sexta-feira, 18 de junho de 2021

Angela Alonso - Burros de crônica de Machado de Assis notariam o contrassenso de Bolsonaro, FSP

 Bem antes da pandemia, já era prudente evitar perdigotos. Machado de Assis (“Como comportar-se no bonde”) criou até regra de emissão para passageiros de bonde. Era o tempo em que os animais puxavam o carro e falavam mal dos humanos.

Capaz que o presidente, notório letrado, tivesse a cabeça cheia de machadices, ao embarcar num avião da Azul, para tirar foto com o comandante desmascarado e criar seu factoide diário.

Ante regozijo de uns e escárnio de outros, recomendou aos inimigos a locomoção a jegue. Muitos imaginaram que o presidente visava ofender nordestinos, mas é provável que pensasse na “Crônica dos burros”, de Machado.

Nele, mesmo vítimas do desemprego tecnológico, com a invenção do bonde elétrico, os burros sintonizaram com Paulo Guedes na defesa do direito individual de morrer sem esmola estatal: “Enfraqueceremos; a idade ou a lazeira ir-nos-á matando, até que, para usar esta metáfora humana, —esticaremos a canela. Então teremos a liberdade de apodrecer”.

Cerca de meio milhão de brasileiros exerce a liberdade de apodrecer, graças à doença que podia ter sido, no mínimo, controlada, se houvesse governo. Enquanto isso, o governante protesta. Bolsonaro desmente quilos de pesquisa sobre o assunto. Em geral, quem está fora do poder se manifesta contra quem o detém, mas o cérebro deste governo protesta contra quem está fora. Os burros de Machado notariam o contrassenso.

Se o capacete não exibisse “Presidente”, nem esses burros acreditariam que o mandatário da República motocava em plena pandemia. Mas lá estava ele, com outros selvagens de motocicleta, inclusive o ministro-astronauta, que prometeu, nos primórdios pandêmicos, um emplasto Brás Cubas anticoronavírus —e nem era a cloroquina.

A motociata atraiu menos que o protesto rival. Segundo os organizadores, 1.324.523 motos. Na aferição do Análise de Vídeos, 6.253 e, no pedágio, 6.661, quase o número da besta. Para um chamado presidencial, fiasco equivalente só o de Collor, quando pediu que apoiadores usassem verde e amarelo e a multidão marchou de preto. Cor, aliás, apropriada para expressar o luto coletivo no protesto deste sábado (19).

Na cor da pele os manifestantes do “Fora, Bolsonaro” passado e os da motociata se parecem: quase todos brancos. Diferem é em estilo de vida. Oposicionistas usaram máscara, muitos motociclistas nem capacete tinham. São caubóis do asfalto, mais aficionados por veículos e mitos que pela vida, própria ou alheia. Sua aglomeração no Monumento às Bandeiras, vista do alto (pela lente de Gabriel Cabral), lembrou um enorme caixão.

Nem todo motoqueiro grita “Mito”. A maioria leva a vida dos empregados do Jóquei Clube, que puxavam cavalos de raça de um lado do muro da marginal, enquanto a turma de motoclube corria do outro.

Já motoboys, seu sindicato esclareceu, não foram à louvação do presidente. Seus membros, em maioria, têm a cor de Matheus Ribeiro, que, acusado de roubo, desabafou no Instagram: “Um preto numa bike elétrica?! No Leblon???! (....) São coisas que encabulam o racista. Eles não conseguem entender como você está ali sem ter roubado”.

A revelação do equívoco desorientou o casal branco, antes convicto de seu direito de pegar ladrão de bicicleta. Decerto não estarão entre os ciclistas do protesto deste sábado.

Bandido profissional prefere jatinho e jet ski. E se cerca desses velozes e furiosos, como o que matou Marielle. O carro do atirador não trazia o nome do mandante. Os burros de Machado ruminariam: nem precisava.


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