segunda-feira, 15 de maio de 2023

Quantas calorias você comeu hoje?, Becky S. Korich, FSP

 Era para ser só um sanduíche. Fiquei na dúvida se comia os dois pães ou só um, mas aí deixaria de ser sanduíche. Eu poderia eliminar o miolo (o do pão) e comer as duas cascas com a carne (vegana, é claro), mas viraria um wrap. Pensei em tirar o molho, mas o sanduíche perderia a graça. Por outro lado, só para queimar as calorias do molho eu precisaria de 20 minutos de esteira. Em contrapartida, eu tinha o crédito da batata (doce, é claro) que tinha renunciado no almoço. Tantas conjecturas me deixaram com fome. Eliminei o miolo (o da minha cabeça), engoli as dúvidas, devorei o sanduíche completo, com a batata-doce da geladeira e o molho indigesto das culpas junto.

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Gabriel Cabral - 17.set.21/Folhapress

Não se come mais sem medo, sem culpa, sem calculadora, sem obsessão. O prazer de comer —que era para ser uma bênção— passou a ser uma heresia, a fonte de pecados: é desse tipo de prazer desenfreado que se alimentam a Gula e a Luxuria; é da dieta rigorosa e do culto ao corpo que cresce a Soberba e faz nascer a Inveja; é do apego excessivo à comida que se revela a Avareza; é nas coisas indigestas que engolimos que se fermenta a Ira; é na renúncia ao autocontrole que mora a Preguiça.

Como motriz da nossa energia e sobrevivência, o ato de comer virou uma causa em si, solução e problema, cura e doença. Isso porque alguns vazios pedem muito mais do que o corpo precisa, enquanto outros vazios pedem a falta. Se o prazer de ingerir em excesso não dura muito tempo, o comedimento exagerado tem o seu gosto amargo.

Comer em demasia é o dane-se, o ronco de noite, a promessa descumprida, o prazer bruto, o rosto oleoso, o estrangulamento do estômago, o arrependimento, o suspiro dos sonhos, a suruba das vontades, os gases e o arroto, o moletom, a vergonha, a auto sabotagem, a delícia, o disfarce.

Comer de menos é a negação, o auto sacrifício, o osso que salta, a foto no Instagram, o ronco do estômago, a calça justa, a alface no dente, o narcisismo, a cetose, o espelho côncavo, a chatice, a frivolidade, o anel largo no dedo, o tédio.

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E nessa relação paradoxal que escolhemos renunciar, ou renunciamos escolher, que nos defendemos dos sanduíches que nos atacam diariamente. Enquanto isso, os que não têm o que comer se defendem com o que sobra de nós.


Os Dias das Mães estão contados, Vera Iaconelli, FSP

 Os posts alusivos ao Dia das Mães se dividiram entre buquês de flores e palavras açucaradas, denúncias sobre as condições desumanas a que estão submetidas mulheres e seus filhos e memes impagáveis sobre o tema. Flores e palavras doces são tão verdadeiros e bem-vindos quanto as denúncias e as piadas. De fato, a coisa só funciona se conseguirmos encarar que se trata da combinação desses fatores.

maternidade é dessas experiências que te exigem não menos que tudo: empenho físico, mental e emocional sem direito a férias —muito menos remuneração. Trata-se de projeto que visa o tempo além de nossa existência. Carrega nosso nome para sempre e deixa marcas que serão repisadas justa e injustamente em infindáveis conversas com amigos, irmãos, filhos e analistas. O lado maravilhoso existe e não deveria ser negado, só não é o único.

Presente para o Dia das Mães preparado por floricultura de Pinheiros, na zona oeste de São Paulo - Zanone Fraissat - 9.mai.23/Folhapress

Rousseau foi arauto principal do modelo de sofrência da maternidade compulsória. Ele serviu de inspiração para todas as gerações que o sucederam e para a psicanálise, em especial desde o início do século 20. A psicanálise não se furtou a elevar a maternidade aos píncaros da idealização. Menos por considerar as mães infalíveis —seus defeitos foram contados em verso e prosa psicanalítica— mas por outras razões. Pela centralidade que deu à maternidade no cuidado com os filhos e pelo nível de expectativa que fez pairar sobre seu papel. Algo que poderia ser resumido ao paradoxo: as mães são tudo para o psiquismo, mas nunca estão à altura dessa função.

Não faltou aviso sobre os equívocos de reduzir a mulher à mãe ou idealizar a última. Em 1911 a médica e psicanalista Margarete Hilferding já denunciava a balela do instinto materno.

Mulheres que não desejam ter filhos, que os tiveram e se arrependeram e todas as outras que descobrem no dia a dia como o amor por eles é uma árdua construção estão aí para provar que ela estava certa.

Para começar, mães não são tudo na constituição subjetiva e na formação das crianças. Em segundo, somos o que somos bem antes de nos tornamos mães. Ninguém vira "pokémon evoluído" por parir ou adotar. No máximo lutamos para parecer maduras o suficiente para que os filhos acreditem em nós, enquanto aprendemos como cuidar deles. Quando a tentativa é exitosa, chegamos a acreditar que fomos talhadas para o papel de adultas. Mas nem sempre, nem o tempo todo.

