segunda-feira, 22 de abril de 2024

Esposas tradicionais e os feminismos, Vera Iaconelli, FSP

 Entendo o feminismo como um movimento pacífico da sociedade em busca da igualdade de direitos entre homens e mulheres, uma vez que os homens têm exercido poder violento e coercitivo contra elas desde que o mundo é mundo. Não podendo responder categoricamente à pergunta de um milhão de dólares —por que essa opressão se repete em todas as culturas até aqui?—, resta-nos avaliar eticamente o que fazer com a injustiça.

Daí a resposta do feminismo, ou melhor, dos feminismos, já que há algumas versões e correntes diversas dentro do movimento. Quanto a mim, certamente afetada pela psicanálise, alinho-me às que entendem que cada uma tem o direito de escolher sua forma de vida, a tal ponto que até escolher ser submissa deve ser respeitado.

E não poderia ser muito diferente para quem acredita que devemos reconhecer nosso desejo, decidir o que fazer com ele —o que nem sempre significa realizá-lo— e assumir integralmente a responsabilidade por isso.

Quando critico as antifeministas é por, pelo menos, duas razões: a incoerência do discurso e o autoritarismo de impô-lo às demais. Não quer casar? Quer ser monogâmica? Quer ter filhos? Abrir mão dos estudos? Não quer abortar? Tudo bem. Mas obrigar outras mulheres a terem a mesma sina é inaceitável. Submeta-se o quanto quiser, mas não venha colocar a colher no meu angu.

Noivos se beijam em casamento
Hisu lee na Unsplash

Quanto à coerência, vamos falar de um vídeo que anda circulando pelas redes de uma deputada cujo nome faço questão de não mencionar, pois é assim que essas pessoas se promovem e ganham eleitores.

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São falas disruptivas, de cunho extremista, que funcionam como ímã para a direita radical. Essa senhora diz em alto e bom som que a mulher deve ser submissa ao marido e que o homem é a cabeça da família.

Não é a primeira nem será a última a proferir essas crenças, mas, ao fazê-lo no exercício de seu cargo político, fica a questão: ela não deveria estar em casa preparando a comida do cônjuge?

Se uma das conquistas mais notórias do feminismo, que levou à prisão, à tortura e à morte diversas sufragistas, foi o direito ao voto, o que dizer do direito de exercer um cargo político? Se a deputada realmente acredita no que grita em plenário, ela se imagina a exceção ao que ela mesma prega. Figura bem representada pela personagem Serena Joy em "O Conto da Aia", de Margaret Atwood.

Pôster da quinta temporada de 'The Handmaid's Tale'
Pôster da quinta temporada de 'The Handmaid's Tale' - Divulgação

Esposa do Comandante, que lutou ativamente para instituir uma sociedade na qual as mulheres estão sob o poder masculino, ela se espanta sempre que tem que se submeter ao jugo do marido, jugo que ela mesma ajudou a criar. Não há deputadas em Gilead, apenas mulheres que oprimem outras mulheres que estão na escala inferior da pirâmide social.

A repórter Jéssica Nakamura, em entrevista que gravei para o Deutsche Welle, me alertou sobre o artigo "The Rise and Fall of the Trad Wife", de Sophie Elmhirst, na revista The New Yorker. A expressão descreve um grupo de mulheres que defende o retorno aos lares e ao cuidado com a família tradicional: papai, mamãe e filhos, sendo o pai o provedor financeiro e a mãe a cuidadora.

Esse modelo, que nunca saiu de moda, agora perde a vergonha de se posicionar abertamente em favor do discurso que foi hegemônico até os anos 1950, antes da revolução sexual. O interessante da reportagem é mostrar que o espectro de classe, raça, político e religioso dessas mulheres é mais amplo do que se esperava, revelando que elas não compõem o estereótipo das famílias ricas, brancas, republicanas e evangélicas, como se imagina.

Nesse ponto, retorno à minha reflexão inicial neste artigo: "cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é".

Desde que não obriguem as demais mulheres a seguir seu caminho, não tenho nada contra. Acredito que essa seja uma das respostas possíveis para o desafio que as mulheres enfrentam ao tentar conciliar carreira e filhos. Nesse caso, elas abrem mão da carreira em favor de criar filhos, tendo o marido como apoio financeiro.

Essa escolha tem três saídas bem conhecidas, como denunciam as feministas há mais de cem anos: divórcio e tentativa de voltar ao mercado de trabalho tardiamente, agora com filhos para cuidar; aguentar qualquer violência para não perder o "carrasco provedor"; viver felizes para sempre. Façam suas apostas.

sábado, 20 de abril de 2024

Opinião |Farol alto, Bolivar Almounier, OESP (definitivo)

 O fato que narro a seguir ocorreu no segundo semestre de 1983, no Rio de Janeiro, numa sala espaçosa do terceiro andar do Hotel Ouro Verde.

