quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Fernanda Torres Torcemos o nariz para o hijab, mas aceitamos a tortura do salto alto, FSP

 

Um mês longe de casa, sem nenhuma menção do Brasil no noticiário internacional, a não ser por uma breve imagem de Messias, num programa sobre as ameaças globais ao meio ambiente.

A distância, acompanhei a falsa polêmica sobre o racismo reverso nos jornais. Chamo de falsa porque é impossível separar a vergonhosa desigualdade social brasileira de sua herança escravocrata, bem como comparar a animosidade inerente às tribos humanas com as sequelas nefastas de uma política de séculos de escravização em massa.

Leis de acesso à educação, à saúde, à habitação, ao transporte e ao saneamento devem englobar gregos e troianos. Mas a carência geral não impede que, em paralelo, se discuta o preconceito evidente e a imensa dívida do país para com os descendentes de africanos escravizados.

Ilustração representando uma mulher com um quadro e um pincel na mão imaginando uma mulher de vestido curto conversando com outra de burca
Publicada nesta quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022 - Marta Mello

O setor audiovisual, do qual faço parte, é prova de que o racismo estrutural existe. Para quem duvida, aconselho assistir ao documentário "A Negação do Brasil", de Joel Zito Araújo, disponível no YouTube, sobre a representação dos negros nas telenovelas brasileiras.

Em 1968, Geraldo Vietri, autor da novela "Antônio Maria", acreditou ter mudado a mentalidade do brasileiro para com as empregadas domésticas, por meio da personagem Maria Clara, vivida pela atriz Jacira Silva.

Num depoimento para a câmera, uma radiante Maria Clara desabafou no horário nobre: "Eu quero ficar nessa casa porque aqui eu sou criada, sim, mas sou tratada como gente. A dona Carola, outro dia, até me beijou! No dia do meu aniversário, eles me deram presente como se eu fosse uma pessoa da família. [...] Na cor, nós somos diferentes, no coração, não".

A primeira empregada doméstica negra de sucesso da telenovela mereceu um final romântico, casando-se na igreja com um oficial das Forças Armadas. Emocionado, o noivo confessou, mirando a lente, que amava a mulher. "O que importa ela ser de cor, se a alma dela é branca e pura?"

Em "Escrava Isaura", de 1976, os trabalhadores alforriados de uma fazenda rodearam os branquíssimos Edwin Luisi e Lucélia Santos para agradecer de joelhos a liberdade concedida. E, em 1980, nos bastidores de "Água Viva", Bob Marley perguntou onde estavam os negros, antes de dar uma canja na festa da louríssima milionária Stella Simpson.

Foi só em 1994 que, numa atitude inédita, uma entidade ligada ao movimento negro de São Paulo acusou a Globo e Gilberto Braga, produtora e autor da novela "Pátria Minha", de terem levado ao ar uma cena que não refletia o comportamento do negro na sociedade brasileira.

A maneira submissa com que o personagem Kennedy reagiu à acusação infundada do patrão mau caráter, Raul Pellegrini, de que ele havia arrombado o cofre da mansão foi o estopim da indignação.

Os autores do folhetim apelaram para o direito à liberdade de expressão, mas acabaram por reconhecer a infelicidade da cena. Quatro dias depois, um diálogo reparatório sobre o racismo, entre Kennedy e a mãe, foi transmitido via Embratel.

A acusação de que os movimentos negros brasileiros se curvaram à visão americana de raça, fruto da política do "one drop", pode até ser discutida. Possuímos, de fato, uma experiência única de miscigenação, que poderia oferecer algo de diverso ao mundo, não tivesse o mito da democracia racial tupiniquim servido para escamotear nosso racismo arraigado.

Numa hora de radicalidade irrestrita, a sutileza e o diálogo parecem ter cedido à incapacidade de escuta e à agressividade. É preciso estar atento às raras tentativas de expressar o que temos de comum e contraditório.

A New Yorker Classics de janeiro traz um artigo de 2016, da escritora americana Elif Batuman, intitulado "A Head Scarf", ou um lenço de cabeça. Filha de pesquisadores turcos imigrados para os Estados Unidos nos anos 1970, Batuman procura expressar a zona cinza que envolve as questões de raça, gênero, religião, liberdade e cultura, ao descrever o sentimento controverso que a cometeu ao portar o hijab —lenço que cobre a cabeça das mulheres muçulmanas—, numa visita à Turquia de Erdogan.

A autora se refere aos turcos laicos ocidentalizados como brancos e aos seguidores do Alcorão como pretos, discorrendo sobre a inesperada sensação de respeito e pertencimento que experimentou ao se cobrir com o hijab obrigatório, na caverna de Abraão.

