sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Morremos todos um pouco com o fim do Twitter, Gustavo Alonso. FSP

 Passadas duas semanas da suspensão do "X", antigo Twitter, já é possível ponderar sobre seus efeitos. Era na rede social de propriedade do megalomaníaco empresário Elon Musk que nossa agressividade era cultivada à flor da pele. Nesse sentido o Twitter não deixou saudades. Mas, como historiador, lamento o fim do acesso de seu arquivo. Jogamos para debaixo do tapete uma parte do que fomos no século 21.

Tela de um celular mostra a mensagem de "tentar novamente" depois que o X, ex-Twitter, foi suspenso no país. - MAURO PIMENTEL/AFP

Já me disseram que o Bluesky vem aí substituir o Twitter. Que bom! Continuaremos a ter um canal para nos odiar. Todos parecem muito preocupados em continuar se odiando no presente. Eu me preocupo em como vamos lidar com nosso passado odiento.

O formato e o algoritmo do Twitter estimulavam nossa tensão constante. Lá amávamos odiar tudo, éramos soberbos, nos colocávamos como especialistas de todas as áreas da vida, gozávamos com a cara dos ignorantes de todas as matérias, nos comprazíamos em atacar uns aos outros e, sobretudo, cancelávamos quem pensava diferente.

Mais grave do que não ter um lugar para projetarmos nossa raiva, o cancelamento do Twitter tornou inacessíveis os arquivos históricos de nossa agressividade. Na volatilidade do mundo digital, as memórias se perdem com um clique.

Nesse sentido é interessante relacionar a suspensão do Twitter ao término de outra plataforma digital, a do finado Orkut, que se foi em 2014. Durante mais de dez anos compartilhamos no Orkut nossos afetos, expusemos parte de nossos desejos e construímos pontes identitárias nas comunidades virtuais. O Orkut era tão importante na primeira década do milênio quanto o são hoje InstagramTikTok e Tinder.

Quando o Orkut foi desativado, houve a possibilidade de os assinantes baixarem seus arquivos pessoais. Mesmo para aqueles que o fizeram, o que restou foi um arquivo morto, ilhado, sem a interação que a rede tinha. O arquivo do Twitter não foi incinerado, e nossa memória digital deve estar em algum lugar na nuvem de Elon Musk, mas sua inacessibilidade nos priva de parte do que fomos desde 2006, quando a plataforma foi criada.

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Lembro-me que quando o Orkut foi desativado, propus a amigos de bar que o Ministério da Cultura comprasse o arquivo da plataforma. Fui solenemente ignorado. No entanto, sou teimoso e sustento a tese.

É fundamental que a noção de cultura seja ampliada em direção ao que produzimos na esfera digital. Cultura não é só o artefato popular, o folclore que resiste ao tempo, o manto indígena histórico, a música inesquecível, a arquitetura original, a literatura relevante ou o quadro refinado. Hoje somos seres digitais. Nossas obras e afetos, bons ou ruins, estão em grande parte localizados na internet. A rede mundial de computadores é nossa praça, nosso mercado e deve ser também nosso museu.

Hoje em dia, nossas memórias coletivas são construídas nas redes sociais. Por redes sociais entenda-se empresas privadas virtuais de comunicação que não têm nenhuma responsabilidade com a preservação da memória. É nessas horas que a sociedade precisa de um Estado que preserve o legado. Hoje as novas gerações não têm como saber como fomos através do Orkut. Tudo se apagou. E se o doido Elon Musk resolver apertar o delete de sua nuvem, quem irá defender nossa memória?

O bilionário Musk se recusou a pagar a multa determinada pela justiça pelo não cumprimento das ordens do STF e não apresentou representante legal no país. Não deixou outra saída aos ministros da Suprema Corte que não o fechamento da plataforma no Brasil. Mas, num ato jurídico altamente questionávelAlexandre de Moraes foi além e cobrou a dívida de outra empresa de Musk, a Starlink, abrindo precedente perigoso.

Em minha utopia arquivista, eu proporia ao bilionário que, pelo perdão da dívida do Twitter, transformássemos sua plataforma no sonhado museu digital. Musk insiste em dizer que o Twitter é um bastião da liberdade de expressão. Se pensa de fato assim, ele não deveria se opor a que preservássemos nossa memória lá depositada. Talvez houvesse aí uma brecha para cessarmos a atividade no Twitter e ainda sim manter intacta nossa memória coletiva digital.

Tem sido comum se perguntar como contaremos a história do Brasil das últimas décadas. Sem o arquivo do Twitter será ainda mais difícil. Não devemos esquecer o que fomos. Até porque ainda somos o que fomos.

3 paradoxos curiosos que mostram engenhosidade dos antigos filósofos gregos, Fsp

 

Matthew Duncombe

Professor de Filosofia na Universidade de Nottingham, no Reino Unido

The Conversation

Os filósofos da Grécia antiga usavam paradoxos por várias razões —desde aprimorar suas habilidades dialéticas e mostrar que oponentes estavam falando bobagem, até investigar questões filosóficas sérias— mas também por diversão.

Alguns paradoxos eram letais. O epitáfio de Filetas de Cos nos diz que ele morreu atormentado pelo "paradoxo do mentiroso".

E, de acordo com um biógrafo, Diodoro Cronos se matou em 284 a.C. após não conseguir resolver um paradoxo proposto pelo colega, também filósofo, Estilpo de Megara.

A imagem retrata a famosa pintura 'A Escola de Atenas', de Rafael, que mostra filósofos da Grécia Antiga em um ambiente arquitetônico grandioso. No centro, Platão e Aristóteles estão em destaque, com Platão apontando para cima e Aristóteles segurando um livro. Ao redor deles, outros filósofos e figuras históricas estão dispostos em várias poses, discutindo e interagindo. O fundo apresenta arcos e um céu claro.
'A Escola de Atenas', pintura de Rafael; alguns paradoxos datam do século 4 a.C. - Getty Images

Essas histórias são fantasiosas, mas indicam algo irritantemente verdadeiro sobre paradoxos: não pode haver uma solução única e óbvia. Às vezes, não há uma boa solução. Às vezes, há muitas soluções boas.

Os paradoxos apontam para falhas ou erros conceituais. Como corrigir esses erros, ou se eles podem ser corrigidos, raramente é óbvio.

Os três paradoxos a seguir são alguns dos exemplos mais conhecidos da Grécia Antiga.

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1. O paradoxo do mentiroso

"Esta frase é falsa."

Os filósofos chamam isso de "frase mentirosa". Ela é verdadeira? Se você disser "sim, a frase mentirosa é verdadeira", então as coisas são como está dito —mas a frase mentirosa diz que é falsa.

Por outro lado, suponha que você diga "não, a frase mentirosa é falsa". Isso significa que as coisas não são como a frase mentirosa diz. Mas é exatamente isso que ela diz, então, nesse sentido, a frase mentirosa é verdadeira.

Resumindo, há boas razões para dizer tanto que a frase é verdadeira, quanto que é falsa. No entanto, nenhuma frase pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo.

Esse paradoxo foi criado pelo filósofo Eubulides de Mileto, que era famoso por seus paradoxos, no século 4 a.C. Sua formulação original se perdeu, e o que apresento aqui é minha reconstrução dela.

O paradoxo do mentiroso nos aliena de noções cotidianas como verdade, falsidade e linguagem autorreferencial.

Mas também nos leva a questionar a ideia, pressuposta pela dialética de perguntas e respostas (um diálogo entre pessoas que defendem pontos de vista diferentes sobre um assunto), de que toda pergunta pode ser respondida com "sim" ou "não".

Parece que há boas razões para responder tanto "sim", quanto "não" a algumas perguntas.

Alguns filósofos concluíram que isso significa que tanto "sim" quanto "não" são boas respostas para a pergunta: "a frase mentirosa é verdadeira?".

Eles chamam isso de "excesso" de boas respostas. Para aplicar o paradoxo do mentiroso na sua vida, quando você fizer uma pergunta ou te perguntarem algo, pergunte a si mesmo: há mais de uma resposta certa?

2. O paradoxo dos chifres

Você perdeu seus chifres? Se você responder "sim", você deve ter tido chifres que agora perdeu. Se você responder "não", então você tem chifres que não perdeu. Seja qual for a sua resposta, você sugere que tinha chifres —mas isso é claramente falso.

As perguntas são uma parte fundamental da filosofia. Mas elas também são fundamentais para a forma como obtemos informações de outras pessoas.

O paradoxo do mentiroso destaca que algumas perguntas têm mais de uma boa resposta. O paradoxo dos chifres, por sua vez, destaca outro problema —as perguntas têm pressupostos.

Se eu perguntar: "você parou de comer carne?", então eu suponho que você não come mais carne, mas que costumava comer.

Essas perguntas parecem ter uma resposta do tipo "sim" ou "não", mas, na verdade, existe uma lacuna, pois poderíamos negar o pressuposto.

Quando você fizer perguntas, ou quando te fizerem perguntas, primeiro pergunte a si mesmo: o que está sendo pressuposto?

3. O paradoxo de sorites

Aqui estão 10 mil grãos de areia. Eu tenho um monte? Sim, claro. Eu removo um grão, então agora tenho 9.999 grãos. Tenho um monte? Sim. Eu removo outro grão, então fico com 9.998. Tenho um monte? Sim.

Perder um único grão não afeta se eu tenho um monte. Mas se repetir essa ação mais 9.997 vezes, eu tenho um grão. Isso deve ser um monte, mas é claro que não é.

Você pode argumentar tanto que um grão é um monte quanto que não é. Mas nada pode ser um monte e não ser um monte ao mesmo tempo.

Outro grande sucesso de Eubulides, o paradoxo de sorites (que deriva da palavra grega "soros", que significa monte), usa um monte como exemplo. Mas também amontoa pergunta após pergunta.

Esse paradoxo nos desafia porque alguns conceitos possuem limites difusos. Quando introduzimos esses conceitos difusos em uma dialética de perguntas e respostas, há respostas claras de "sim" ou "não" no início e no fim da sequência.

Dez mil grãos são claramente um monte, e um grão claramente não é. Mas não há respostas claras de "sim" ou "não" para uma região intermediária.

O paradoxo do mentiroso sugere que pode haver um excesso de boas respostas para perguntas de "sim" ou "não"; os chifres mostram que pode haver lacunas, onde nem "sim" nem "não" é a resposta certa.

Mas o paradoxo de sorites revela que pode haver lacunas que vêm e vão, com conceitos cujos limites são difusos. Mas quantos dos nossos conceitos possuem limites difusos? E será que os conceitos difusos acompanham um mundo difuso?

Os paradoxos destacam falhas em atividades comuns do dia a dia: afirmar verdades, fazer perguntas e descrever objetos.

Pensar cuidadosamente sobre isso é divertido, sem dúvida. Mas os paradoxos também devem nos conscientizar sobre se toda pergunta aparentemente boa tem exatamente uma boa resposta: algumas perguntas têm mais, outras não têm nenhuma.

Este artigo foi publicado originalmente no site de notícias acadêmicas The Conversation e republicado aqui sob uma licença Creative Commons. Leia aqui a versão original (em inglês).

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