quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Os erros de Biden na retirada do Afeganistão em 4 pontos, Ian Bremmer, FSP

 A retirada caótica e mal administrada do Afeganistão é a primeira grande crise de política externa da administração Biden. Ela não se deve à decisão de retirar as forças americanas do país. O que ocorreu foi uma falha de execução, não de estratégia.

A presença americana era cada vez mais insustentável: os EUA já haviam retirado um número importante de tropas, o Taleban vinha ganhando território rapidamente e poucos americanos ainda se importavam.

Biden herdou um processo de paz roto e, caso renegasse os compromissos assumidos por Trump, a perspectiva de um conflito renovado com um Taleban fortalecido.

Na Casa Branca, o presidente Joe Biden faz pronunciamento sobre a retirada americana do Afeganistão
Na Casa Branca, o presidente Joe Biden faz pronunciamento sobre a retirada americana do Afeganistão - Brendan Smialowski - 16.ago.21/AFP

Levar a luta adiante teria exigido um aumento grande da presença militar americana, algo que ninguém no gabinete de Biden, e especialmente o presidente, estava disposto a apoiar.

A retirada foi a melhor das opções possíveis, todas realmente ruins. O presidente Biden tem convicções fortes a esse respeito, algo que ficou claro em seu discurso à nação na segunda-feira.

O que foi surpreendente —e, francamente, chocante, dados o conhecimento e a experiência das equipes de segurança nacional e de política externa que Biden formou— foi a pura e simples incompetência da execução. Houve quatro falhas principais:

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1) Falha militar e de inteligência. As agências de inteligência dos EUA pensaram que Cabul poderia resistir ao Taleban por dois ou três anos. A partir do momento em que a ofensiva do Taleban foi intensificada, a avaliação da inteligência caiu para dois ou três dias. Dois fatos aqui são verdadeiramente estarrecedores:

A) os EUA passaram 20 anos e gastaram US$ 88 bilhões para treinar uma força afegã que se negou a lutar; B) depois de 20 anos treinando afegãos pessoalmente, os EUA ainda não compreenderam (ou não quiseram compreender) as verdadeiras capacidades e a vontade real deles de lutar.

2) Falha de coordenação. Os Estados Unidos combateram ao lado de aliados por duas décadas. Mas quando chegou a hora de encerrar sua presença, Biden o fez sozinho —tanto em termos da revisão da política, da decisão, do anúncio, da execução e do que aconteceu a seguir, incluindo a evacuação de cidadãos, a acolhida de refugiados, a oferta de apoio humanitário e assim por diante.

Após quatro anos da “América em primeiro lugar” de Trump, os aliados dos EUA esperavam uma atitude diferente do país em relação a seus amigos. Além de seus aliados, os EUA também perderam a oportunidade de colaborar com a China. Nenhum dos dois países queria que o Afeganistão desabasse e se convertesse em um Estado falido ou que voltasse a exportar terrorismo internacional.

Havia espaço para diplomacia criativa em uma das poucas áreas nas quais chineses e americanos de fato concordam, mas essa oportunidade foi desperdiçada.

3) Falha de planejamento. Os erros de inteligência e de coordenação não precisariam ter acabado em um desastre se a administração Biden tivesse traçado planos efetivos para cenários alternativos. Mas, a julgar por tudo o que sabemos, o governo não o fez.

Os Estados Unidos tiveram que transportar tropas de avião do continente para auxiliar na evacuação, enviando 3.500 militares a mais do que haviam retirado em primeiro lugar. O aeroporto de Cabul foi invadido por civis afegãos desesperados; um avião de carga americano foi evacuado com milhares de afegãos correndo na pista ao lado dele, e três passageiros clandestinos caíram depois de o avião decolar, morrendo na queda. O planejamento para oferecer segurança a milhares de afegãos que haviam auxiliado as forças americanas foi inexistente, e muitos deles serão deixados para trás.