Seu relato serve de espelho para as tensões em curso no Brasil, pois aborda a soberba do Ocidente esclarecido e as mágoas incuráveis que permeiam as relações entre colonizados e colonizadores.
Torcemos o nariz para o hijab, mas aceitamos a tortura do salto alto. E julgamos intransigentes as minorias, esquecidos da nossa própria empáfia.


Michel Temer e Luciano Huck são escolhidos para presidir conselhos na Fiesp, FSP

 

SÃO PAULO

O novo presidente da Fiesp, Josué Gomes da Silva, que acaba de assumir o comando da entidade no lugar de Paulo Skaf, nomeou nesta quarta (2) o ex-presidente Michel Temer e o apresentador Luciano Huck como presidentes de dois dos conselhos da entidade.

As nomeações fazem parte de uma grande renovação determinada por Josué no início de sua gestão. Outras dez pessoas foram escolhidas para substituir os conselhos da Fiesp, que tem 14 cadeiras.

​Pedro Wongtschowski (Grupo Ultra), Rubens Menin (MRV), José Roberto Ermírio de Moraes (Votorantim), Luciano Coutinho (ex-BNDES), Fábio Barbosa (Gávea Investimentos), Jackson Schneider (Embraer Defesa), o jurista Cesar Asfor Rocha e Murilo Cesar Lemos dos Santos Passos.

A advogada Maria Cristina Mattioli, Marta Livia Suplicy (movimento Virada Feminina), o médico Raul Cutait e Jacyr Costa Filho (ex-Tereos) permanecem, respectivamente, nos conselhos superiores de relações do trabalho, feminino, responsabilidade social e agronegócio.

O apresentador Luciano Huck vai comandar o conselho superior de economia criativa, cuja função é propor políticas públicas para o desenvolvimento de cultura, tecnologia e criatividade. Já o ex-presidente Temer assume o conselho superior de estudos nacionais e política. Os mandatos terminam em dezembro.

A nova composição já foi atualizada no site da Fiesp.

Em seu primeiro posicionamento sobre o Copom (Comitê de Política Monetária) do Banco Central, que nesta quarta-feira (2) elevou a taxa básica de juros de 9,25% para 10,75%, o novo presidente da Fiesp, Josué Gomes da Silva, disse que as altas deveriam soar como um alerta sobre o que o Brasil deixou de fazer para ter crescimento econômico com geração sustentável de emprego e renda.

Em tom crítico, afirmou que "o novo patamar da Selic incomoda, e muito, já que a inflação que visa combater não apresenta um perfil condizente para um tratamento exclusivo via aumento dos juros, mas deveriam incomodar muito mais as razões que movem o Copom a refrear a atividade econômica já combalida."

com Andressa Motter e Ana Paula Branco


Bolsoriarty ou Mabusonaro, Ruy Castro, FSP

 

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Jair Bolsonaro acaba de nomear mais um aliado para um cargo-chave na administração. Desta vez, trata-se de um indivíduo com autoridade para bloquear, ignorar ou mesmo apagar as investigações contra um de seus filhos pela extorsão de funcionários chamada "rachadinha". Qual é a novidade? Todo dia, Bolsonaro infiltra em cargos-chave elementos de sua confiança. É sua prerrogativa, mas nunca um presidente amarrou tão bem o sistema visando a proteger-se, assegurar impunidade ou eternizar-se no cargo.

Bolsonaro já se garantiu na rede de procuradorias, corregedorias, controladorias, delegacias, órgãos públicos de busca e informação e até no STF, no qual implantou dois pinos. Tem pelo menos um cúmplice em cada tribunal. Foi fazendo isso aos poucos, em silêncio, enquanto nos distraía com a chusma de militares, nem tão decisivos, que transplantou para o governo. O resultado desse enraizamento está na tranquilidade com que afronta diariamente a lei e sai assobiando, como se se soubesse fora do alcance dela.

A literatura e o cinema criaram dois personagens igualmente sinistros: o professor Moriarty, arqui-inimigo de Sherlock Holmes, e o Dr. Mabuse, imortalizado em três filmes de Fritz Lang. O primeiro controlava Londres; o segundo, a partir de Berlim, fitava o mundo. O alcance de ambos compreendia desde uma carteira furtada no metrô até a manipulação de leis, passando pelo hipnotismo de gente influente, espionagem eletrônica e controle de organismos essenciais.

Quando, ao fim de uma história, achava-se que Moriarty e Mabuse estavam mortos ou derrotados, crimes como os deles continuavam acontecendo. Eram de seus auxiliares deixados impunes ou de estudiosos de seus métodos e que conseguiam replicá-los. O terror não tinha fim.

Bolsonaro, um dia, descerá da cadeira e responderá por seus crimes. Resta ver até que ponto os homens que impregnou no sistema impedirão que pague por eles.

Em foto em P&B, pessoas sentadas em torno de uma mesa jogam baralho
Cena do filme "Dr. Mabuse - O Jogador", de 1922 - Reprodução