O humanismo é uma expressão de alta credencial em filosofia e em ciências humanas em geral. Termo cunhado a partir do renascimento italiano —nos séculos 15 e 16—, o termo "humanismo" pode ser compreendido, na sua origem e evolução mais imediata, como erudição nos clássicos antigos greco-romanos, traduções, comentários, ensino.
O termo também pode ser compreendido como uma concepção de natureza humana em que esta é vista como possuidora de todos os recursos necessários para realizar o bem e aprender ao longo da vida, sem interferência necessária de Deus. O filósofo francês Henri Gouhier (1898-1994) é uma referência consistente na história desse conceito.
Como pode ser percebido pela rápida síntese acima descrita, o conceito nasce num âmbito europeu de matriz cristã em diálogo com a herança antiga. Dentro da própria filosofia cristã de então, o conceito é filho do processo de superação de uma antropologia filosófica medieval em que o homem era visto como necessariamente portador de uma herança maldita: o pecado original que limitava suas possibilidades de progresso e autonomia. Éramos vistos como seres insuficientes e o humanismo cristão nos elevou a condição de seres suficientes –no jargão dos especialistas no assunto.
Trocando em miúdos, humanismo assumiu o caráter de ser um termo técnico para o otimismo com relação às possibilidades humanas, enquanto anti-humanismo passou a representar uma visão pessimista dessas mesmas possibilidades.
Entretanto, a herança humanista passará por uma transformação radical no século 19. Essa transformação é o objeto da obra "Drama do Humanismo Ateu", na tradução brasileira da editora Ecclesiae, escrita pelo teólogo francês do século 20, o cardeal Henri de Lubac (1896-1991).
Obra de peso, De Lubac apresentará a mutação, na sua opinião catastrófica, que sofre o humanismo a partir de autores como Ludwig Feuerbach (1804-1872) no seu clássico "Essência do Cristianismo", da editora Calouste Gulbenkian.
Mutação esta seguida de perto por autores como Marx, de mais longe como Nietzsche, de forma mais ampla por Auguste Comte –todos no século 19–, entre outros.
Essa mutação consiste em "matar Deus" como causa da condição humana "otimista" ou suficiente, ou, dito de outra forma, a superação de Deus como causa da esperança na vida e suas possibilidades. E, mais do que isso, a ideia de que a crença em Deus atrapalha.
A partir de Feuerbach, o homem é a causa de sua autonomia, felicidade, virtudes, potências, enfim, de um futuro cheio de esperanças. Estamos naquilo que De Lubac nomeará ao longo da sua obra como a "religião da humanidade", inspirado no projeto positivista de Auguste Comte. Qual seria a natureza desse drama do humanismo ateu?
Lembremos que De Lubac começa a se dedicar a essa obra logo após a segunda guerra mundial, o que implica um contexto peculiar para se avaliar a herança de um humanismo europeu crente em si mesmo de forma arrogante e equivocada, pensa De Lubac –devo dizer que sigo De Lubac em sua percepção da catástrofe do humanismo ateu.
De Lubac entende que a aposta do humanismo ateu não se saiu bem. A tentativa comtiana de fundar a felicidade numa religião da humanidade fracassou a olhos nus –hoje, em pleno século 21, este fato parece óbvio.
Ainda que se trate de uma obra para gente grande, o tema diz respeito a todos nós. Mesmo que De Lubac argumente, com razão penso eu, que o humanismo ateu do século 19 fracassou, a religião positivista da humanidade se instalou na cultura do senso comum, dos governos, nas academias, na publicidade, nas novas espiritualidades, nas psicoterapias. Mesmo aqueles que não se vêm como herdeiros de Comte e o consideram até "brega" na sua igreja positivista congregam em sua igreja.
Continuamos a insistir na crença de que há esperança no humanismo. De Lubac apresenta Dostoiévski (1821-1881) como aquele que previu, como um profeta, a vocação do humanismo ateu ao niilismo. Fato consumado este que não percebemos apenas por que o barulho do mundo está muito alto e nossos ouvidos estão perfurados pelo ruído.
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