4) Falha de comunicações. Semanas atrás, quando procurou convencer os americanos da necessidade da retirada, Biden assegurou que era “altamente improvável” que o Taleban acabasse “invadindo tudo e tomando conta do país inteiro”. Ele insistiu que “em circunstância alguma veremos pessoas sendo içadas do telhado” da embaixada dos Estados Unidos.

O secretário de Estado americano, Antony Blinken, disse: “Nós permaneceremos, a embaixada vai permanecer, nossos programas vão permanecer. Se ocorrer uma deterioração significativa da segurança, não creio que será algo que vá acontecer entre uma sexta-feira e uma segunda”.

À medida que essas previsões foram sendo desmentidas em tempo real, a administração passou a insistir que “tivemos êxito” no Afeganistão. Algo que deveria ter sido uma decisão dura, porém necessária, virou uma debacle, expondo Biden a acusações feitas por adversários políticos de que ele é pessoalmente responsável pela guerra fracassada –uma acusação absurda em se tratando de um fracasso que levou 20 anos e custou US$ 2 trilhões, mas que agora é atribuído parcialmente a ele.

Os próximos dias serão cruciais. O governo de Cabul caiu, e o agora ex-presidente Ashraf Ghani fugiu do país para o exílio, mas muitos americanos e estrangeiros ainda estão encurralados na capital, com milhares de tropas americanas a caminho para ajudar a evacuá-los.

O Taleban tentará sequestrar ou matar americanos quando partirem? O caos levará a acidentes e a mortes de jornalistas americanos, funcionários de organizações humanitárias, diplomatas ou militares?

A Casa Branca se defronta com uma série de cenários piores possíveis que remetem à crise dos reféns americanos em Teerã em 1979 e ao resgate fracassado de reféns do Irã em 1980. Saberemos em breve se Cabul 2021 vai se somar a essa lista.

Mesmo que Biden evite uma catástrofe ainda pior, a impressão transmitida nas próximas semanas será estarrecedoramente negativa. O Taleban desfrutará a vitória publicitária de hastear sua bandeira em Cabul —incluindo na ex-embaixada americana— no 20º aniversário dos ataques terroristas de 11 de setembro.

Bilhões de dólares em equipamentos militares abandonados pelos americanos serão exibidos em desfile pela capital. As forças do Taleban consolidarão seu controle com atrocidades, especialmente contra mulheres e meninas.

É pouco provável que a mídia americana deixe de cobrir tudo isso extensamente –especialmente se, como é provável, alguns de seus representantes acabarem envolvidos no caos. O Congresso promoverá audiências e interrogará funcionários seniores da administração sobre o que aconteceu.

O Afeganistão voltará a cumprir o papel de refúgio seguro para o terrorismo internacional –ou porque o Taleban acolherá grupos extremistas diretamente ou, o que é mais provável, porque não conseguirá controlar seu território. Zonas de conflito funcionam como ímãs que atraem jihadistas de todo o mundo, conforme foi demonstrado pelo Afeganistão na década de 1980, pela Bósnia nos anos 1990, pelo Iraque nos anos 2000 e pela Síria nos anos 2010.

A onda de terrorismo do Estado Islâmico na Europa foi possibilitada pela capacidade da organização de recrutar extremistas de todo o mundo, treiná-los na Síria e no Iraque e enviá-los de volta a seus países de origem. A capacidade dos EUA de monitorar e atacar grupos terroristas no Afeganistão será limitada pela ausência de inteligência em campo e pelas limitações da capacidade militar regional.

As “incógnitas conhecidas” relativas ao Afeganistão vão disparar nos próximos anos. Isso, por si só, já constitui má notícia para a América.

Tradução de Clara Allain

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Antonio Delfim Netto Flexibilizar é sempre melhor, fsp

 O “contrato de trabalho” no Brasil, de clara inspiração corporativista, como então era moda, foi incluído na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) outorgada por Getúlio Vargas em 1943. Ela prestou um excelente serviço civilizatório, mas, no mundo dinâmico de hoje, carece de um “aggiornamento” em benefício da liberdade e do aumento da produtividade do trabalho, codinome do desenvolvimento econômico.

