sábado, 8 de outubro de 2022

Langoni, a verdade da direita, FSP

 Morreu de Covid, há uma semana, aos 76 anos, o economista Carlos Geraldo Langoni.

Langoni é responsável por dois dos melhores trabalhos em economia aplicada sobre o Brasil de todos os tempos: sua tese de doutoramento defendida em Chicago e publicada no Brasil em 1974, "As Causas do Crescimento Econômico do Brasil", e seu trabalho mais conhecido, um clássico, "Distribuição de Renda e Crescimento Econômico do Brasil", cuja primeira edição é de 1973.

Empregando a definição do cientista político italiano Norberto Bobbio, a diferença entre esquerda e direita seria "uma maior sensibilidade [da esquerda] para diminuir as desigualdades". Podemos inferir que, para Bobbio, a esquerda está disposta a pagar o preço de menor crescimento se for efeito colateral de medidas que reduzam a desigualdade.

O economista Carlos Geraldo Langoni, que morreu no dia 13 de junho em decorrência de complicações da Covid-19 - Zeca Guimarãe - 17.mar.1996/Folhapress

Essa distinção entre esquerda e direita é normativa, refere-se a diferentes desejos de construção de uma sociedade. Sempre achei a definição de Bobbio pouco interessante. Acho que, por ela, 95% do Congresso se autodenominará de esquerda.

A distinção interessante entre esquerda e direita é de natureza positiva. São diferentes visões de como as sociedades funcionam. Para a esquerda, pobreza, desigualdade e crescimento econômico são resultado das relações sociais ou internacionais. Para a direita, são realidades intrínsecas aos indivíduos ou aos países.

No entanto, a vida é complicada, e, como nos ensinou Aristóteles, em geral, a verdade está em algum ponto no meio do caminho.

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O baixo investimento em educação observado nas décadas de 1930 até 1980 explica muito de nosso subdesenvolvimento. Isso não impede que pobreza e desigualdade tenham dimensões relacionais.

Por exemplo, fazem todo sentido políticas públicas de estímulo a mecanismos de contratação --no setor público e privado-- que sejam impessoais e independentes das cadeias de amizades e conhecimento pessoal. Analogamente, justificam-se políticas públicas que estimulem a maior participação de negros em meios de comunicação, em razão da importância dessa presença na formação das identidades individuais.

Langoni mostrou-nos que a taxa de retorno do investimento em educação, 28% ao ano, era superior ao investimento em capital físico, de 16%. O retorno era ainda maior se o foco da política educacional fosse o primeiro ciclo do fundamental, o antigo primário, cuja taxa de retorno era de 32% em 1960. O crescimento aumentaria se priorizássemos a educação fundamental.

No trabalho sobre as causas da piora da distribuição de renda entre 1960 e 1970, Langoni mostrou que havia forte correlação entre o aumento da desigualdade no período e o aumento do retorno da educação. Se empregarmos como medida de desigualdade a variância da renda, 35% da piora da desigualdade observada na década de 1960 foi fruto da elevação da desigualdade educacional, e 23%, de alterações da renda associada aos diversos níveis educacionais.

Langoni empregou a melhor base de dados e a melhor estatística disponível à época. Como escreveu Delfim Netto no prefácio, "a pesquisa do professor Langoni está aqui para ser superada".

Uma crítica pertinente aos trabalhos de Langoni é que haver associação estatística entre duas variáveis não significa que uma seja causa da outra. É perfeitamente possível a elevação dos retornos à educação ter sido causada pelas políticas de contenção do salário mínimo dos trabalhadores desqualificados urbanos na década de 1960.

Mas vale lembrar que, em 1960, a inflação era alta e crescente. Em 1970, era baixa e decrescente. A política de salário mínimo contribuiu para esse resultado. Fica a pergunta: qual teria sido a desigualdade em 1970 se não tivesse havido o combate à inflação?


