Enquanto o governo brasileiro anterior rasgou o teto de gastos, os americanos podem criar algo muito parecido na batalha para aumentar o limite da dívida pública. A proposta, aprovada na Câmara dos Deputados por 217 a 215 votos, determina que os gastos discricionários do governo federal voltem ao montante de 2022 e aumentem somente a uma taxa de 1% ao ano daqui para a frente.
Esse teto de gastos se somaria ao teto da dívida, criado em 1917 para que o governo americano pudesse se endividar durante a Primeira Guerra Mundial (antes, qualquer emissão de títulos era determinada pelo Legislativo). O Congresso manteve, contudo, a prerrogativa de decidir o montante da dívida. No momento, esse limite está em US$ 31,4 trilhões e foi atingido há poucas semanas. Ou seja, o governo central americano está impedido de pedir dinheiro emprestado. Se a grana que estiver no caixa acabar, o resultado é simples: calote. E pior, para todo mundo, de investidores até funcionários públicos.
No passado, o governo americano já teve que atrasar salários por causa de negociações frustradas para aumentar o teto, mas ninguém classificou isso como calote, pois o Legislativo acabou votando pelo aumento do teto antes de o governo federal americano não poder pagar juros da dívida ou seus fornecedores.
Mas qual a função de um teto de dívidas (ou de gastos), criado no passado por outra razão, se ele pode causar uma crise constitucional ou financeira hoje? É forçar a coordenação entre Congresso, Executivo e o Federal Reserve (Fed), banco central. É o uso de um mecanismo legal para que o executivo não possa tomar decisões de gastos de forma unilateral, limitando também as ações do Fed sobre política monetária. No Brasil, já tivemos Banco Central validando a farra de gastos públicos do Executivo, seja mantendo taxas de juros muito baixas, seja imprimindo dinheiro indiretamente. O teto força que Congresso e o Executivo cheguem a um acordo sobre o Orçamento para que se vote pelo aumento da dívida pública.
No fundo, essa era também a ideia do teto de gastos no Brasil, desmilinguido pelo governo anterior. Com regras claras, a alocação das receitas públicas teria que ser negociada. Aumento de gastos com funcionários públicos? Vai ter que tirar de outro lugar. Para militares? Menos recurso para outra área. É essa batalha pelo Orçamento americano em curso no momento. Republicanos querem, em troca de votos para aumentar o teto, cortes em partes do Orçamento que eles consideram "desperdício" de dinheiro, como créditos para programas de energias renováveis, além do tal teto de gastos discricionários.
No caso dos EUA, há uma questão adicional. A 14ª emenda estabelece que a validade da dívida pública dos Estados Unidos, autorizada por lei, não pode ser questionada. Ou seja, um calote da dívida é ilegal.
Pela primeira vez, o presidente americano pode buscar outra alternativa que não o acordo com o Legislativo, usando a ideia de ilegalidade do calote como forma de aumentar o teto das dívidas na Justiça. Mas isso tornaria o sistema político americano ainda mais polarizado. Uma democracia funciona melhor quando Congresso e Executivo sentam para negociar para o bem do país. Sabemos em que dá um presidente que passa por cima do Congresso: populismo.
O processo de latino-americanização dos EUA continua de vento em popa. E isso pode não acabar bem, seja para eles, seja para o resto do mundo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário