domingo, 20 de junho de 2021

Universal aproveita brecha legal no governo Bolsonaro para estrear TV Templo, FSP

 Julio Wiziack

SÃO PAULO

No dia 2 de março, um texto publicado no site da Igreja Universal do Reino de Deus anunciava: "Uma grande novidade está no ar".

Com Morning Show, a igreja inaugurava outro braço de seu império midiático, a TV Templo.

"A programação apresentará também o poder de Deus na vida das inúmeras pessoas que passaram pelos encontros que ocorrem no Templo de Salomão", dizia a reportagem, referindo-se à réplica da construção bíblica que a denominação do bispo Edir Macedo ergueu em São Paulo.

A TV Templo ocupa 22 horas diárias de transmissões pela Rede Brasil, concessionária que pertence ao empresário Marcos Tolentino. Opera pelo canal aberto 10.1, na capital paulista, onde fica sua sede. Para colocá-lo de pé, a Universal aproveitou uma brecha aberta pelo governo Jair Bolsonaro.

Em 31 de março, quase um mês após o canal estrear, Bolsonaro assinou um decreto liberando emissoras comerciais da TV digital aberta a dividirem sua programação com terceiros. Antes da ordem presidencial, essa modalidade de transmissão, conhecida como multiprogramação, só podia ser realizada por canais consignados a órgãos e entidades integrantes dos poderes da União, como TV Brasil (EBC), TV Câmara, TV Senado e TV Justiça.

Devido à pandemia, as emissoras abertas já sabiam que o governo autorizaria a multiprogramação em caráter temporário por um ano.

Hoje, algumas delas vendem espaço na sua grade para transmissão de programas religiosos, caso da RedeTV! e da Band. A Record, emissora do bispo Macedo, também exibe programas da igreja, mas menos do que nos demais canais.

A multiprogramação é um recurso diferente, em que um mesmo canal da TV digital consegue transmitir programações simultâneas. Isso é possível dividindo em até quatro blocos a faixa de frequência em que a emissora emite seus sinais.

Frequências são como avenidas por onde as emissoras fazem trafegar seus sinais com a programação. Os sinais são captados pelas antenas receptoras das retransmissoras ou das televisões nas residências.

Com a multiprogramação, cada TV pode veicular, ao mesmo tempo, até quatro programações diferentes —o canal da Universal ocupa uma delas. O único inconveniente é a perda de qualidade da imagem.

Para operar, as partes envolvidas precisam assinar um convênio e submetê-lo ao Ministério das Comunicações. A permissão só vale para que sejam transmitidos programas educativos e de informação para ajudar os telespectadores no enfrentamento da pandemia causada pelo coronavírus.

O decreto permite conteúdos destinados a “educação, ciência, tecnologia, inovação, cidadania e saúde, com fins exclusivamente educacionais ou de exploração comercial, em razão da pandemia de Covid-19”.

Carro-chefe da TV Templo, o Morning Show vai ao ar de segunda a sábado, das 7h às 10h. O programa é descrito assim no site da igreja: “Aborda diferentes assuntos relacionados à temática dos encontros de fé no Templo e as notícias do dia. E ainda conta com a presença de convidados, entre eles especialistas, testemunhos de fé, milagre e histórias de superação”.

A apresentação é do pastor Walber Barboza, que conta com Fabíola Bianco e Desiane Lima para dar mais “dinamismo e claridade naquilo que se propõe” —ser uma atração diária desenvolvida no próprio Templo de Salomão.

O Morning Show tem vinheta e sofá típicos de matinais como o “Hoje em Dia”, da Record, mas com invólucro religioso. No dia 18 de março, por exemplo, uma tarja avisava que “o altar não está de quarentena”, enquanto o pastor Walber lembrava que naquele dia o Templo de Salomão hospedaria a Terapia do Amor, culto semanal liderado por Cristiane e Renato Cardoso, filha e genro de Edir Macedo.

Outro exemplo na grade da TV Templo: #NãoÉFofocaÉAprendizado, com uma bancada feminina em que "convidadas comentam notícias do momento e compartilham ensinamentos", do divórcio de Bill e Melinda Gates ao casamento de Sasha Meneghel com o cantor gospel João Figueiredo. Tudo sob a ótica cristã.

Em outros momentos, o espaço é tomado por conteúdo abertamente proselitista. Caso do pastor que, por volta das 14h45 do dia 4 de maio, prometia a fiéis a "mesma proteção" que Jacó, patriarca citado na Bíblia, recebeu, um óleo que outro pastor da Universal teria trazido diretamente de Betel, cidade bíblica ao norte de Jerusalém.

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Há também curiosidades sobre o líder Edir Macedo, como um programa com "10 coisas que você não sabia sobre o bispo Macedo". Spoiler: ele "se emociona quando uma alma é ganha", "é o inocente mais acusado do Brasil" e tem como prato favorito "arroz, feijão e carne seca com abóbora".

A TV Templo também está disponível em streaming, e boa parte de seu conteúdo abastece o UniverVideo, espécie de Netflix da igreja.

A iniciativa da Universal causou estranhamento entre os radiodifusores consultados pela Folha. Todos foram unânimes em afirmar que o canal não se enquadra no decreto da multiprogramação porque não difunde conteúdo educativo voltado à pandemia.

A multiprogramação foi feita para informar as pessoas durante o revés sanitário. A ideia era permitir o maior número possível de programas que informassem a população, segundo os radiodifusores.

O Ministério das Comunicações disse que não cabe a ele analisar o conteúdo da programação na hora do aval ao convênio.

Gilberto Nascimento, autor de "O Reino - A História de Edir Macedo e uma Radiografia da Igreja Universal", diz que o arrendamento da Rede Brasil para a Universal não o espanta.

"É um procedimento já meio normal deles, os caras ganham a concessão e depois vão procurar ganhar dinheiro, e uma das formas de ganhar dinheiro hoje é alugar a emissora para igrejas evangélicas. Isso é um grande negócio. A Universal já fazia isso, com o canal 21, da Band. E a lei dá brecha, permite."

A iniciativa da Universal é parte de um plano maior das igrejas de obter maior difusão pelas plataformas audiovisuais (rádio, TV e internet) no contexto pandêmico, em que cultos funcionam com restrições ou são até mesmo paralisados em períodos mais graves da crise sanitária.

No começo da pandemia, março de 2020, o bispo Macedo chegou a recomendar aos fiéis de sua congregação que não superestimassem a Covid-19, já que "Satanás trabalha com o medo, o pavor", e quando as pessoas "ficam apavoradas, com medo, em dúvida, as pessoas ficam fracas, débeis e suscetíveis, qualquer ventinho que tiver é uma pneumonia para elas".

Três meses depois, foi Macedo quem adoeceu. “Tomei todos os medicamentos indicados pelos médicos, entre eles a hidroxicloroquina, e estou bem”, afirmou o bispo, citando o remédio favorito de Jair Bolsonaro, com eficácia já descartada pela ampla maioria dos cientistas.

Passado um ano da pandemia, o bispo se vacinou em Miami. No mês seguinte, em abril, o Supremo Tribunal Federal permitiu que estados e municípios vetem cultos e missas na pandemia, decisão criticada por pastores.

A Folha enviou seis perguntas ao departamento de comunicação da Universal e entrou em contato com ele durante três semanas, sem qualquer tipo de resposta. Também tentou contato diretamente com o diretor de comunicação. Não obteve retorno.

Entre as questões que ficaram sem resposta: se o conteúdo se enquadra na portaria de multiprogramação do Ministério das Comunicações e se a TV Templo tem publicidade.


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