segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Luiz Felipe Pondé - O humanismo ateu compreende que a crença em Deus atrapalha, FSP

 O humanismo é uma expressão de alta credencial em filosofia e em ciências humanas em geral. Termo cunhado a partir do renascimento italiano —nos séculos 15 e 16—, o termo "humanismo" pode ser compreendido, na sua origem e evolução mais imediata, como erudição nos clássicos antigos greco-romanos, traduções, comentários, ensino.

O termo também pode ser compreendido como uma concepção de natureza humana em que esta é vista como possuidora de todos os recursos necessários para realizar o bem e aprender ao longo da vida, sem interferência necessária de Deus. O filósofo francês Henri Gouhier (1898-1994) é uma referência consistente na história desse conceito.

A ilustração figurativa em preto e branco de Ricardo Cammarota foi executada em técnica manual com pincél e tinta nanquim, acabamento com rachuras e fios de contorno, a traço e posteriormente, manipulada digitalmente.  A imagem horizontal, proporção 17,5cm x 9,5cm, não apresenta uma narrativa aparente, trata-se de uma composição de dois corpos humanos, sem camisa e descalços, usando bermudas. Estão, um ao outro, em posições contrárias (horizontal e vertical). Ambos os corpos estão ajoelhados, corpos caídos, para frente e direcionadas ao chão, braços soltos, com a cabeças, que não aparecem, pois estão enterradas no chão com pedras.
Ricardo Cammarota/Folhapress

Como pode ser percebido pela rápida síntese acima descrita, o conceito nasce num âmbito europeu de matriz cristã em diálogo com a herança antiga. Dentro da própria filosofia cristã de então, o conceito é filho do processo de superação de uma antropologia filosófica medieval em que o homem era visto como necessariamente portador de uma herança maldita: o pecado original que limitava suas possibilidades de progresso e autonomia. Éramos vistos como seres insuficientes e o humanismo cristão nos elevou a condição de seres suficientes –no jargão dos especialistas no assunto.

Trocando em miúdos, humanismo assumiu o caráter de ser um termo técnico para o otimismo com relação às possibilidades humanas, enquanto anti-humanismo passou a representar uma visão pessimista dessas mesmas possibilidades.

Entretanto, a herança humanista passará por uma transformação radical no século 19. Essa transformação é o objeto da obra "Drama do Humanismo Ateu", na tradução brasileira da editora Ecclesiae, escrita pelo teólogo francês do século 20, o cardeal Henri de Lubac (1896-1991).

Obra de peso, De Lubac apresentará a mutação, na sua opinião catastrófica, que sofre o humanismo a partir de autores como Ludwig Feuerbach (1804-1872) no seu clássico "Essência do Cristianismo", da editora Calouste Gulbenkian.

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Mutação esta seguida de perto por autores como Marx, de mais longe como Nietzsche, de forma mais ampla por Auguste Comte –todos no século 19–, entre outros.

Essa mutação consiste em "matar Deus" como causa da condição humana "otimista" ou suficiente, ou, dito de outra forma, a superação de Deus como causa da esperança na vida e suas possibilidades. E, mais do que isso, a ideia de que a crença em Deus atrapalha.

A partir de Feuerbach, o homem é a causa de sua autonomia, felicidade, virtudes, potências, enfim, de um futuro cheio de esperanças. Estamos naquilo que De Lubac nomeará ao longo da sua obra como a "religião da humanidade", inspirado no projeto positivista de Auguste Comte. Qual seria a natureza desse drama do humanismo ateu?

Lembremos que De Lubac começa a se dedicar a essa obra logo após a segunda guerra mundial, o que implica um contexto peculiar para se avaliar a herança de um humanismo europeu crente em si mesmo de forma arrogante e equivocada, pensa De Lubac –devo dizer que sigo De Lubac em sua percepção da catástrofe do humanismo ateu.

De Lubac entende que a aposta do humanismo ateu não se saiu bem. A tentativa comtiana de fundar a felicidade numa religião da humanidade fracassou a olhos nus –hoje, em pleno século 21, este fato parece óbvio.

