domingo, 17 de julho de 2022

PF mira compra de ouro de terras indígenas por grupo que movimentou R$ 16 bi, FSP

 

BRASÍLIA

Polícia Federal mira o comércio ilegal de ouro extraído de terras indígenas, segundo os autos de um inquérito sobre a atuação ilegal de mineradoras na região Norte do país.

Investigadores suspeitam que empresários usem um garimpo nas proximidades de Itaituba, no Pará, para "esquentar" minério retirado de território yanomami. Há indícios, segundo a Polícia Federal, de que a prática inclua produto extraído de outras reservas ambientais na região amazônica. Entre elas, terras indígenas no Pará, Roraima e Rondônia.

A apuração é parte das três operações deflagradas no início do mês contra a mineradora Gana Gold, atual M.M.Gold. Ela tem como sócios os empresários Márcio Macedo e Domingos Zoboli.

O grupo é suspeito de burlar os limites de uma licença concedida pela administração pública em 2020. De posse de um documento que permitia apenas a realização de pesquisas sobre a existência de minério no terreno, eles teriam extraído toneladas de ouro ilegalmente.

No total, a PF estima que as empresas envolvidas no caso movimentaram cerca de R$ 16 bilhões entre 2019 e 2021.

À Folha, o advogado Arthur Mendonça Vargas Junior, responsável pela defesa da Gana Gold, disse que analisa as informações do inquérito e que se manifestará ao término da apuração policial.

Área de garimpo na região de Itaituba (PA) explorada pela Gana Gold, atual M.M Gold. (Foto: Divulgação/ Policia Federal)

No caso do ouro proveniente da terra yanomami, em Roraima, a suspeita da PF começou após a análise das transações relacionadas ao grupo econômico liderado por Macedo e Zoboli. As informações financeiras mostram uma relação entre a Gana Gold e o também empresário Rodrigo Martins de Mello.

Mello é suspeito de comandar a operação logística que garante a exploração ilegal de ouro na terra yanomami. Como mostrou a Folhao grupo liderado por ele movimentou R$ 200 milhões em dois anos.

Ele é pré-candidato a deputado federal pelo PL, partido do presidente Jair Bolsonaro, e passou a coordenar um movimento de garimpeiros em Roraima que tenta legitimar a atividade criminosa no território yanomami.

No período analisado pelos investigadores foram mapeados ao menos R$ 2 milhões em transferências da Gana Gold para Mello.

Além dessas transações diretas entre Mello e a empresa, a PF também encontrou 46 transferências da empresa para GG Travassos que, por sua vez, repassou valores a Tarp Táxi Aéreo.

Segundo a PF, Gabriel Travassos, sócio da GG, seria um intermediário da Gana Gold na compra do ouro extraído de garimpos não autorizados.

A Tarp, por sua vez, tem Mello entre os donos e é uma das empresas que mantêm contratos milionários assinados com o governo federal. Entre 2016 e 2018, a empresa recebeu R$ 29,1 milhões dos cofres da União.

Outras duas empresas de Mello, a Cataratas Poços Artesianos e a Icaraí Turismo Táxi Aéreo, receberam R$ 39,5 milhões do governo federal desde 2014. A maior fatia —R$ 23,5 milhões à Icaraí— no governo Bolsonaro.

Além das transações com as empresas de Mello, a PF também recebeu informações do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) sobre as transações da Gana Gold com firmas sediadas em Roraima, onde fica a terra indígena yanomami. No total, diz a PF, esses repasses somam R$ 18,9 milhões.

A operação para "esquentar" ouro, como o que teria origem na terra yanomami, funciona da seguinte forma: autorizada pelo poder público a explorar determinada área, a empresa passa a minerar em garimpos clandestinos ou locais proibidos, incluindo terras indígenas.

O ouro extraído ilegalmente desses locais não permitidos é declarado à ANM (Agência Nacional de Mineração), órgão regulador do setor, como se fosse de área autorizada.

A declaração sobre a quantidade extraída dificilmente é submetida a algum tipo de controle ou fiscalização e, com isso, a origem ilícita é camuflada.

Para reforçar a aparência de legalidade, a empresa realiza inclusive o recolhimento da parcela da CFEM, uma contraprestação paga pela mineradora à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios.

