“Os recipientes para leite são sempre caixas quadradas; os recipientes para água mineral são sempre garrafas redondas; garrafas redondas para vinho são normalmente acondicionadas em caixas quadradas. Escreva uma redação sobre a filosofia sutil do redondo e do quadrado.” Eis um exemplo de questão do exame de ingresso no ensino superior chinês, o gaokao.
Nesta semana, 10,78 milhões de chineses fizeram as provas do gaokao em todo o país. O maior exame do mundo consiste basicamente na única porta de entrada para a universidade na China.
Aqui, os candidatos listam suas universidades de preferência, e a nota nesse exame nacional define se o aluno tem acesso a alguma delas. O gaokao é parte do sonho chinês, é caminho para ascensão social, para empregos melhores, para uma vida longe das fábricas e do campo. Em vários aspectos, o gaokao se aproxima do Enem ou do vestibular no Brasil. Mas o valor da educação na sociedade chinesa é muito diferente. A importância do gaokao no imaginário coletivo é outra.
Durante os dias do exame, motoristas são proibidos de buzinar perto dos locais de teste. Alunos podem ter prioridade no transporte público. Templos recebem oferendas de familiares ansiosos. Pais já bloquearam ruas para que o barulho dos carros não atrapalhasse a compreensão oral do exame de inglês dos seus filhos, como me conta o podcast Pagode Chinês, num ótimo episódio sobre o gaokao.
Praticamente toda a vida escolar dos chineses é orientada para o teste. São 12 anos que culminam no momento do vai ou racha. Pais se sacrificam pelo sucesso dos filhos no gaokao, o que se traduz em pressão sobre as crianças desde cedo.
Algumas universidades estrangeiras, incluindo Cambridge, reconhecem o resultado do gaokao nos seus processos de admissão. O mais interessante, no entanto, é que muitas famílias chinesas com condições financeiras mandam os filhos estudar no exterior quando suas notas no gaokao não lhes asseguram acesso a uma boa universidade na China. Nesses casos, estudar fora pode vir a ser o remédio para um desempenho ruim no gaokao.
As críticas ao modelo não surpreendem. O gaokao acaba enviesando todo o sistema educacional, valorizando a cultura do teste em prejuízo de uma formação mais completa. Escolas teriam virado fábricas preparatórias para o gaokao. Além disso, a pressão excessiva tem repercussões na saúde mental, autoestima e sociabilidade dos adolescentes.
A realidade é que, apesar disso, o gaokao reflete valores importantes da sociedade chinesa. O país tem história milenar de exames para o ingresso no serviço público. Para se tornar um “mandarim”, um burocrata na China imperial, havia uma prova. A educação e a meritocracia têm raízes culturais profundas.
Além disso, o esforço, a disciplina e o trabalho duro são valores confucionistas —e endossados com gosto pelo discurso oficial de hoje. E mais: na China contemporânea, é grande a pressão para ser bem-sucedido e ter boas condições de vida. O gaokao se encaixa perfeitamente bem nesse caldo cultural.
Há vozes que propõem reformas no sistema, mas a tarefa não é fácil. Em 2016, uma das melhores escolas de Nanjing ajustou seu currículo para valorizar a criatividade, estimular atividades em grupo etc. O desempenho dos alunos no gaokao caiu. Revoltados, os pais fizeram manifestações em frente à escola. O diretor liberal deu meia-volta, as mudanças foram revertidas e tudo voltou ao que era antes.
Possivelmente os alunos da escola de Nanjing hoje conseguem discorrer sobre a filosofia sutil do quadrado e do redondo. Para alívio dos pais —e para o meu espanto.
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