domingo, 14 de maio de 2023

Bruno Boghossian Condições ásperas moldam relação de Lula com base à esquerda, FSP

 Lula tem ouvido um certo barulho à esquerda do Palácio do Planalto. Na economia, alas do PT mantêm uma campanha contra o aperto do arcabouço fiscal negociado pela Fazenda com o Congresso. No campo, o MST promete aumentar a pressão sobre o governo pelo avanço de iniciativas de reforma agrária.

O presidente não é um principiante nessa área. Quando a esquerda petista atacou a agenda econômica do primeiro mandato, Lula deu sinal verde para a expulsão de parlamentares da sigla. Com os movimentos sociais, o governo conseguiu uma relação amigável graças à aceleração de políticas públicas e à partilha de cargos na máquina federal.

O novo mandato oferece a Lula circunstâncias mais ásperas de interação com esses setores de sua base. Ainda que o presidente dê passos à esquerda (na plataforma social, na diplomacia e nas escolhas sobre o papel do Estado, por exemplo), as condições políticas e econômicas puxam o governo em outra direção.

Com 40 anos de MST, João Pedro Stedile deu o diagnóstico. Em entrevista a Mônica Bergamo, o líder do movimento disse que o time de Lula demora para atender demandas, criticou a reação negativa de ministros à ocupação de terras pelo grupo e avaliou que a eleição tensa deixou o governo "meio medroso" para enfrentar o que chama de "luta social".

De fato, o quadro político levou Lula a fazer concessões a setores distantes da órbita da esquerda. O governo tem um ministro da Agricultura ligado a grandes produtores e encara com cautela o custo reputacional das invasões do MST.

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Algo semelhante ocorre com Fernando Haddad, que amortece pressões da esquerda na economia. O controle de despesas proposto pelo ministro no arcabouço fiscal foi comparado a um pacto com o diabo pelo deputado Lindbergh Farias (PT).

A própria esquerda, porém, reconhece o valor das concessões. Na entrevista à Folha, Stedile elogiou a agenda de Haddad e chegou a dizer que o ex-tucano Geraldo Alckmin pode ser um bom sucessor para Lula.


Todos os poderes do presidente, Marcus André Melo ,FSP

 O Brasil tem o mais poderoso Poder Executivo do mundo democrático. A afirmação é de Matthew Shugart e John Carey, em Presidents and Assemblies: constitutional design and electoral dynamics, Cambridge, 1992.

Seguiram-se outros trabalhos com foco regional e, invariavelmente, Brasil e Chile têm se alternado nas primeiras posições.

No índice que formularam, distinguem os poderes proativos (áreas de iniciativa exclusiva, etc) dos reativos (veto presidencial, etc). Concluem que há uma relação inversa entre os poderes constitucionais dos presidentes e seus poderes partidários (tamanho e coesão do partido (s) do presidente): quando os constituintes esperam que estes sejam débeis, haverá maior delegação de poderes aos presidentes por receio de ingovernabilidade futura. Foi o que aconteceu em 1988.

Fachada do Congresso Nacional, a sede das duas Casas do Poder Legislativo brasileiro - Pedro França - 5.mai.23/Agência Senado

Muita coisa mudou desde aquele primeiro trabalho pioneiro de mensuração dos Poderes constitucionais. É certo que ocorreram poucas mudanças substantivas nos poderes reativos --nas medidas provisórias e nos poderes orçamentários (orçamento impositivo). No entanto, as relações Executivo-Legislativo sofreram grandes transformações em virtude de alterações estruturais que afetam os demais Poderes.

Os Poderes constitucionais são o núcleo duro de onde deriva a potência do Executivo, mas obviamente outras variáveis importam: o poder partidário, o estilo de gerenciamento da coalizão; e outras de natureza contextual: sua popularidade, o estado da economia, o timing do mandato (lua de mel versus pato manco).

Entre as transformações recentes que alteraram marcadamente a relação Executivo-Legislativo está a reforma política de 2017 e o fim do financiamento empresarial de campanhas. Este choque no sistema foi a resposta institucional ao mensalão e ao petrolão. A criação do fundo eleitoral em valores sem paralelo em qualquer democracia alterou de forma radical a dependência dos partidos --e consequentemente do Legislativo-- em relação ao Poder Executivo.

