Italo Cosme, especial para o Estado de S.Paulo
04 de junho de 2021 | 14h00
Atualizado 04 de junho de 2021 | 17h16
Em uma mudança histórica, a maioria dos novos alunos matriculados na Universidade de São Paulo (USP) vem de escolas públicas. Depois de anos de discussões e polêmicas sobre reserva de vagas na instituição de ensino mais conceituada do País, foi cumprida este ano a meta ambiciosa estabelecida em 2017 de ter metade de seus novos alunos com esse perfil. É a primeira vez que isso ocorre desde que a instituição passou a registrar o perfil dos ingressantes, em 1995.
Das 10.992 vagas preenchidas, 51,7% foram ocupadas pelos alunos que estudaram na rede pública. Há mais de dez anos, o índice geral ficava em cerca de 25%, sendo bem menor nos cursos mais concorridos.
Apesar disso, chegar aos mais pobres ainda é um desafio: a renda média da maioria dos ingressantes continua acima de cinco salários mínimos e menos de um terço do total dos estudantes é preto, pardo e indígena.
O especialista em políticas de acesso e permanência da Universidade Federal do ABC (UFABC), Wilson Mesquita de Almeida, avalia positivamente o avanço dos últimos 15 anos para a inclusão de pessoas de baixa renda no ensino superior, mas aponta a necessidade de maior atenção com o corte de renda familiar. Para ele, há um reforço do perfil classe média, que historicamente entra na universidade pública.
Para ampliar o alcance, segundo ele, ainda é necessário combinar políticas estruturais, como maior investimento na escola pública, no professor e democratizar o acesso à informação aos estudantes. “Além disso, é preciso mudar o vestibular: se eu não vi o conteúdo na escola pública, quando for fazer o vestibular fico com desvantagem em relação ao da escola particular”, afirma. Na pandemia, lembra, a desigualdade de aprendizado deve ser ainda maior.
Entre todos os ingressantes, 25% têm renda familiar acima de 10 salários. Na outra ponta, quase um terço (29,7%) dos discentes dispõe de até três.
Mesmo assim, o pró-reitor de Graduação da USP, Edmund Chada Baracat, diz que a implantação da reserva de vagas na USP tem mudado o perfil dos estudantes na instituição, tornando-a mais diversa social, cultural e economicamente. “Esse processo, no entanto, deve ser contínuo e constantemente avaliado. Nas universidades federais, pelo fato de a reserva já ter sido implementada há quase dez anos, o processo está mais adiantado.”
Estudo da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) mostra que 70,2% dos alunos de universidades federais são de famílias de baixa renda. Pouco mais de 26% têm renda de até meio salário mínimo e 26,9%, até um salário mínimo. Outros 16,61% vivem com um salário e meio.
Em 2019, quando foi feita a pesquisa, a fatia de novos alunos oriundos da rede pública era de 64,7%. A política de cotas oficialmente começou em 2012, mas muitas universidades a adotam desde os anos 2000.
“É muito louvável que a USP tenha chegado a mais de 50% de alunos aprovados serem oriundos da rede pública do Brasil. No entanto, nossa comunidade ficará mais feliz quando esses 50% tiverem dentro da renda de no máximo um e meio salário mínimo”, diz Frei David Santos, diretor executivo da Educafro Brasil, que luta há décadas por mais inclusão na USP.
Sonho
Aos 18 anos e ex-estudante de escola pública, Natália Malerba chega à USP para cursar Engenharia Química. A felicidade da jovem é ainda maior porque deve permanecer em Lorena, onde mora e há um campus da instituição. Ao contrário dos colegas da turma que vêm em grande quantidade de outras partes do País, não precisará de ajuda para moradia. Segundo a USP, em 2021, foram destinados R$ 250 milhões, 6,7% a mais do que no ano passado, para auxílio estudantil.