No final da operação, o ouro é inserido na economia formal. Os investigadores se referem a essa operação como "esquentamento" do minério.

De acordo com os autos da Operação Ganância, os indícios de que isso pode ter ocorrido surgiram a partir da análise da quantidade de metal comercializado pela empresa e declarado como de origem no garimpo no Pará.

A Gana Gold tinha previsão inicial de retirar 96 quilos por ano do garimpo próximo a Itaituba, segundo a guia de utilização emitida pela ANM.

Em um ano e cinco meses, entre 2020 e 2021, a produção deveria ser de aproximadamente 161 quilos. A empresa registrou comércio de um total de quatro toneladas (2.380% a mais).

"Existe intensa atividade no local que claramente supera a de mera pesquisa, havendo inclusive movimentação expressiva de caminhões", afirmou a PF no inquérito.

Para ilustrar a suspeitas levantadas contra o grupo empresarial, a PF anexou aos autos fotos aéreas de uma área de aproximadamente 192 hectares.

Imagens mostram trechos de mata devastada. Na área foram construídos barracos, galpões e outras estruturas utilizadas para exploração do local. O registro fotográfico revela também a existência de um lago de rejeitos, outro indício da atividade exploratória.

A polícia estima em R$ 300 milhões o impacto ambiental causado pela atuação do grupo suspeito na região de Itaituba, considerando o desmatamento, assoreamento de cursos d’água e contaminação por mercúrio.

Garimpo: Márcio Macedo aparece em foto com caminhonete importada. (Foto: Divulgação/ PF)

​O dinheiro obtido com a venda do ouro, segundo os investigadores, era lavado em uma rede de padarias, investimento em criptomoedas, imóveis de luxo, caminhonetes e aeronaves.

Conforme mostrou reportagem da Folhaum dos suspeitos, o empresário Márcio Macedo, sócio da Gana Gold, esbanjava uma vida de luxo.

Informações colhidas pela PF revelaram movimentações milionárias em suas contas e gastos com helicópteros, lanchas, caminhonete importada e uma festa de casamento embalada ao som de duplas sertanejas famosas.

Relatório da PF expõe a movimentação financeira de Macedo e de seu grupo empresarial e mostra que, entre os anos de 2020 e 2021, a exploração ilegal de ouro rendeu cerca de R$ 1,1 bilhão ao investigado.


PF MIRA COMPRA DE OURO EM TERRAS INDÍGENAS

De onde a PF suspeita que vem o ouro esquentado no Pará

  • Território indígena Yanomami, em Roraima

  • Territórios indígenas no Pará

Como funciona o "esquentamento" do ouro

  • A empresa obtém título que autoriza pesquisa ou extração do minério em determinada área

  • O titular da autorização passa a minerar em garimpos clandestinos ou locais proibidos (terras indígenas, por exemplo)

  • O ouro extraído ilegalmente de locais não autorizados é declarado à Agência Nacional de Mineração, órgão regulador do setor, como se fosse da área permitida

  • A declaração sobre a quantidade extraída dificilmente é submetida a algum tipo de controle ou fiscalização e, com isso, camufla a origem ilícita

  • Para reforçar a aparência de legalidade, a empresa realiza inclusive o recolhimento da parcela do CFEM (compensação financeira pela exploração de recursos minerais)

  • O ouro é inserido na economia formal

Exemplo de esquentamento apontado pela PF na Operação Ganância

  • A Gana Gold tinha previsão inicial de retirar 96 quilos de uma determinada área no Pará, segundo a guia de utilização emitida pelo poder público

  • Em um ano e cinco meses, a produção deveria ser de aproximadamente 161 quilos

  • A empresa registrou comércio de um total de quatro toneladas (2.380% a mais)

Como os alvos da PF lavavam o dinheiro

  • Investimento em criptomoedas

  • Imóveis de luxo

  • Caminhonetes importadas

  • Aeronaves

  • Rede de padarias

  • Empresa setor saúde

Quando deixamos de entender o mundo, Candido Bracher, FSP

 "Quando Deixamos de Entender o Mundo" é o título de um fascinante romance de não ficção do escritor chileno Benjamin Labatut.