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Outra mudança seminal também já discutida na coluna são as transformações no Poder Judiciário.

Há duas variáveis de escolha na decisão presidencial quanto à sua coalizão: seu tamanho e heterogeneidade --a amplitude ideológica de sua base-- a qual tem importância decisiva para a congruência entre a coalizão e o congresso como um todo. Entre um presidente que delega para a mediana da distribuição de preferências políticas do Congresso e um que tenta impor unilateralmente sua agenda há um continuum de posições intermediárias. Se o Congresso se deslocou à direita, e o portfólio ministerial e as iniciativas de políticas de governo não refletem isso, haverá custos consideráveis.


sexta-feira, 12 de maio de 2023

O teto de dívida nos EUA e o teto de gastos no Brasil, Rodrigo Zeidan ,FSP

 Enquanto o governo brasileiro anterior rasgou o teto de gastos, os americanos podem criar algo muito parecido na batalha para aumentar o limite da dívida pública. A proposta, aprovada na Câmara dos Deputados por 217 a 215 votos, determina que os gastos discricionários do governo federal voltem ao montante de 2022 e aumentem somente a uma taxa de 1% ao ano daqui para a frente.

Esse teto de gastos se somaria ao teto da dívida, criado em 1917 para que o governo americano pudesse se endividar durante a Primeira Guerra Mundial (antes, qualquer emissão de títulos era determinada pelo Legislativo). O Congresso manteve, contudo, a prerrogativa de decidir o montante da dívida. No momento, esse limite está em US$ 31,4 trilhões e foi atingido há poucas semanas. Ou seja, o governo central americano está impedido de pedir dinheiro emprestado. Se a grana que estiver no caixa acabar, o resultado é simples: calote. E pior, para todo mundo, de investidores até funcionários públicos.

No passado, o governo americano já teve que atrasar salários por causa de negociações frustradas para aumentar o teto, mas ninguém classificou isso como calote, pois o Legislativo acabou votando pelo aumento do teto antes de o governo federal americano não poder pagar juros da dívida ou seus fornecedores.

Mas qual a função de um teto de dívidas (ou de gastos), criado no passado por outra razão, se ele pode causar uma crise constitucional ou financeira hoje? É forçar a coordenação entre Congresso, Executivo e o Federal Reserve (Fed), banco central. É o uso de um mecanismo legal para que o executivo não possa tomar decisões de gastos de forma unilateral, limitando também as ações do Fed sobre política monetária. No Brasil, já tivemos Banco Central validando a farra de gastos públicos do Executivo, seja mantendo taxas de juros muito baixas, seja imprimindo dinheiro indiretamente. O teto força que Congresso e o Executivo cheguem a um acordo sobre o Orçamento para que se vote pelo aumento da dívida pública.

Joe Biden fala sobre a dívida pública dos EUA em evento em Valhalla (Nova York - Kevin Lamarque - 10.mai.23/Reuters

No fundo, essa era também a ideia do teto de gastos no Brasil, desmilinguido pelo governo anterior. Com regras claras, a alocação das receitas públicas teria que ser negociada. Aumento de gastos com funcionários públicos? Vai ter que tirar de outro lugar. Para militares? Menos recurso para outra área. É essa batalha pelo Orçamento americano em curso no momento. Republicanos querem, em troca de votos para aumentar o teto, cortes em partes do Orçamento que eles consideram "desperdício" de dinheiro, como créditos para programas de energias renováveis, além do tal teto de gastos discricionários.

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No caso dos EUA, há uma questão adicional. A 14ª emenda estabelece que a validade da dívida pública dos Estados Unidos, autorizada por lei, não pode ser questionada. Ou seja, um calote da dívida é ilegal.

Pela primeira vez, o presidente americano pode buscar outra alternativa que não o acordo com o Legislativo, usando a ideia de ilegalidade do calote como forma de aumentar o teto das dívidas na Justiça. Mas isso tornaria o sistema político americano ainda mais polarizado. Uma democracia funciona melhor quando Congresso e Executivo sentam para negociar para o bem do país. Sabemos em que dá um presidente que passa por cima do Congresso: populismo.

O processo de latino-americanização dos EUA continua de vento em popa. E isso pode não acabar bem, seja para eles, seja para o resto do mundo.