Um grupo de amigos – literatos, políticos, jornalistas – convidou Franco Montoro, governador de São Paulo, para um bate-papo. Com seu insuperável bom humor, Montoro cumprimentou-os um por um e se propôs a fazer uma exposição sobre seu governo. Começou pelas valiosas contribuições que recebia de Dona Lucy, sua esposa, e prosseguiu discorrendo sobre seus projetos: hortas comunitárias, a até então esquecida área das estradas vicinais e por aí afora. A certa altura, foi interpelado pelo saudoso Otto Lara Resende: “Farol alto, governador, farol alto”. Durante a risadinha que se seguiu, coisa de um minuto, Montoro não deixou a bola cair: engatou a terceira nos grandes problemas do País, no moribundo arbítrio militar, nos projetos “faraônicos” da era Geisel, que haviam aberto as portas do País para a “década perdida” – e, claro, foi efusivamente aplaudido.

Àquela altura, Dante de Oliveira, deputado federal pelo Mato Grosso, vinha solitariamente cogitando uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que tornaria direto o processo sucessório do general João Baptista Figueiredo, cujo mandato expiraria no final de 1984. Proposta moderada, já se vê, pois tinha em vista apenas o pleito posterior à saída de Figueiredo. O assunto rarissimamente aparecia na imprensa escrita e nunca, ça va sans dire, na Rede Globo. Mas, como certa vez sentenciou uma ilustre figura da política nacional, “o futuro a Deus pertence”. E tanto isso é verdade que a reunião do Hotel Ouro Verde foi a sementinha que, paulatinamente, deu origem à campanha das Diretas Já, o maior movimento de massas que o Brasil conheceu, cujo ponto culminante viria a ser o colossal comício realizado na Praça da Sé no dia 25 de abril de 1984.

Nesta altura, é oportuno recordar que os três principais governos estaduais (São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais) haviam passado às mãos de candidatos de oposição (o próprio Montoro, Tancredo Neves e Leonel Brizola) na eleição de 1982. Associada ao elevado nível de fermentação criado pela campanha das Diretas Já e aos desastres do endividamento externo e da “década perdida” engendrados pela quimera da industrialização em marcha forçada por Ernesto Geisel, antecessor de Figueiredo na Presidência, a referida mudança nos três principais governos estaduais alterou a realidade política do País, que se converteu, como acertadamente diagnosticou o cientista político Juan Linz, numa “instável diarquia”, que não se poderia manter dentro de um quadro institucional normal.

A Emenda Dante de Oliveira foi derrotada no Congresso, mas a lucidez de Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Franco Montoro, Fernando Henrique Cardoso e outros obteve apoio de massas para reorientar o movimento. Se a negativa do Congresso fechou o caminho da eleição direta, o enfrentamento seria levado à cova dos leões, ou seja, ao próprio Colégio Eleitoral que os militares haviam estabelecido 21 anos antes com o objetivo de blindar o acesso à Presidência por alguma oposição (no caso, o Movimento Democrático Brasileiro, o MDB). E foi lá, com efeito, que Tancredo Neves bateu Paulo Maluf, o candidato da continuidade do regime militar.

Otto Lara Resende não está mais conosco, mas a necessidade de alguém que exclame “farol alto” permanece, quiçá até com mais gravidade. Onde tínhamos um amplo consenso entre grandes líderes e na sociedade, hoje, temos uma desarrazoada polarização entre Lula e Jair Bolsonaro. Onde podíamos ter começado a construir partidos políticos sérios, hoje, temos uma miríade de interesses de duvidosa legitimidade. Quando nos imergimos na esperança de mudanças que deveriam vir com a Constituinte, Suas Excelências partejaram uma Carta contra a maioria das reformas necessárias e, ela mesma, virtualmente irreformável.

A julgar pelas últimas cogitações sobre a questão fiscal trazidas a público, a hipótese de um minúsculo superávit nas contas públicas ficou para 2026, ou seja, para o final do mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Daria para sorrir, não fora a também irreformável mania de que nossa economia só conseguirá crescer por meio de (inexistentes) recursos públicos.

No quadro descrito e no curto prazo, é cabível supor que não desembocaremos numa guerra civil ou em alguma monstruosa anarquia. Essa, entretanto, é uma hipótese que só um obtuso incapaz de visualizar um horizonte de 15 ou 20 anos descartaria sem a devida reflexão. Até porque, enfrentar desafios não é o nosso forte. Cabe, aqui, uma analogia com o conceito de produtividade em economia. Se cada cidadão dotado de recursos (pecuniários, educacionais, de liderança ou qualquer outro que se queira cogitar) se dispuser a participar mais e, assim, substituir nossos amebianos partidos políticos, o futuro quiçá nos seja relativamente ameno. Se não, ele pertencerá a Deus, como sempre pertenceu.

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SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

A nova Raposo Tavares e o velho urbanismo, Mauro Calliari, FSP

 

Nos últimos dias, veio à tona mais um projeto que promete mexer com a cidade: o governo estadual anunciou a concessão de várias rodovias incluindo o trecho da Rodovia Raposo Tavares entre a capital e Cotia.