Ainda que se trate de uma obra para gente grande, o tema diz respeito a todos nós. Mesmo que De Lubac argumente, com razão penso eu, que o humanismo ateu do século 19 fracassou, a religião positivista da humanidade se instalou na cultura do senso comum, dos governos, nas academias, na publicidade, nas novas espiritualidades, nas psicoterapias. Mesmo aqueles que não se vêm como herdeiros de Comte e o consideram até "brega" na sua igreja positivista congregam em sua igreja.

Continuamos a insistir na crença de que há esperança no humanismo. De Lubac apresenta Dostoiévski (1821-1881) como aquele que previu, como um profeta, a vocação do humanismo ateu ao niilismo. Fato consumado este que não percebemos apenas por que o barulho do mundo está muito alto e nossos ouvidos estão perfurados pelo ruído.


Sharenting: pense antes de postar seus filhos, Ronaldo Lemos, FSP

 Um dos hábitos mais característicos da era da superexposição que estamos vivendo é a prática do "sharenting". A palavra refere-se ao hábito de pais e mães que ficam postando fotos dos seus filhos, inclusive bebês, nas mídias sociais.

Essa prática é quase irresistível. É humano querer compartilhar as alegrias e agruras da maternidade e o lugar para isso hoje não é mais o álbum de fotos que ficava na gaveta, mas sim a internet.

Logotipos dos principais aplicativos de redes sociais; o Twitter, comprado pelo bilionário Elon Musk, foi rebatizado como X - Denis Charlet - 21.out.20/AFP

A questão é que a maior parte dos pais não faz uma reflexão mais profunda do que significa postar fotos dos seus filhos. Como lembrou a pesquisadora em privacidade Luiza Jarovsky em artigo recente, o motivo de os pais postarem fotos dos filhos é seu próprio interesse, não o das crianças (que nem sabem o que está acontecendo).

Os pais querem o que todo mundo quer: uma descarga rápida de dopamina quando a foto das crianças ganha comentários, likes, shares e elogios. Em outras palavras, usam os filhos para ganhar "biscoito" na internet. Inclusive de estranhos que os pais nem sabem quem são.

Se você é pai/mãe e se identificou com essa situação saiba que você não está sozinho. Um estudo feito pela SecurityORG nos EUA determinou que 77% dos pais compartilham stories, vídeos ou imagens dos filhos nas mídias sociais.

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Outro estudo feito pela Nominet na Inglaterra em 2017 revelou que esses pais-compartilhadores postam em média 300 fotos por ano dos filhos. Quando a criança chega aos 5 anos há cerca de 1.500 fotos dela online.

Postar fotos dos filhos levanta questões importantes. A criança é de uma outra geração que os pais. Ao crescer pode não achar positivo que tenha sido exposta. Além disso, boa parte do que é postado online vira combustível para treinar inteligências artificiais. As crianças podem desde cedo se tornarem identificáveis digitalmente, pelo formato da íris e outras características. Sem falar nos riscos relacionados à privacidade, exposição em face de estranhos e até usos maliciosos e imprevisíveis das imagens.

Em 2016, um jornal austríaco relatou o caso de uma adolescente de 18 anos que processou os pais por terem exposto suas fotos de criança online. No fim foi provado que o artigo era falso. No entanto, uma discussão importante surgiu: poderiam os filhos processar os pais por essa conduta?

Vários advogados europeus acreditam que sim, seja por uso indevido de informações privadas, seja com base nas leis de proteção de dados pessoais. Em um caso judicial na Inglaterra, um juiz da área de família da Alta Corte indicou a possibilidade de que o direito à privacidade das crianças se aplica inclusive com relação aos pais.

Com isso vale a pena perguntar: o que as crianças ganham com a exposição feita pelos pais? A resposta em geral é: nada. Uma das poucas exceções são crianças filhas de celebridades, quando os pais intencionam transferir parte da fama e do seu capital social para os filhos por meio das mídias sociais.

