulher bem tímida. Fala mansa, pausada. Em ritmo de interior, ela conta que não é apenas moradora e agricultora no Cerrado; ela é parte ativa do bioma. No mesmo tom que fala da rotina — que começa às 4h, “antes mesmo do sol” —, ela conta que será palestrante numa universidade particular de Brasília. Madá é bem famosa.
No movimento Slow Food, voltado à política alimentar e à agricultura sustentável, ela tem espaço garantido para falar sobre suas práticas. Madá era uma comerciante comum no Ceasa de Brasília até meados de 2014. De lá pra cá, formou-se técnica agropecuária pelo Instituto Federal de Brasília (IFB), aprendeu variações no cultivo e na colheita de frutas nativas e desenvolveu novos produtos a partir do que extrai da terra. Tudo com Madá é assim, utilizado até a última possibilidade, retorcido ao máximo. Como as árvores que a rodeiam.
Sua farinha de casca de baru é uma das especiarias mais procuradas na feira, e já chamou a atenção de alguns restaurantes da capital, que agora têm nela uma fornecedora dedicada. “Eu louvo tudo. O baru eu cuido do pé à flor, da semente à casquinha.” É com deferência que Madá lida com a terra. “A gente tem que dar valor a cada pezinho de árvore. Pode não dar fruto ainda, mas um dia vai dar.” Madá se aproveita dos segredos soprados que só quem é parte do bioma sabe ouvir. “Quem diz pra mim que tá na colheita do baru é a arara, que voa com ele no bico. A biodiversidade daqui é demais, são mais de três mil frutos. O ser humano aqui destrói pra plantar soja ou para ‘plantar boi’.”
Não só de frutos se faz a diversidade do Cerrado, que é casa para mais de 11 mil plantas, “podendo chegar a 14 mil”, segundo Salmona. Essa é uma das entradas que o biólogo enxerga para uma economia verde, voltada à exploração sustentável do bioma. Há chances também pelo mercado de carbono. O Cerrado é responsável por reter mais de 13 bilhões de toneladas de dióxido de carbono que iriam à atmosfera. Com um tesouro desses, parece loucura derrubar ou queimar a terra. É loucura. Mas compensa. Algumas missões de pesquisadores mata adentro conseguem perceber que a terra no bioma, hoje, vale mais dinheiro quando devastada.
O berço das águas
Madá mora e produz numa chácara de 12 hectares no assentamento Veredas II, a meio passo de Padre Bernardo, município goiano no entorno do Distrito Federal. Ela percebe as mudanças nos hábitos mais básicos. No imóvel, onde “jorrava água”, o líquido começou a rarear durante a estiagem. O jeito foi cavar uma cisterna, mas a água continuou a fugir. Ela apelou para um brejo a cerca de dois quilômetros de sua propriedade. E lá foi Madá com picareta, enxada e pá. “Mas ainda periga, viu?”, alerta, em tom grave.
Conhecido por “berço das águas” do Brasil, o Cerrado abriga as nascentes de quatro das mais importantes bacias brasileiras: a do Tocantins, afluente do Amazonas; a do próprio Amazonas, por meio do Xingu; a do São Francisco, o icônico “Véio Chico”; e a do Paraná, “o mais fértil e também o mais importante para a geração de energia elétrica no Brasil”, segundo Salmona. Há outras 3.424, mas essas são as de maior destaque. O que nasce no Cerrado, com sua paisagem avessada, é valioso. É possível destruir o Pantanal e toda sua diversidade sem nem tocar naquela região. Só devastando o Cerrado. Porque saem dali as águas que inundam a floresta pantaneira.
Em estudo, Salmona analisou as bacias hidrográficas enquadradas no bioma, em registros que vão de 1935 a 2022. O resultado? Houve queda na vazão de todas elas, o que reflete nos rios. Uns mais, outros menos, mas em média 15% da vazão dos cursos d’água que saem do Cerrado foi perdida, graças às mudanças no solo — “leia-se desmatamento”, traduz o pesquisador. Numa projeção feita até 2050, a tendência é que 34% da capacidade hidrológica seja perdida. Isso num cenário otimista, “com políticas públicas contra desmatamento e modelo climático de menor emissão de CO2”.
O timbre tranquilo de Madalena só se altera quando ela fala da destruição de seu lar. A raiva sobe aos olhos e aperta a garganta. Madá chora num misto de dor e ódio, como se houvesse perdido um parente. “Desculpe, filho”, diz ela, envergonhada. “É maldade demais. O Cerrado faz parte de mim, é da minha família.” Mas Madá não arreda o pé. “Eu enfrento esse mato todinho no facão e na enxada, mas não boto fogo. Trabalha eu e Deus.” Ela enxuga os olhos e se reconforta na ideia de um parceiro de batalha. “Eu me sinto o próprio Chico Mendes, como se eu tivesse lutando sozinha.”
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