Jair Bolsonaro certamente nunca leu Dostoiévski, e imagino que nem teria capacidade cognitiva para tanto. Desde que o presidente chamou de “idiotas” as pessoas que ficam em casa fazendo quarentena, pensei que poderia fazer alguma relação com o personagem Michkin, do livro “O Idiota”. Não achei relação. Mesmo assim, fiz um esforço para imaginar como o personagem do autor russo se comportaria ocupando o Palácio do Planalto.
O livro de Fiódor Dostoiévski conta a história de um príncipe humanista, epilético e que carrega uma compaixão sem limites, uma ingenuidade mordaz, um sujeito que não vê maldade nas pessoas e que é capaz de perdoar até os seus algozes, por isso é chamado de idiota. O personagem é, na verdade, uma mistura de Dom Quixote com Jesus.
Em meu exercício de imaginar Michkin ocupando o Palácio do Planalto, cheguei a uma conclusão: a de que estaríamos muito melhores com “o idiota” no poder. Pois certamente estaríamos vacinados, certamente teríamos um auxílio emergencial (não de R$ 300, mas de R$ 3.000, o que, convenhamos, é o mínimo para se ter uma vida digna).
Com “o idiota” no Palácio do Planalto teríamos uma economia estável, um Ministério da Educação laico e que saberia o que fazer com o Enem. Teríamos também um ministro do Meio Ambiente sem envolvimento com esquemas de madeireiros ilegais na Amazônia, nem secretário da Cultura andando armado, mas com livros e que soubesse pelo menos quem é Lina Bo Bardi —e, principalmente, teríamos um ministro da Saúde que entendesse de medicina, não só de logística, e que não deixaria ninguém morrer por falta de oxigênio.
Além de imaginar “o idiota” de Dostoiévski na Presidência, fiz um outro exercício: de que modo a filósofa judia alemã Hannah Arendt analisaria a CPI da Covid se ainda estivesse entre nós.
Depois da fala do senador Renan Calheiros (MDB-AL) na abertura de uma das sessões da comissão, quando comparou o comportamento de alguns depoentes com aqueles que foram julgados no famigerado tribunal de Nuremberg pelos crimes cometidos pelos nazistas, pensei que poderia imaginar isso também. Embora haja diferenças significativas entre o holocausto e a pandemia, sou obrigado a concordar com o senador: há semelhanças de comportamento entre alguns dos depoentes da CPI e os acusados de Nuremberg.
Pôr a culpa na burocracia, por exemplo, ajuda os responsáveis pelos crimes a lidar melhor com suas consciências ou a tentar se livrar da pena. Burocratizar a administração e o manejo de ações que têm como resultado a morte de milhares de pessoas é uma estratégia conhecida.
No entanto, as semelhanças param por aí. O que vemos hoje é muito pior e está para além da “banalidade do mal” —expressão cunhada no livro que Hannah escreveu sobre o julgamento do oficial nazista Adolf Eichmann—, pois, aqui, a razão, a verdade e as evidências não estão mais em crise, elas entraram em colapso. A verdade foi implodida.
Trazer falas em vídeos do presidente Bolsonaro contra a compra de vacinas, contra o isolamento e contra as máscaras não é suficiente. O esvaziamento dos fatos pela negação do negacionismo é um fenômeno que extrapola uma análise via “banalidade do mal”. Até porque o assombro de Hannah Arendt ao constatar que o autor de tamanha monstruosidade contra os judeus era um homem comum, um burocrata, um cidadão de bem e cumpridor de suas tarefas, não corresponderia ao que ocorre hoje.
Repito: a situação aqui é outra, pois sabemos que um crime foi cometido e que está macabramente exposto no número de vítimas da Covid-19, um crime que já tem fatos e circunstâncias comprovados. No entanto, o que mais causa perplexidade é a narrativa de que tudo foi feito pensando em fazer o melhor. Nesse sentido, Hannah teria que fazer, talvez, um outro exercício teórico: “a banalidade do bem”.
Portanto, nem Hannah nem o autor russo dariam conta do que está acontecendo hoje no Brasil. Mas uma coisa é certa: ter “o idiota” de Dostoiévski na Presidência nos pouparia de muitos sofrimentos. Sim, Michkin, o idiota, é melhor que Bolsonaro.
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