Foi nessa direção que caminhou a reforma trabalhista aprovada pelo governo Temer em 2017. Permitiu alguma flexibilização da legislação, a criação de novas modalidades de contratos de trabalho e a prevalência do negociado sobre o legislado em acordos coletivos, entre outras alterações. Esse também é o espírito das oportunas medidas enviadas recentemente ao Congresso pelo ministro Paulo Guedes, através da MP 1.045/2021. Aprovada pela Câmara, aguarda, com a urgência que o tema requer, sua apreciação pelo Senado.

Além de regulamentar os cortes de jornadas e salário, que funcionaram bem durante a pandemia, a MP traz novas modalidades contratuais, mais flexíveis e com encargos menores, incentivos à contratação dos jovens e dos mais idosos e programas de requalificação da mão de obra que olham também para os trabalhadores presos à informalidade e suas (causas e) consequências.

Se o elevado e persistente desemprego já era um problema grave desde 2016, o quadro tornou-se ainda mais crítico com a pandemia. Um contingente de quase 15 milhões de desempregados e 6 milhões de desalentados exige esforços e respostas céleres que ajudem a reverter essa triste realidade.

Os críticos da flexibilização e da modernização da CLT são, em geral, indivíduos bem intencionados, com emprego e estabilidade, que entendem tal legislação como um mecanismo de defesa e proteção dos trabalhadores. Mas essa visão paternalista, que trata o trabalhador como um “idiota” e o empregador como “bandido”, tem sua parcela de responsabilidade no elevado desemprego estrutural, no alto contingente de informais, na rotatividade da mão de obra e, ao fim e ao cabo, em um mercado formal excludente, que “protege” menos da metade dos trabalhadores —um luxo para poucos.

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Obviamente, assim como foi no pós-reforma de 2017, não se deve esperar que tais medidas gerem “milhões de empregos” da noite para o dia, mas são vetores importantes para empurrar para baixo o elevado desemprego estrutural brasileiro. Para gerar empregos, o país precisa reaprender a crescer —e ter expectativa de que irá fazê-lo, para que haja também demanda por novos trabalhadores. A engrenagem é complexa, e exigirá esforços em várias frentes.

R$ 150 mil pela sua atenção, Gama Revista (muito importante)

  • INTERNET
  • SOCIEDADE
  • Victor Oliveira (@victoroliveira) é uma metralhadora de números. Sabe quantas centenas de comentários o seu publipost da marca X teve nas primeiras 24 horas, quanto isso representa em termos de engajamento, quanto outros perfis na mesma rede social, com seis vezes mais seguidores que ele, tiveram para a mesma publicidade. E destrincha as comparações sem indisfarçada modéstia. Aos 29 anos, ele tem 326 mil seguidores no Instagram e se dedica exclusivamente à profissão de influenciador digital desde 2020 – embora tenha começado no mundo das redes ainda nos tempos do Orkut, criando e gerenciando comunidades. Formado em publicidade, ele jamais pensou que essa seria de fato sua profissão.

    Há dois anos e meio, no entanto, resolveu tentar mobilizar a base que tinha no Instagram — pessoas que o acompanhavam de outras redes e que acabaram por lá. “Vi que tinha 150 mil seguidores no Instagram parados. Não tinha tanta interação quando poderia ter”, conta. Para isso, criou quadros específicos como o “Não está sendo fácil”, ou NESF, em que os seguidores compartilham histórias engraçadas ou inusitadas – muitas delas relacionadas a peripécias sexuais e dates que acabaram mal, ou ambos ao mesmo tempo.

    Funcionou. Hoje, publicidade para gigantes como Prada e Samsung fazem parte do seu currículo. Trabalha “muito mais”, diz, do que quando tinha um trabalho convencional, no qual gerenciava redes sociais de celebridades.

    Tu podes não postar, mas sempre estás pensando (a respeito do conteúdo). É um trabalho que consome muito

    Para a jornalista Juliana Gomes (@comidasaudavelpratodos), “desligar a cabeça” é o mais difícil da profissão de influenciadora – palavra, aliás, da qual ela não gosta. “Tu podes não postar, mas sempre estás pensando (a respeito do conteúdo). É um trabalho que consome muito”, diz. Na internet, ela se dedica a falar de veganismo e de alimentação sob uma perspectiva política. “Nunca trabalhei tanto”, afirma.

    Não se engane. Por trás de vídeos aparentemente simples, como as dancinhas que ganham milhares de visualizações, tem trabalho, e muito. Produzir fotos, vídeos, roteirizar, editar, escolher o melhor dia e hora para postar, acompanhar métricas, entender o que engaja ou não o público: tudo isso faz parte do universo de produção de conteúdo dos influenciadores digitais, seja esse um conteúdo de política, de neurociência, de humor ou de qualquer — absolutamente qualquer — outro assunto.

    Algumas habilidades profissionais são específicas desse segmento. “Uma competência é a de identificar tendências, de saber ler o mercado digital. Outra, que às vezes menosprezamos, é a capacidade de conseguir produzir um conteúdo que transborde para muitas plataformas em diferentes formatos, com a habilidade de falar com públicos diversos”, explica a pesquisadora e professora da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) Issaaf Karhawi.

    Todo mundo é produtor de conteúdo?

    Autora do livro “De Blogueira a Influenciadora” (Editora Sulina, 2020), fruto de sua tese de doutorado, Issaaf explica que viver de produção de conteúdo na internet já era possível entre 2009 e 2011, mas o termo influenciador digital entrou mesmo em cena por volta de 2014, quando as marcas passaram a olhar com mais atenção para essas pessoas. Para escrever a tese, a pesquisadora acompanhou 52 blogueiras de moda por cerca de quatro anos. Foi por meio dessas figuras, que começaram a produzir conteúdo de forma amadora em blogs entre 2003 e 2006, que teve origem fenômeno dos influenciadores digitais.

    “Já se discutia até antes da internet que a pós-modernidade era um momento de ruptura das grandes instituições. O digital surge na esteira desse discurso anti-hierárquico”, diz Issaaf. “Eu gosto de pensar que as blogueiras são resultado da cultura da participação, que é essa possibilidade de todo mundo participar dos pólos produtores”. Se antes só a mídia poderia produzir e divulgar informação, a internet permitiu, em certa medida, a democratização desse processo.

    As blogueiras atuam como líderes e formadores de opinião, independente de serem experts

    Nesse sentido, as blogueiras, e mais tarde os influenciadores digitais, colocaram em xeque o paradigma da expertise. Por exemplo: ouvíamos um médico falar sobre uma determinada doença e, em teoria, dávamos ouvidos porque ele estudou por anos aquele assunto. “Nas redes sociais isso não existe, o que existe é um processo social de reconhecer no outro o que ele tem para oferecer. As blogueiras atuam como líderes e formadores de opinião, independente de serem experts”, explica Issaaf. No mercado de moda, historicamente elitizado, foi reconhecida e legitimada a habilidade das blogueiras em democratizar e traduzir temáticas.

    “É uma nova linguagem. Quando apareceu o livro, pensaram: ‘Agora qualquer um vai escrever, como assim? Não foi autorizado pela igreja!’”, diz o psicanalista e professor da USP Christian Dunker.

    Para Luiz Peres-Neto, pesquisador e professor da Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM, a tendência é nos deixarmos levar por um moralismo raso ao analisarmos esse fenômeno. A internet, ele afirma, não é diferente da vida, afinal “quem a faz somos nós, que somos ambíguos”.