Em cinco episódios independentes, em que personagens reais e fatos verídicos são enriquecidos com a imaginação do autor, são expostas as intrincadas ligações entre a criação científica, por um lado, e a beleza, a loucura e a guerra, por outro. Somos apresentados a cientistas que exploraram os limites do conhecimento em suas épocas, como Einstein, Schwarzschild, Schrödinger e Heisenberg, entre outros, e aprendemos como pode ser desestabilizadora a descoberta científica quando revela fatos que acentuam a nossa incapacidade de compreender o mundo.

Li o livro há alguns meses, mas nos últimos dias o seu título me voltou repetidas vezes à mente. Certamente não por eu me perguntar sobre o funcionamento dos buracos negros, ou buscar entender os princípios da mecânica quântica; não me aventuro a tanto. Minha incapacidade presente de compreender o mundo está ligada a fatos muito mais simples e observáveis a olho nu. Isso é o que mais incomoda.

A ilustração de Luciano Salles, publicada na Folha de São Paulo no dia 17 de julho de 2022, retrata querubim caindo de costas do seu voo. O anjo tem a cor marrom claro, cabelos cacheados marrom mais escuros. Na queda vemos a asa direita cortada em sua base e a perna esquerda cortada e separada na altura da canela. O anjo cai por entre nuvens avermelhadas
Ilustração de Luciano Salles - Folhapress

Sinto-me como Chauncey Gardiner, o personagem interpretado pelo genial Peter Sellers no filme "Muito Além do Jardim". Ele é uma pessoa limítrofe, que viveu em completa reclusão até a meia-idade, ocupando-se de cuidar do jardim e tendo na televisão seu único meio de contato com o mundo externo. Obrigado a confrontar a vida real, quando é expulso da casa pelos advogados do seu falecido patrão, vê-se diante de uma gangue de adolescentes em um subúrbio americano. Ameaçado com um canivete, ele saca do bolso o controle remoto da televisão e o aponta para o grupo, procurando mudar a cena.

Tento o mesmo, mas meu controle remoto tampouco funciona.

Acredito ser natural nas pessoas, seja por necessidade psíquica, seja por fundamentos reais, o desenvolvimento de uma concepção evolutiva do homem e da sociedade. A embasar essa crença, está desde a imagem conhecida e onipresente da "evolução", mostrando as figuras que vão do macaco ao homem que caminha ereto até as "frisas do tempo’’, que aprendemos a fazer no primário ("fundamental", para os mais jovens), em que a pré-história, a escravidão, a servidão feudal vão se seguindo, passando pelos descobrimentos, o Renascimento e a Revolução Industrial, até desaguarem nas democracias modernas dos nossos dias.

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No nosso próprio tempo de vida, vimos distanciarem-se as sombras das grandes guerras do século passado, a chegada do homem à Lua, a integração crescente das mulheres e a conscientização em relação às minorias em geral e os progressos tecnológicos que facilitam a comunicação e a informação. É natural que acreditemos no progresso e em uma tendência à busca do entendimento, às soluções negociadas e ao equilíbrio democrático, ao menos no nosso mundo ocidental. Como essa crença nos convém, podemos até desprezar elementos que apontem em sentido contrário, considerando-os casos excepcionais, exceções que justificam a regra.

Mas ultimamente a exceção tem-se tornado regra. Somos parte de um mundo que assiste praticamente inerte às crescentes evidências das consequências trágicas do aquecimento global. Diante das previsões cada vez mais precisas e incontestadas da ciência, comportamo-nos como o sapo na panela, atribuindo ao outro a responsabilidade que é de todos. Como o entendimento global é muito complicado, fingimos que o problema não existe.

Nos EUA, a inacreditável invasão do Capitólio só é menos chocante que as previsões do provável retorno do seu fomentador nas próximas eleições presidenciais. Nas últimas semanas, três decisões da Suprema Corte anulando o direito ao abortoliberando o porte de armas em público e cerceando a agência ambiental americana dão a impressão de que o projetista reverteu o filme da história.

Nas Filipinas, como uma assombração de além-túmulo, volta o nome de Ferdinand Marcos, caricatura perfeita do ditador corrupto. Os jornais nos dão conta de que a eleição de seu filho foi amparada em uma série intensa de fake news, comprovando uma vez mais o princípio de Goebbels, de que uma mentira dita mil vezes torna-se verdade.

Na Europa —que, após a Segunda Guerra, ergueu-se para dar ao mundo os belos exemplos da queda do Muro de Berlim, a reunificação alemã e a consolidação da União Europeia, onde o respeito às diferenças de língua e cultura faz a força do bloco—, assistimos pasmos à volta da guerra de grandes proporções. Ao menos nesse caso, nos conforta que, com a perspectiva do ingresso da Suécia e da Finlândia na Otan e o convite à Ucrânia e a Moldova para integrar a UE, a aventura de Putin pareça repetir a lógica das tragédias gregas, como a de Édipo, quando a ânsia de escapar ao futuro temido acaba por precipitar o personagem no abismo do qual queria fugir. A Otan será mais forte após a guerra, e o futuro de Putin é incerto. Mas isso não trará de volta os milhares de vítimas desse confronto anacrônico.

Na América Latina, uma sequência de eleições polarizadas entre posições aparentemente inconciliáveis mostra a deterioração da democracia no subcontinente, em vez da consolidação que há alguns anos parecia assegurada. A fragilidade crescente dos partidos políticos e o efeito disfuncional das redes sociais tornam difícil a formação de maiorias que possam garantir a implementação de políticas sustentáveis que levem ao crescimento econômico e ao desenvolvimento social.

No nosso Brasil, temos diante de nós uma eleição presidencial na qual os dois candidatos que lideram as pesquisas são, para tomar por empréstimo a frase de Laurentino Gomes, "de um lado, um sujeito que namora a ditadura, com sua linguagem grosseira. De outro, uma esquerda com cheiro de naftalina". Ainda há tempo para construir uma alternativa que represente os ideais de união e concórdia.

Entre todas, a imagem que mais dói projeta-se em minha mente repetidas vezes. No rio Itaquaí, cercados pela floresta amazônica, dois homens seguem em uma pequena lancha, pouco antes de serem emboscados e assassinados. Aos meus olhos, são defensores da floresta e de seus povos, mas ouço o responsável último pela segurança no país dizer com descaso que fazem uma "aventura não recomendável". Não estou certo de querer entender este mundo.


Hélio Schwartsman - Precisamos de um STF?, FSP

 Espero que o STF não mande me prender. É que hoje vou falar de um autor que defende o fechamento desta corte. Aliás, de todas as cortes constitucionais. Trata-se de Richard Bellamy, professor de ciência política do University College London. Eu não o conhecia. Quem me chamou a atenção para ele foi meu filho David, entusiasmado com a ideia.

David não é um bolsonarista feroz. Muito pelo contrário, é um jovem estudante de filosofia e, como tal, não resiste ao prazer estético de sistemas que não dependam de valores exógenos. Bellamy propõe um desses. Está em um capítulo de livro: "Republicanism, democracy, and constitutionalism" in "Republicanism and Political Theory".

A ilustração de Annette Schwartsman, publicada na Folha de São Paulo no dia 17 de julho de 2022, mostra, sob um fundo rosa choque, um grande malhete -típico martelo de madeira usado pelos juízes- prestes a golpear uma edificação em estilo neoclássico que lembra um tribunal.
Ilustração de Annette Schwartsman para a coluna de Hélio Schwartsman de 17 de julho de 2022 - Annette Schwartsman

A ideia é simples. A democracia funciona não porque produza bons resultados ou nos aproxime da vontade geral. Ela funciona porque é vista como um processo justo de produzir soluções políticas. Pessoas discordam legitimamente umas das outras. Nessas ocasiões, é razoável que se decida a contenda pelo voto. Quando aceitamos esse processo, em que cada indivíduo é tratado com igual consideração, evitamos a violência política.

E isso basta. Não precisamos de mais do que essa regra para chegar às soluções políticas. Não obstante, quase todos os países escrevem uma Carta e criam cortes constitucionais encarregadas de atuar como árbitros finais, com o poder de invalidar leis.

O ponto de Bellamy é que os magistrados constitucionais não são melhores do que ninguém. Eles padecem dos mesmos vieses das pessoas comuns e, quando discordam entre si, resolvem o impasse pelo voto. Ora, se é para resolver pela pluralidade, melhor que sejam os representantes eleitos, não uma elite sem voto. Segundo o autor, o risco de a maioria usar o poder do Estado para explorar uma minoria é, na prática, menor do que parece.

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Bellamy não me convenceu muito. Ainda tenho medo da tirania da maioria. Mas suas ideias merecem consideração.