A renda familiar de Natália, como a de 13% dos novos estudantes, está entre dois e três salários mínimos. “Durante todo o ensino médio, a maioria dos alunos sonha com a universidade pública. Porém sabemos o quanto é difícil passar porque são poucas vagas. Especialmente em tempos de pandemia, parece que a gente não vai ter futuro e que está muito longe de conseguir”, diz a jovem. “Infelizmente, muita gente abre mão de fazer uma faculdade porque não consegue conciliar faculdade e a necessidade de trabalhar.”
A proporção de novos estudantes pretos, pardos e indígenas (PPI) oriundos da rede pública, porém, permanece a mesma desde o ano passado, com 44,1%. Isso significa que, em 2021, dos 5.678 alunos de escolas públicas, 2.504 se encaixavam no PPI. Em 2019, o porcentual foi o maior até agora: 45,88%. No ano anterior 39% dos que entraram se encaixavam no grupo.
Em relação ao total de vagas, o número de candidatos desse grupo representa 27,4%, independente da modalidade de entrada. Os vestibulandos podem entrar na maior universidade do País de duas formas: pela Fuvest e pelo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) por meio do Sistema de Seleção Unificada (Sisu).
“É triste pensar que muitas pessoas nem vislumbram essa possibilidade (de entrar na USP). Nossa realidade não favorece o cultivo de sonhos. A gente não pode esperar que uma pessoa demore a entender que pode entrar no curso de medicina”, diz Adriana dos Santos, aprovada no curso de Medicina no campus de Bauru.
Ela tem 37 anos, mora em São Paulo e não pode receber auxílio estudantil por já ter graduação em Psicologia. A universitária vive com a mãe aposentada. A renda da família é de um salário mínimo. Por isso, há indefinição sobre como se manterá em outra cidade quando as aulas presenciais retomarem.
“O fato de eu ter uma graduação não garante que eu tenha condições. É necessário maior flexibilidade ou ampliação do programa.” A caloura pediu demissão para se dedicar ao pré-vestibular. Agora, pensa em bolsas de iniciação científica, estágios para tentar se manter na faculdade.
Casado e pai de três filhos, Cassius Jansen, de 43 anos, é calouro no curso de Direito na USP. A única renda da família vem do salário de R$ 1,2 mil da esposa. Há dois anos, o universitário saiu do emprego, decidiu dedicar-se exclusivamente aos estudos para alcançar a vaga e conseguiu bolsa de estudos no curso pré-vestibular. Desde então, sobrevive de bicos e da ajuda da mãe para ajudar em casa.
Para se manter na universidade, Cassius buscou auxílio nos programas de permanência para moradia, transporte e livros. “Às vezes, muita gente não entende o que é estudar no Brasil. Uma pessoa que estuda precisa de tempo. Isso não é possível se você não tiver algum apoio.”
Frei David teme ainda que daqui pra frente possa haver fraudes para conseguir uma vaga de cotas na instituição. "Sabemos que nas centenas de municípios pequenos, que não possuem demandas comerciais para ter uma escola particular, o prefeito aparelha uma escola pública e nela coloca seus filhos, os filhos dos vereadores, os filhos dos juízes", diz.
Para entender
Há quatro anos, a Universidade de São Paulo (USP) reserva vagas a estudantes de escolas públicas e pessoas autodeclaradas pretas, pardas e indígenas (PPI). A política foi aprovada em 2017. No ano seguinte, as unidades de ensino e pesquisa tinham a meta de preencher 37% das vagas com o público.
Desde então, a meta sobe de forma escalonada. Em 2019, foi de 40%. Ano passado, 45%. A partir deste ano e nos subsequentes, a instituição deve chegar a 50% das vagas em cada curso e turno.
Das 42 unidades de ensino e pesquisa da Universidade, 12 não alcançaram o índice de 50% de alunos ingressantes de escolas públicas, embora a média entre elas tenha ficado na marca dos 49%.
A USP indica que na reserva de 50% também incide o porcentual de 37,5% de cotas para estudantes autodeclarados PPI, índice equivalente à proporção desses grupos no Estado de São Paulo verificada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
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