Enquanto se apresenta como o paladino da liberdade de expressão no mundo, o bilionário Elon Musk protege seus interesses comerciais e promove seus aliados políticos no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa.
Homem mais rico do mundo e pioneiro nos campos de viagens espaciais (SpaceX), satélites de baixa altitude (Starlink), carros elétricos (Tesla) e implantação de chips no cérebro (Neuralink), o sul-africano de 53 anos mantinha posições políticas discretas e tendia para a centro esquerda. Cidadão americano desde 2002, declarava voto no Partido Democrata.
A conversão de Musk de gênio excêntrico em megafone da extrema direita global se deu a partir da pandemia de Covid-19, em 2020. "O pânico com o coronavírus é idiota", disse Musk em um tuíte. Naquela época, como conta seu biógrafo Walter Isaacson em "Musk", o bilionário se insurgiu contra as ordens de fechar sua fábrica da Tesla na Califórnia e desafiou o delegado local a prendê-lo.
Ao longo de 2021, o bilionário fez várias postagens em redes sociais criticando Joe Biden e o governo por supostas injustiças contra suas empresas.
O fato de Biden ter recebido na Casa Branca montadoras de Detroit para celebrar carros elétricos –e ignorar a Tesla, maior fabricante desses veículos no país– acabou de azedar a relação. A Tesla havia instituído várias medidas que desestimulavam os funcionários a se sindicalizarem, e Biden não queria irritar o poderoso sindicato.
Até então, Musk tinha sido um grande apoiador de políticos progressistas. Na eleição de 2020, ainda declarou apoio a Biden.
Mas já estava migrando gradualmente para a direita. Iniciou uma cruzada contra o "woke", expressão usada de forma pejorativa para designar os exageros do politicamente correto.
"A menos que o vírus da mentalidade woke, que é anticiência, antimérito e anti-humano, seja contido, a civilização jamais se tornará multiplanetária", disse a Isaacson.
Um dos motivos para essa guinada foi sua oposição à transição de gênero da filha Vivian Jenna, que rompeu relações com o pai.
Em maio de 2022, abandonou oficialmente os democratas. "No passado, votei nos democratas, porque eram (na maioria) o partido da gentileza", tuitou. "Mas se tornaram o partido da divisão & do ódio, por isso não posso mais apoiá-los e vou votar nos republicanos".
Segundo Isaacson, Musk escreveu isso quando estava a caminho do Brasil para se reunir com o então presidente Jair Bolsonaro (PL).
Pouco depois, o bilionário afirmou que iria votar nos republicanos na eleição legislativa de novembro de 2022 já que "houve ataques gratuitos de líderes democratas contra mim e esnobaram a Tesla e a Space X".
Com a conclusão da compra do Twitter, que ele rebatizou de X, em outubro de 2022, sua transformação em profeta da nova direita se completou. Na época, ele acusou plataforma de ter um "forte viés de esquerda" e disse que iria reduzir a moderação de conteúdo para defender a liberdade de expressão.
Uma das primeiras medidas ao assumir foi restabelecer a conta de Trump. O republicano havia sido suspenso após usar as redes para incitar seus apoiadores a contestar os resultados da eleição presidencial de 2020. O movimento culminou no ataque ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021, que deixou 5 mortos.
Também começou a se pronunciar sobre questões internacionais e interagir com o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orban. Abraçou vários temas caros à extrema direita –críticas a um suposto racismo contra brancos, à "ideologia de gênero" e a imigrantes.
Disseminou a teoria conspiratória de que Biden estimula a imigração indocumentada para "criar eleitores de esquerda". Outra obsessão é a queda da taxa de natalidade da população branca. Ele tem 12 filhos. "Estou fazendo o melhor que posso para combater a crise de subpopulação", disse.
No Reino Unido, amplificou postagens de extremistas anti-imigração após um ataque contra meninas em uma escola de dança que levou a protestos violentos. Advertido pelo comissário europeu Thierry Breton, respondeu com um meme e um xingamento.
De acordo com um levantamento do jornal Wall Street Journal, as postagens de Musk sobre política aumentaram 230 vezes em 2024 na comparação com 2019. Antes, ele publicava principalmente informações sobre suas empresas, piadas e memes.
Musk tem 196,5 milhões de seguidores no antigo Twitter. O fato de ele fazer campanha abertamente a favor de Trump e contra Kamala Harris tem gerado discussões sobre o potencial do bilionário influenciar na eleição americana, ao desequilibrar a disputa. Como dono da rede social, ele já determinou a engenheiros que ampliassem alcances de seus posts e os promovessem.
Ele anunciou apoio a Trump em julho, logo após o republicano sofrer uma tentativa de assassinato em comício. Em agosto, bajulou o republicano em uma entrevista de mais de duas horas no Spaces do X. E contratou um estrategista republicano para ajudá-lo a incentivar votos em Trump.
Considerações empresariais explicam parte da conversão de Musk. Como outros bilionários do Vale do Silício, principalmente os amigos que criaram com ele o PayPal, Musk se tornou crítico de Biden pela política mais intervencionista dos democratas na economia, especialmente tentativas de regulação de tecnologia.
No governo Biden, a Tesla foi investigada pelo Departamento de Justiça e a Comissão de Valores Mobiliários. A percepção é que Trump repetiria o ímpeto desregulatório de seu primeiro mandato. Musk até se ofereceu para participar de uma "comissão de eficiência" no governo que Trump promete implementar se for eleito.
Sua defesa da liberdade de expressão é seletiva. Musk não critica a muralha digital que proíbe o acesso ao X e outras plataformas na China —50% dos veículos da Tesla são produzidos na fábrica em Xangai.
Na Índia e na Turquia, onde os líderes são de direita, o bilionário removeu inúmeras contas e postagens a pedido do governo, muitas vezes sem ordem judicial, e não reclamou. "Nós não podemos violar as leis do país", disse Musk sobre a Índia, em abril de 2023.
Nos EUA, segundo o Washington Post, o X está restringindo ou classificando como "spam" contas de apoio a Kamala.
"Musk é um absolutista da liberdade de expressão quando convém", diz Caio Machado, pesquisador das universidades Harvard e Oxford. "E ele se sente autorizado a usar a infraestrutura que detém (satélites, rede social) para coagir países e governos."
Também na América Latina os negócios do bilionário andam de mãos dadas com sua cruzada anti-esquerda. "Vamos dar golpe em quem quisermos. Lide com isso", escreveu Musk em 2020 ao responder a um post acusando Washington de ter deposto o então presidente esquerdista Evo Morales para se apropriar das reservas de lítio.
A Bolívia tem 29% das reservas mundiais do minério, essencial para baterias de carros elétricos. A Tesla tentou entrar no mercado boliviano, onde operam hoje empresas chinesas e russas.
Em abril deste ano, Musk e o presidente argentino Javier Milei se encontraram no Texas e prometeram promover o "livre mercado" e projetos de exploração de lítio –a Argentina é outra com grandes reservas.
Também no Brasil, seus interesses comerciais misturam-se com suas inclinações políticas.
Em novembro de 2021, o então ministro das Comunicações, Fábio Faria, se reuniu com Musk na sede da Tesla nos EUA e anunciou que o governo queria fazer parcerias com a Starlink para uso de satélites no monitoramento da Amazônia e conexão de escolas.
Pouco depois, em janeiro de 2022, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) aprovou o uso de satélites da Starlink.
Dali a quatro meses, Musk veio ao Brasil para se reunir com Bolsonaro e empresários em um hotel de luxo perto de São Paulo. O bilionário foi condecorado com a medalha da Ordem do Mérito da Defesa pelo Ministério da Defesa.
Em julho de 2022, o governo Bolsonaro baixou o decreto 11.120, que facilita a exportação de lítio do país. O Brasil detém a oitava maior reserva de lítio do mundo.
A Tesla expressou interesse em investir na Sigma Lítio, que opera na exploração do minério no vale do Jequitinhonha. A BYD, fabricante chinesa de veículos elétricos, também entrou no páreo. Nenhum acordo foi divulgado até agora.
Em março de 2022, ainda durante o governo Bolsonaro, a Tesla assinou um acordo com a mineradora brasileira Vale para fornecimento preferencial de níquel, outra matéria-prima para baterias de veículos elétricos. O minério é proveniente das operações da brasileira Vale no Canadá.
A Starlink teve crescimento meteórico –passou de 26.694 acessos em abril de 2023 para 224.458 acessos em agosto deste ano (alta de 740%), segundo a Anatel. É a única maneira de acessar a internet em várias localidades da Amazônia e é usada por produtores agrícolas em diversas regiões.
Já no mandato de Lula, Musk apareceu de surpresa em uma reunião por Zoom com integrantes do governo logo após os ataques de 8 de janeiro de 2023. Apesar de pedidos, não retirou postagens incitando à destruição do Congresso e intervenção militar. Durante a conversa, ele teria ressaltado "a importância de defender a liberdade de expressão".
Desde então, os embates do bilionário com o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, e o governo vêm escalando.
Em abril, após Moraes ameaçar tirar o X do ar se Musk não cumprisse ordens de remoção de contas e posts, o bilionário chamou o juiz de "ditador do Brasil" e disse que descumpriria decisões judiciais brasileiras.
Bolsonaro fez uma live afirmando que o bilionário havia encampado a luta pela liberdade no país. "A nossa liberdade, em grande parte, está nas mãos dele", disse.
Em maio, a área técnica da Anatel abriu procedimento para avaliar impactos da possível expansão de serviços de internet via satélite da Starlink no Brasil.
O descumprimento de ordens judiciais pelo X culminou na ordem de Moraes para bloquear o aplicativo no país, no dia 30 de agosto.
Enquanto isso, algumas das promessas de Musk no país empacaram. Após se reunir com Bolsonaro em maio de 2022, Musk anunciou pelo X "o lançamento da Starlink para 19 mil escolas desconectadas" na Amazônia.
Procurado, o Ministério da Educação afirmou que o projeto não saiu do papel. O Ministério das Comunicações informou que não tem contrato com a Starlink e nenhum dos seus programas utiliza atualmente o serviço.