Sobre a mãe não ser tudo, há uma questão que não pode ser ignorada. Metade das mães no Brasil é solo, ou seja, se tornaram "tudo" pela força da situação de falta de opção de ter com quem dividir a imensa responsabilidade. Uma vez que a reprodução humana ainda precisa de dois, a ausência de algum outro responsável pela existência das crianças é, para dizer o mínimo, sintomática.

O tempo das mães pensadas como grupo homogêneo de uma experiência homogênea tem seus dias contados. E não se trata de acreditar que nosso modelo de maternidade tenha se tornado insustentável recentemente. De fato, ele nunca foi grande coisa, passando a execrável com a industrialização. De lá para cá foi só ladeira abaixo.

Há algumas razões para que possamos falar hoje do elefante que está na sala há séculos. Entre elas diria que os fios que puxam nossa culpa rousseauniana se esgarçam cada vez mais, outra diz respeito ao posicionamento das mulheres, em especial das mulheres negras. Os expoentes dessa geração têm denunciado o lugar da maternidade negra, a mais explorada e vulnerabilizada de nossa sociedade. Dando voz a si mesmas, acabam escancarando todo o imaginário maternal que está com seus dias contados.

Feliz Dia das Mães com mimos, algum deboche, mas não sem luta.


domingo, 14 de maio de 2023

BNDES Desenvolvimento, fenômeno microeconômico, Samuel Pessôa. FSP

 O evento econômico mais impactante no século 20 foi a Grande Depressão. Por anos a economia americana conviveu com taxas de desemprego maiores do que 20%.

Em 1936, Keynes revolucionou a economia. Criou um novo campo, a macroeconomia, e estabeleceu as políticas que tirariam as economias daquele equilíbrio ruim. Bastavam políticas fiscal e monetária expansionistas. Solução bem simples.

Como escreveu Krugman no prefácio da edição comemorativa aos 70 anos da publicação da Teoria Geral, a obra magna de Keynes, "Keynes estava certo sobre o problema de sua época: a economia mundial apesentava problema no seu alternador, e tudo o que era necessário fazer para a economia funcionar novamente era um conserto surpreendentemente simples".

Keynes se deparou com talvez o único problema complexo em ciência social que tinha uma solução simples.

Logo do BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento) - Sergio Moraes - 8.jan.2019/Reuters

O sucesso do pensamento keynesiano foi tão avassalador que, ao longo de décadas, desde o pós-guerra até os anos 1980, a academia procurou soluções "keynesianas" –isto é, uma correção técnica e delimitada– para o problema do subdesenvolvimento.

O diagnóstico era que o subdesenvolvimento, assim como o equilíbrio de uma economia com desemprego aberto, era fruto de uma falha de mercado muito aguda, associada a um grave problema de coordenação. Em geral, algo faltava e o planejamento econômico tinha que prover este algo.

O primeiro candidato foi o capital físico. Por décadas o Banco Mundial calibrava seu programa de ajuda para o desenvolvimento das economias mais pobres a partir da quantidade de capital requerida para atingir uma meta de crescimento econômico. O banco ofertava o capital. A longa experiência é que o crescimento nunca vinha. Em geral virava corrupção e guerra.

Tentou-se com educação e o problema neste caso é que colocar criança na escola não é garantia de aprendizado, como sabemos muito bem. E assim sucessivamente. Algo faltava. Vamos ofertar. Ofertava-se e o resultado não aparecia. Esta história é bem contada por William Easterly em "O espetáculo do crescimento", de 2004.

A partir dos anos 1980, muito influenciada pelo novo institucionalismo, liderado pelo historiador Douglass North, a academia passou a enxergar o desenvolvimento essencialmente como um problema de governança, isto é, um problema de alinhamentos de incentivos.

Infelizmente, esse aprendizado não tem chegado por aqui. No ciclo petista passado, o diagnóstico foi de que subdesenvolvimento era falta de coisas. Não temos uma indústria naval? Tome BNDES e subsídio para construir uma indústria naval. Ninguém se pergunta os motivos de não termos uma indústria naval e o que fazer para termos uma indústria naval sustentável.

Aparentemente, o novo governo vai pelo mesmo caminho. As palavras mágicas passaram a ser os setores de transição energética e da indústria ligada à saúde, em função da experiência recente com a pandemia, entre outros itens.

Tudo sugere, portanto, que o diagnóstico é de que os erros do ciclo anterior foram essencialmente de foco. Priorizaram-se os setores errados. Não se pergunta se a governança das políticas adotadas estava correta.

Se os incentivos não estiverem corretos, independentemente de se priorizar este ou aquele setor, a política não funcionará. O sucesso da política depende de o foco estar correto e de o desenho microeconômico alinhar incentivos privados com os sociais.

Nada indica que houve esse aprendizado. Voltaremos a apertar os botões do ativismo desenvolvimentista e a desperdiçar escassos recursos públicos.