Samuel Pessôa A verdade da esquerda, FSP

 Em um artigo publicado em 2014, um grupo de economistas, entre eles Raj Chatty, professor da Universidade Harvard, mostrou que as possibilidades de mobilidade social variam muito entre diferentes regiões geográficas nos Estados Unidos. Isto é, há locais em que os filhos de pais pobres ascendem socialmente, enquanto noutros isso não acontece.

Em um outro trabalho, publicado dois anos depois, Chatty e seus colaboradores mostraram que as famílias que se mudam para regiões onde há maior mobilidade social —e que o fazem quando os filhos têm ainda menos de 13 anos— vêm seus filhos se beneficiar do novo ambiente.

Essas crianças, quando adultas, terão em média renda maior do que a de outros adultos nascidos em áreas de baixa mobilidade social cujos pais, no entanto, nunca saíram de lá.

Fila na entrada da Ceagesp para doação de frutas e verduras para a população - Danilo Verpa - 21.ou.2021/Folhapress

No trabalho original, de 2014, os autores mostravam ainda que há um grupo de características tipicamente associadas às regiões em que a probabilidade de ascensão social dos filhos de pais pobres é maior.

Essas áreas de maior oportunidade e de maior mobilidade têm uma "cara". São comunidades menos segregadas, com menor desigualdade, onde as escolas são melhores. Nelas há uma quantidade menor de famílias monoparentais, menores índices de maternidade entre adolescentes e maiores índices de capital social —algo que pode ser medido, por exemplo, por meio da participação em trabalhos sociais ou em igrejas.

A princípio não é possível determinar uma relação de causalidade específica entre essas características e a maior mobilidade. Parecia ser um pacote em que todas as variáveis se correlacionavam.

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Ocorre que a busca por essa espécie de "fórmula do sucesso" das regiões de maior oportunidade para as crianças pobres acaba de ganhar um novo capítulo. No fascículo de agosto da prestigiosa revista científica Nature, Chetty e um grande número de colaboradores (mais de 20) publicaram um novo artigo sobre o tema, intitulado "Capital social 1: medida e associação com mobilidade econômica". E dessa vez encontraram uma variável fortemente correlacionada às diferenças de probabilidade de ascensão social dos filhos das famílias pobres nas diversas regiões. Quando levavam em consideração essa variável, todas as demais descritas no parágrafo anterior deixavam de ser relevantes.

Qual o segredo? As regiões dos EUA em que os filhos de pobres ascendem socialmente são aquelas em que as crianças pobres convivem com crianças pobres, mas também com crianças ricas. Há, na linguagem dos autores, conexão entre as classes de renda.

Não é possível saber por qual mecanismo exatamente a convivência entre classes socais eleva a chance de mobilidade dos filhos das famílias mais pobres. Deve haver inúmeros mecanismos. Segundo os autores, esse é um tema para trabalhos futuros.

Um possível mecanismo pode estar nas oportunidades que boas conexões conseguem gerar. Em um trabalho publicado em 2021 na American Economic Review, documentou-se que famílias ricas do Sul dos Estados Unidos que haviam perdido muita riqueza durante a Guerra Civil e logo depois, com o fim do escravismo, isto é, entre 1860 e 1870, em 1940 já haviam recuperado integralmente sua posição social. E o mecanismo desse processo provavelmente estava nas conexões sociais, fosse por casamento, fosse pelo acesso a melhores oportunidades.

Como intuitivamente bem definiu o ministro da Saúde Adib Jatene nesta Folha, em dezembro de 2007, "o grande problema do pobre não é ele ser pobre, é que o amigo dele também é pobre! Ele não tem amigo que fale com quem decide, que marque uma audiência, que o ajude a elaborar um projeto, que negocie financiamento".

Os achados recentes da academia indicam acerto na intuição do ministro. Há uma dimensão supraindividual na determinação da pobreza. Essa é a verdade da esquerda.

Observação: esta coluna faz par com a de 19 de junho do ano passado intitulada "Langoni, a verdade da direita".