segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Tolerância com valores autoritários resistiu ao fracasso do 8/1, Bruno Boghossian, FSP

 O fracasso da tentativa de golpe, a punição aos invasores e a relativa tranquilidade desde 8 de janeiro de 2023 não eliminaram um fator que foi determinante para os ataques e que se incorporou ao ideário de agentes políticos e de um largo contingente de eleitores: a tolerância com princípios antidemocráticos.

A ascensão do bolsonarismo elevou a uma posição central no debate público uma doutrina baseada em tendências autoritárias. O líder, seus auxiliares e muitos apoiadores seguiram uma linha que rejeitava controles institucionais, admitia o atropelo das regras do jogo e considerava o uso da força para fazer valer suas vontades políticas.

Grupos dominantes da direita brasileira mantêm essas preferências ou exibem complacência exagerada em relação a esses valores. A dependência da força política de Jair Bolsonaro e a ausência de um polo alternativo nesse campo une extremistas convictos, beneficiários políticos do radicalismo e aqueles que temem desafiar o ex-presidente.

A normalização, ao longo de quatro anos, dessas disposições autoritárias facilitou a disseminação da ideia de que aquele era um caminho legítimo ou, ao menos, uma transgressão aceitável quando usada a favor de um propósito político. Anabolizada por informações falsas, essa distorção foi absorvida por uma fatia ampla do eleitorado.

Esse é o efeito de um certo tipo de populismo. Nos EUA, uma pesquisa do Democracy Fund mostrou que 58% dos eleitores republicanos concordavam, em 2019, que Donald Trump poderia agir fora da Constituição se soubesse que era "a coisa certa". Só 12% dos simpatizantes do mesmo partido diziam, em 2022, que Joe Biden poderia fazer o mesmo.

No Brasil, a desconfiança artificial sobre o processo democrático e o antagonismo fabricado em relação às instituições estão sedimentados entre os bolsonaristas mais fiéis. A exclusão do ex-presidente do jogo eleitoral e a condenação de golpistas dificilmente mudará esse quadro de um ano para outro.

O preço do tempo, Hélio Schwartsman, FSP

 Lula está em boa companhia quando impreca contra os juros. Ele faz coro a Platão, Aristóteles, Agostinho, Aquino, Dante, Lutero, Shakespeare e, é claro, Marx e Keynes. Cobrar para emprestar dinheiro é prática milenar. Mesopotâmicos já o faziam antes mesmo de aprender a pôr rodas em carroças, como ensina Edward Chancellor em "The Price of Time".

A antiguidade da prática não impediu que várias culturas desenvolvessem ojeriza visceral aos juros, descritos ora como imoralidade, ora como empecilho ao desenvolvimento e frequentemente como ambos. Não é difícil ver os problemas que altas taxas de juros causam numa economia. Até o PT os enxerga. Chancellor, porém, além de contar uma história razoavelmente detalhada dos juros, também mostra que taxas muito baixas por períodos prolongados geram malefícios ainda piores.

A ilustração de Annette Schwartsman, publicada na Folha de São Paulo no dia 7 de janeiro de 2024, mostra, sobre um fundo escuro, um relógio redondo de algarismos romanos e um único ponteiro; do lado de fora, atrás de cada número, moedas de ouro que se multiplicam a cada mudança de hora.
Ilustração de Annette Schwartsman para a coluna de Hélio Schwartsman na Folha, publicada também na versão impressa neste domingo (7.jan.2024) - Annette Schwartsman/Folhapress

Juros são, como diz o título da obra, o preço do tempo, a diferença entre o presente e o futuro. Se a taxa é muito baixa, o futuro invade o presente. Firmas vistas como promissoras, mesmo que não tenham ainda gerado um dólar de lucro, recebem avaliações bilionárias. Até projetos absurdos, como reavivar o mar Morto, encontram interessados. Surgem assim bolhas que inevitavelmente explodirão: a companhia do Mississippi, de John Law, as tulipas, 1929, os subprimes. A lista é longa.

E bolhas não são o único problema. Segundo o autor, taxas muito baixas também levam à má alocação do capital, o que reduz a eficiência da economia, à zumbificação de empresas, ao superendividamento, ao aumento da desigualdade e até à erosão da democracia. É claro que economistas filiados a outras escolas têm outras interpretações.

Nos capítulos iniciais, Chancellor é bem descritivo. À medida, porém, que o livro avança, vai assumindo um tom mais militante. O penúltimo capítulo é um ataque à China, e o último, uma ode neoliberal a Hayek. Isso não torna a obra menos interessante.


De volta ao padrão, editorial FSP

 

Praça dos Três Poderes, em Brasília (DF) - Pedro Ladeira/Folhapress,

A baderna que engolfou a praça dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023, apesar de ter ocorrido já na gestão Luiz Inácio Lula da Silva (PT), seria mais bem situada analiticamente como o ato derradeiro do período Jair Bolsonaro (PL).

Naquele dia desbordou o jorro de ódios e insanidades que haviam sido acumulados pela ação e a omissão do presidente da República e seu séquito de aloprados ao longo de quatro anos. Foi o fim de um pavio que se apagou diante da solidez da arquitetura democrática.

As instituições negaram substrato para aventuras golpistas. Os arruaceiros que acreditaram estar subvertendo pelo vandalismo o resultado das urnas moviam-se sem o menor respaldo do oficialato militar ou de qualquer outra organização do Estado brasileiro.

O porre da depredação de palácios na capital federal logo deu lugar à ressaca das prisões dos delinquentes e à sua responsabilização judicial. A Procuradoria denunciou mais de 1.400 pessoas pelos crimes daquele domingo. Um ano depois, 30 já foram julgadas e condenadas pelo Supremo Tribunal Federal.

A corte age bem ao dar celeridade aos processos, o que favorece o efeito dissuasório das condenações, mas se excede no tamanho das penas aplicadas. Elas chegam a 17 anos de prisão para acusados que não exerceram papel de liderar nem de organizar as violações.

Há um ano ouviu-se o último ronco da besta acuada que inspirava o extremismo de direita. Sob Lula, o chefe do Executivo recobrou o padrão de conformidade com as regras do jogo constitucional.

Essa conduta, vale sublinhar, tem sido a regra, quebrada apenas na quadra da irresponsabilidade bolsonarista, em quase quatro décadas de Nova República. O governante erra e acerta, ganha e perde, sem promover razias contra quem se incumbe de limitar e fiscalizar o exercício do poder presidencial.

O bom vento da normalidade deveria refrescar também o STF, que mantém inconclusos inquéritos policiais anômalos, abertos e tocados pelo mesmo tribunal que julga, e às vezes se inclina para decisões que cerceiam a livre expressão.

Reformas legislativas para evitar a contaminação das corporações militares pela política partidária ainda necessitam ser votadas pelo Congresso Nacional. Também espera-se que o aparato de segurança dos edifícios federais em Brasília jamais permita a repetição da humilhação do 8 de janeiro.

No mais, o Brasil tem pressa para virar a página. Precisa concentrar as suas energias cívicas e institucionais nos temas de seu desenvolvimento econômico e social deficiente. É exasperante perder tempo com agendas velhas e fracassadas, que questionam o pavimento democrático da rodovia a seguir.

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