segunda-feira, 15 de abril de 2024

Becky S. Korich - A ditadura do moralismo, FSP

 Sejamos honestos, ninguém é totalmente honesto consigo mesmo. É humanamente insuportável lidarmos com a verdade crua sobre quem somos e enfrentar nossas inconsistências sem nenhum anestésico emocional. A natureza humana é habilidosa em inventar virtudes morais e especialista em encontrar justificativas para nossas derrapadas morais.

Hoje esse mecanismo ganhou outros contornos. Não existe nenhuma conversa em que a moralidade não domine. Vivemos uma crise de hipocrisia; quem não compartilha das mesmas crenças, é automaticamente considerado imoral —às vezes até é.

Homem agressivo de roupa preta grita, refletindo outro, isolado, que usa branco e tapa os ouvidos
golubovy - stock.adobe.com

O mundo está cheio de almas que se julgam puras e bem-intencionadas e de pessoas narcísicas e inseguras que precisam exibir e gritar suas virtudes morais, nem que seja para se redimir de seus pecados inconfessos.

Eles se definem por não ser o que o outro é, sem se preocupar com o que são: é nesse "não ser" que se baseia sua identidade. Parecer é mais importante do que ser, ser bem-visto é mais importante do que ver bem.

Dizer que estamos polarizados é chover no molhado. A bipartição foi longe, extrapolou a política, invadiu o terreno ético e se tornou uma questão passional.

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Em diferentes doses, todos nós estamos condicionados a ter uma reação emocional quando somos contestados em nossas crenças. O problema acontece quando as razões usadas para endossar as paixões valem mais do que o interesse pela verdade.

O maniqueísmo que divide o mundo entre santos e canalhas combina com novelas mexicanas, não com a vida real, em que os valores morais não são absolutos. O "moralismo moderno" escolhe uma só perspectiva (eu jurei que não usaria a palavra "narrativa") para depositar todas as fichas.

Nenhum valor é estático. Muito menos os valores morais, que variam de acordo com a época e a cultura. Não dá para enclausurá-los dentro de um pacote completo, hermético a vácuo e impenetrável. Não se trata de tudo ou nada, do certo ou errado. Desprezar a complexidade humana e social é aceitar o vácuo existencial e restringir a liberdade de pensamento.

Com tanto patrulhamento, o mundo está mais chato e mais achatado. As pessoas estão ressentidas e mal-humoradas. Não sobra espaço para o humor, porque, por mais inofensivo que seja, ele só acontece com a violação de alguma norma social.

Se antes ser careta significava ser tradicional no sentido de não conseguir lidar com o diferente ou o novo, os caretas da modernidade são os tiranos do moralismo que vestem a máscara de libertários para controlar, julgar e oprimir o diferente. É praticamente um dever demonizar os outros.

Jonathan Haidt, psicólogo, explica em seu livro "The Righteous Mind: Why Good People are Divided by Politics and Religion" (A Mente Justa: Porque as Boas Pessoas se Dividem por Política e Religião): "Se você pensa que o raciocínio moral é algo que fazemos para descobrir a verdade, você ficará constantemente frustrado ao ver como as pessoas se tornam tolas, tendenciosas e ilógicas quando discordam de você. Mas se pensarmos no raciocínio moral como uma habilidade que nós, seres humanos, desenvolvemos para promover as nossas agendas sociais —para justificar as nossas próprias ações e para defender as equipes às quais pertencemos— então as coisas farão muito mais sentido".

Essa percepção é antiga. Em 1739 o filósofo escocês David Hume, em seu "Tratado da Natureza Humana", desafiou o racionalismo ao defender que os sentimentos são determinantes para a compreensão da moral porque não fomos projetados para ouvir a razão: "É impossível que a razão e a paixão possam se opor mutuamente ou disputar o controle da vontade e das ações. Assim que percebemos a falsidade de uma suposição ou a influência de certos meios, nossas paixões cedem a nossa razão sem nenhuma oposição".

Silenciar a ideia do outro tem o preço de silenciar a própria voz: nada mais imoral do que isso.
O mundo está moralista demais, mas não está com essa moral toda.


Hélio Schwartsman - Árabes e judeus: inimigos e vizinhos, FSP

 Segui o conselho de João Pereira Coutinho e devorei "Enemies and Neighbors" (inimigos e vizinhos), do jornalista britânico Ian Black. Não me arrependi. Black traça uma história razoavelmente detalhada do conflito que hoje opõe israelenses a palestinos. Começa com a declaração Balfour, de 1917, pela qual os britânicos prometeram um lar nacional para os judeus na Palestina (sem deixar de fazer promessa semelhante aos árabes) e vai até 2017, ano da publicação do livro.

O grande mérito de "Enemies..." é que ele consegue manter-se equidistante das versões mais inflamadas de ambas as partes, o que não é pouco num mundo em que cada vez mais a análise é substituída por palavras de ordem. A fórmula de Black para obter tal êxito é simples: não passar pano para nenhum dos lados e tentar ser tão justo quanto possível com ambos. É pena que o jornalismo, que até pouco tempo atrás adotava essa fórmula como mantra, esteja se afastando dela, no afã de emitir sinalizações morais sobre tudo.

A ilustração de Annette Schwartsman, publicada na Folha de São Paulo no dia 13 de abril de 2024, mostra, sobre um fundo azul celeste, dois homens, cada um deles de um lado de um desfiladeiro; do lado esquerdo, um judeu fala e aponta o dedo para frente; ele tem pele clara, barba e cabelos castanhos e usa terno azul, camisa branca, sapatos pretos e kipá vinho; do lado direito do desfiladeiro, um palestino responde apontando o dedo indicador para cima; ele tem um tom de pele mais escuro, cabelos grisalhos e veste paletó verde, calças cinzas, sapatos pretos e hijab claro com estampas e cordão pretos
Ilustração de Annette Schwartsman para a coluna de Hélio de Schwartsman de 13 de abril de 2024 - Annette Schwartsman

Black mostra que, se os ultranacionalistas dos dois lados sempre tiveram posições inconciliáveis, o mesmo não pode ser dito das populações "normais", que em algumas ocasiões conviveram civilizadamente e acreditaram numa conciliação. O problema é que isso se perdeu. Um pouco porque os radicais triunfaram, as duas populações foram se isolando cada vez mais e, assim, deixando de ver o outro lado como digno de consideração.

Nas páginas finais, Black antecipa uma discussão que vem ganhando espaço. Se a fórmula de dois Estados hoje é dada como inviável por vários analistas, a solução de um Estado binacional parece ainda mais difícil. Além dos ressentimentos acumulados, abriram-se verdadeiros fossos psicológicos e sociais entre as duas populações, que não passariam a dividir um mesmo Estado como se nada tivesse acontecido.

A perspectiva, que já era sombria em 2017, não melhorou nos últimos seis meses.

helio@uol.com.br

Muniz Sodré - A visita de Moro ao STF e o tribunal das almas, FSP

 O STF tem exibido aparências "extrafederais". Sinal é a desconcertante visita do senador Moro, em meio a processo de cassação eleitoral, a um magistrado do Supremo. E precisamente a alguém que, aos olhos públicos, não parece apreciá-lo. Inexiste, claro, qualquer impedimento legal para o encontro. O que chama a atenção é o seu aparente caráter terapêutico no sentido americano do "counseling", que comporta aconselhamento e orientações de conduta. Extrafederalização, com certeza.

Ainda mais, o episódio evoca também uma observância eclesiástica do remoto século 12 italiano, atinente ao Tribunal das Almas. Era o tempo dos papas reis, que misturavam poderes temporais com administração de sacramentos, como confissões de pecados. Cabia ao tribunal ponderar a gravidade dos atos e conceder ou negar absolvições.

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O senador Sérgio Moro (União Brasil-PR) chega ao Senado - Gabriela Biló - 3.abr.24/Folhapress

Destoa do cânone litúrgico a publicidade do diálogo, o que não autoriza comparações rigorosas com contingências como a de um encontro entre um magistrado e um senador que já teve pretensões ao papel de Catão, o célebre questor romano, emblema de moralidade pública.

Mas uma analogia é justamente sugerida pela publicação de trechos da conversa: afiando a língua, o ministro deixou escapar que Moro e seu antigo parceiro da Lava Jato "roubavam galinhas juntos". Em seguida, destravado, fez reparos a deslizes processuais do ex-juiz e o aconselhou a estudar mais, fazendo bom proveito da biblioteca do Senado. Uma correção pungente, o Tribunal das Almas redivivo.

Bizarro em todo esse episódio é o sinal de uma plasticidade de imagem do STF que extravasa atribuições constitucionais. Imagem, bem sabem os analistas da cultura, é hoje a linguagem privilegiada do sujeito. Em sua dimensão eucarística e sacramental, ela substitui corpo e sangue de fiéis, criando realidades próprias com um fundo relacional de trânsito mais fácil que palavras.

No confuso cenário político nacional, a imagem do Supremo oscila entre o de dispensador onipotente de punições ou absolvições e o de zelador da Constituição. Mas, pelo visto, indo além, com espírito moderador, também acolhe almas em apuros.

Em termos objetivos, o senador não foi pedir nada a outro Poder, e sim a uma imagem de potência. Queria tão só contato, proximidade com uma instância à qual já deve ter sonhado pertencer, mas acabou aprendendo que identidade é algo que se faz e refaz por atos de destino: a persona de Catão não lhe coube, a de senador oscila, a auto-imagem desmoronou.

Ainda assim escapou no tribunal eleitoral da ex-república-de-curitiba. É que no expansivo ecossistema religioso da política nacional, com cultos de devoção ao mal e o presidente da República apelando a milagres, pode ter efeito mágico uma genuflexão no Tribunal das Almas.