No trecho da chegada a São Paulo, o projeto pode afetar bairros inteiros e causou reação de moradores, que já começaram a se articular para tentar entender e eventualmente se defender dos efeitos de uma mudança gigante.

Como encarar um projeto com potencial de interferência enorme na cidade e que parece querer prescindir de debate?

Ttráfego na rodovia Raposo Tavares na altura da entrada para Cotia - Adriano Vizoni/Folhapress

Estrada é diferente de rua

A cidade de São Paulo é um nó. Estradas entram e saem diretamente do município, o que foi a razão para a criação do Anel Viário, que está incompleto até hoje.

Esse é a contradição: a estrada é construída para circular em alta velocidade. Quando chega à região urbanizada, porém, muda de caráter, precisa se integrar à cidade, acomodar comércios, dar passagem a moradores, oferecer acessos a ônibus urbano, bicicletas e pedestres. As duas coisas não combinam.

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Existe até um termo usado por urbanistas americanos: stroad, mistura de street (rua) e road (estrada). A via que tenta ser as duas coisas não é nem uma coisa nem outra.

Não por acaso, o trecho inicial, da capital até o km 34, em Cotia, ficou fora do primeiro programa de concessões da gestão Mário Covas, em 1998. Ao trazer a concessionária para o trecho urbano, revela-se a intenção de pedagiar o trânsito de pessoas que trafegam dentro da própria cidade.

A distância entre as esferas da gestão parece jogar contra a cidade

O governo estadual é responsável pelo transporte entre cidades e pela rede de trilhos. Mesmo assim, não se concebe um novo projeto sem a participação do governo municipal. A Prefeitura de São Paulo está esperando detalhes para se manifestar, o que não parece ser um começo promissor se a ideia é justamente adequar projetos às necessidades da cidade.

Na outra ponta, há outro conflito, advindo da pergunta óbvia que se faz quem olha o mapa. O que vai acontecer com Regis Bittencourt, que chega praticamente ao mesmo ponto da capital? Algumas soluções poderiam ser integradas, mas nada está previsto, o que parece revelar a distância entre a gestão federal (Regis) e a gestão estadual (Raposo).

Rodoanel perto da rodovia Régis Bittencourt - Jardiel Carvalho/Folhapress

Comunicação e participação

O processo da Nova Raposo está no mínimo mal comunicado e só gerou reações após uma reportagem em O Estado de S. Paulo. Há duas audiências públicas nessa fase, sendo apenas uma em São Paulo. Não parece republicano nem civilizado começar uma conversa sem convidar moradores, comerciantes, conselheiros, técnicos, representantes do Executivo e Legislativo das cidades por onde passa a estrada.

Ideias descasadas de planos urbanísticos

São Paulo acabou de aprovar a revisão do Plano Diretor, um processo difícil, cheio de idas e vindas. Não há nele –nem no Plano de Mobilidade– nada a respeito da Nova Raposo. Aliás, também não se discutiu outra ideia do governo estadual, a de mudar a estrutura administrativa para os Campos Elíseos.

Premissas antigas para um projeto contemporâneo

O projeto prevê duplicação, faixas adicionais, vias marginais, a construção de pontes e túneis e passarelas para pedestres. Chama a atenção que uma escala de intervenções tão grande possa ser concebida sem considerar alternativas e impactos. Onde estão as considerações sobre o transporte público? Como ficam os ônibus nessa nova configuração?

E, principalmente, onde está o metrô? Ora, há um projeto justamente para essa região: a nova linha 22–Marrom do metrô, que vai ligar São Paulo até a Granja Viana (fase 1) e Cotia (fase 2). O projeto da nova linha está previsto para 2026, quando as intervenções rodoviárias provavelmente já estarão em andamento ou concluídas. Será que ela não poderia aliviar parte considerável do trânsito que se pretende combater agora? Não seria o caso de apressar os estudos para poder fazer uma escolha mais racional?

O impacto nos bairros

A falta de detalhamento e o tempo escasso não permitiram nem que se estude em detalhes os impactos, mas é possível ver no vídeo do site uma extensa rede de viadutos, túneis e derrubada de árvores a partir da chegada a São Paulo. Ora, nós já vimos esse filme em 1971, quando a construção do Minhocão trocou qualidade de vida por mobilidade, sugando a vitalidade do centro pelos lugares onde passou.

A fluidez da Raposo Tavares é importante. O custo do trânsito parado tem impacto econômico, ambiental e de qualidade de vida, assim como a segurança dos pedestres que precisam cruzar a estrada. Entretanto, é possível que haja condições de melhorar essa fluidez, resolvendo gargalos pontuais da estrada sem ter que comprometer o futuro de bairros que circundam a estrada.

A melhor solução será aquela que leva em consideração as infraestruturas existentes, como a segregação de ônibus e o Rodoanel, as futuras, como o metrô e trem e, principalmente, a vida que acontece na cidade que ela vai impactar.