Fora dessa hipótese, que se aplica a poucas pessoas, o ganho para a criança é praticamente nulo. É melhor pensar com carinho antes de expor os filhos em troca de dopamina.

READER

Já era Fotos das crianças em álbuns de papel e privados

Já é Compartilhar momentos dos filhos online sem maiores reflexões

Já vem Preocupações específicas com a privacidade das crianças, inclusive em face da inteligência artificial

MST buscou fazer do limão uma limonada com CPI, Camila rocha, FSP

 A CPI contra o MST terminou com uma importante derrota para os detratores do movimento. Encabeçada pelos deputados Tenente Coronel Zucco (Republicanos-RS) e Ricardo Salles (PL-SP), a comissão foi encerrada no dia 27 de setembro sem que o relatório final fosse votado.

Ambos buscavam maior projeção política com a CPI, no entanto não conseguiram furar a bolha de seus nichos ideológicos. Além disso, Salles viu frustrada sua tentativa de concorrer à Prefeitura de São Paulo, e Zucco tornou-se mais conhecido por ataques à deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP), que o denunciou por machismo e gordofobia, do que pela pauta da CPI em si.

O MST, por sua vez, fez do limão uma limonada e aproveitou o contexto para difundir suas causas para um público mais amplo. Com a hashtag #TôComMST, o movimento ocupou o segundo lugar entre os assuntos mais comentados do X (antigo Twitter) no Brasil no dia 27 de abril, e o primeiro lugar no dia 23 de maio.

No mês de junho, João Pedro Stedile, uma de suas lideranças mais conhecidas, concedeu uma entrevista ao Flow Podcast. Sua participação obteve mais de 240 mil visualizações e, no dia 13 de junho, a hashtag #MSTnoFlow ocupou o terceiro lugar entre os assuntos mais comentados da rede no Brasil.

Deputados com boné do MST durante audiência de João Pedro Stedile na comissão - Pedro Ladeira - 15.ago.23/Folhapress

Stedile foi capaz de transmitir uma imagem positiva a várias pessoas que não conheciam ou possuíam reservas em relação ao movimento. Falas como: "Não conhecia o Stedile, que aula!", e, "Depois dessa entrevista mudei totalmente minha opinião sobre o João Pedro Stedile. Demonstrou ser uma pessoa de muita sabedoria, muita sensatez e muita visão", revelam a tônica dos comentários realizados pela audiência do Flow.

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O amplo apoio às causas defendidas pelo MST não é novo. Em 1963, a maioria dos brasileiros entrevistados pelo Ibope considerava que "a reforma agrária deveria ser feita urgentemente". Mesmo após o golpe de 1964, realizado, em grande medida, para frear tal avanço, a opinião dos brasileiros não se alterou de forma significativa nas décadas posteriores, como aponta uma publicação de 1996 do Cesop (Centro de Estudos de Opinião Pública) da Unicamp.

Hoje, porém, a urgência em realizar a reforma agrária é ainda maior. Além de existirem mais terras improdutivas no país do que há 40 anos, nosso modelo agrário é incompatível não apenas com a igualdade social e a democracia, mas com os atuais desafios ambientais.

A partir dos anos 2000, a preocupação com a natureza se tornou central na luta do MST. Desde então, o movimento se tornou uma das principais referências no país e no mundo em agroecologia, prática tida por muitos especialistas como o único caminho para salvar o planeta de uma catástrofe ambiental.

De acordo com o estudo "Organic Agriculture in the Twenty-first Century", publicado em 2016 na Nature, a agroecologia é capaz de alimentar toda a população mundial de forma eficiente. E isso pode ser feito a partir de pequenas propriedades. Afinal, sem maiores recursos tecnológicos e incentivos do governo, a agricultura familiar já responde por 70% dos alimentos consumidos no Brasil, segundo o IBGE.

A reforma agrária do século 21 é ainda mais urgente do que foi no passado. Não só para os brasileiros, mas para o planeta.