quarta-feira, 9 de junho de 2021

Morta aos 24 anos e grávida, Kathlen Romeu sonhava em construir família e saiu da favela por medo da violência, FSP

 

RIO DE JANEIRO

A primeira coisa que Kathlen fazia ao chegar todos os dias às 9h na loja da Farm, em Ipanema, era abraçar um por um. Muitas vezes gritando, sempre animada, recebia pelo nome as clientes que já a chamavam de "amiga".

Fazer vínculos era coisa fácil para a mulher de 24 anos que trabalhava na marca de alto padrão da zona sul carioca desde os 18. Negra e grávida de quatro meses, teve esses vínculos quebrados à força na tarde desta terça (8), baleada no chão da favela.

Kathlen de Oliveira Romeu foi atingida enquanto ia visitar a família no Complexo do Lins, na zona norte do Rio, onde nasceu e cresceu e que deixou há apenas um mês justamente pelo medo da violência, após a descoberta da gestação. Um ato em sua homenagem será celebrado na comunidade às 16h desta quarta (9), mesmo horário do enterro.

Ela viveu ali com a mãe, a avó e um tio, mas decidiu se mudar recentemente com a mãe e o companheiro da mãe. Aguardava ainda um apartamento que comprara para construir a própria família com o namorado, Marcelo Ramos, segundo a amiga inseparável e também vendedora Carolinne Carneiro, 28.

Casar-se era um sonho antigo, assim como trabalhar na área em que acabara de se formar. Recentemente usava o conhecimento como designer de interiores para planejar o quarto do bebê, que se chamaria Zayo, a terra prometida na simbologia hebraica, ou Maya, nome que sugere a pureza da água ou o amor materno.

Estava ainda se descobrindo como mãe, assustada com o futuro. Ria, chorava e tinha medo, um misto de sentimentos, como descreveu em uma das últimas publicações no Instagram, onde também divulgava as fotos como modelo. "Talvez [esteja tendo] os [sentimentos] mais doidos do mundo, mas vou dar risada lá na frente disso tudo", sonhou.

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O riso era descomplicado, raramente tinha tempo ruim, mas quando tinha não sabia disfarçar. Era chorona e gostava de colo, recorda Carolinne. Um desses momentos foi quando percebeu que teria que parar de trabalhar por causa da gravidez.

"Ela ficou arrasada, sempre ficava até muito mais tarde na loja", diz a amiga. "Fazíamos tudo juntas, onde uma ia a outra ia. Sou ciumenta, então quando ela não me chamava eu ficava chateada. Ela sempre foi muito carinhosa e eu era fria, aprendi muito com ela."

Não resistia a uma dança, festa ou barzinho, e já estava "doida querendo sair" depois da pandemia. Às vezes elas se reuniam na casa de alguém ou iam à praia de Ipanema depois do expediente. Um dos últimos encontros lembrados por Gisele Fernandes, 33, também vendedora, foi o aniversário de Kathlen em outubro.

"Ela estava radiante, com um brilho, parecia que estava sentindo que ia ser o último. Estava toda a galera preta que a gente conhece, ela agradecia muito e sorria", conta ela, que faz parte de um comitê racial dentro da Farm. "Estávamos felizes porque estávamos tendo muita oportunidade dentro da empresa", diz.

A marca divulgou internamente que colegas organizaram uma homenagem na fachada da loja onde ela trabalhava, que disponibilizou suporte psicológico aos funcionários que precisem e que está ajudando a família. As vendas feitas com o código de Kathlen terão sua comissão revertida aos parentes.

"Sabemos que nada que fizermos poderá trazer Kath de volta, mas nos comprometemos a acelerar ainda mais nossos processos de inclusão e equidade racial para transformar as cruéis estatísticas que levam vidas jovens negras como a de Kath a cada 23 minutos no nosso país", afirma o comunicado.

Na região metropolitana do Rio, ela foi a 15ª grávida baleada desde 2017, segundo a plataforma colaborativa Fogo Cruzado. Oito delas morreram e quatro foram atingidas quando ocorriam ações policiais. Foi o caso de Kathlen.

Segundo a versão da Polícia Militar, agentes da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da região foram atacados a tiros num local conhecido como Beco da 14. Houve confronto e, "após cessarem os disparos, os militares encontraram uma mulher ferida" e a levaram ao hospital, onde morreu em seguida, de acordo com a unidade.

A Delegacia de Homicídios da Capital abriu uma investigação e disse que "testemunhas serão ouvidas e diligências serão realizadas para esclarecer todos os fatos e identificar de onde partiu o tiro que a atingiu". A Coordenadoria de Polícia Pacificadora (CPP) também instaurou apuração paralela.

Horas antes do tiroteio, uma amiga havia convidado Kathlen para almoçar, mas ela disse que estava com muita saudade da avó, Sayonara de Oliveira, com quem viveu a vida inteira e que estava triste pela neta ter saído de casa. Era ao lado dela que a jovem andava quando foi baleada.

"A gente estava indo na firma da minha filha, quando nós passamos a rua estava tranquila. Foi tudo muito de repente. A minha neta caiu, começou muito tiro. Quando eu puxei ela, ela caiu, quando olhei era polícia para tudo que era lado. Eu me machuquei ainda, me joguei para proteger ela, que está gravida. Eu só vi um furo no braço dela e gritei para eles me ajudarem a trazer ela. Perdi minha neta e meu bisneto", disse em desespero, chorando, à TV Globo.

Naquela noite o Hospital Municipal Salgado Filho, no Méier, ficou lotado de familiares e amigos. Ali, a avó contou a Carolinne que achou que sua neta estava deitada para se proteger dos disparos, mas depois percebeu que ela não se mexia. Afirmou ter visto um tiro no braço e outro na barriga.


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