    “Ao mesmo tempo em que a internet democratiza o acesso a determinadas vozes periféricas, negras, é o lugar onde você tem indústrias de ódio, que usam essas plataformas para aniquilar o diferente. Precisamos deixar de entender a internet como um espaço de tecnologia e entender como um espaço de dinâmicas sociais e, portanto, humanas”, diz Peres-Neto.

    O Instagram veio para facilitar a publicação: pegou suas fotos feias, botou um filtro e elas ficaram ok

    Junto à internet e à vontade de parte da sociedade em se tornar mais horizontal, avanços importantes, como o smartphone e a evolução das próprias ferramentas dentro das redes sociais possibilitaram o boom dos influenciadores. “O Instagram veio para facilitar a publicação: pegou suas fotos feias, botou um filtro e elas ficaram ok”, avalia o professor de mídias digitais da pós-graduação da ESPM Alexandre Bessa, que analisou o Instagram em seu mestrado. “A ferramenta criou espaço para os influencers e ensinou a comunidade a crescer.”

    Embora exista todo um contexto que favoreça o surgimento de influencers, manter-se em destaque em um meio cada vez mais competitivo foi exigindo profissionalização, segundo Issaaf, e uma visão que vai além do viral da dancinha. “Das blogueiras que eu acompanhei, não foram todas que chegaram ao final do período com milhares de seguidores.”

    A cofundadora da agência paulistana Coolab, Juliana Montesanti, aponta que nos últimos dois anos, ou seja, durante a pandemia, aqueles influenciadores que focavam em conteúdos no estilo “minha viagem incrível” perderam relevância. “Quando a gente não teve a possibilidade de viajar e mostrar, o conteúdo ficou vazio. Por isso direcionamos os nossos comunicadores a terem realmente um conteúdo de valor. Claro que dancinhas e viagens podem compor o feed, mas não devem ser o ‘core’ do conteúdo, porque não é o que se consegue levar no longo prazo”, explica Montesanti.

    A hora da virada

    É complexo definir em que momento alguém se torna, de fato, um influencer. Ao contrário do que se possa supor, não depende de número de seguidores, já que existem até mesmo os “nano influencers”, aqueles com cerca de mil seguidores. Mas, para a publicidade, de forma geral, você ganhou esse status se as marcas passaram a olhar para você. “Os influenciadores são ótimos se pensarmos no que os consumidores hoje esperam uma comunicação horizontal, não uma marca que diz: compre esse produto porque ele é bom pra você. A gente quer um discurso testemunhal”, pontua Issaaf.

    Ser influencer não diz respeito ao número de seguidores, mas ser alguém para quem as marcas olham

    Na visão de Peres-Neto, o que está sendo comercializado nesse caso não é conteúdo, mas atenção. Economia da atenção é um conceito usado ao menos desde a década de 1950 para entender as audiências. “A atenção é a commodity que foi vendida desde o final do século 19 como produto para sustentar as mídias. A mídia não vende informação ou entretenimento, vende atenção para a publicidade”, diz, ao citar o livro “The Attention Merchants” (Mercadores da Atenção, em tradução livre, Atlantic Books, 2017), de Tim Wu. Nesse contexto, nós, enquanto audiência, seríamos mero produto dessa indústria.

    “Historicamente, isso foi mudando: antes era o anúncio dentro do jornal impresso, evoluiu para a televisão, que com o controle remoto sofre uma transformação radical, e a publicidade vai se adaptando. Se você diminui o espaço tradicional, a fronteira entre o que é informação, entretenimento, e ‘conteúdo’ vai diminuindo. E os influenciadores entregam esse apagamento da fronteira”, explica.

    Montesanti, da Coolab, viu de perto essa transformação. Ex-funcionária da revista Vogue, ela acompanhou a fragmentação da publicidade, que passou a se voltar mais para o mercado digital nos últimos anos. Ela acredita que o Instagram é hoje a principal plataforma para os influenciadores criarem conteúdo e ganharem dinheiro.

    Os valores pagos pelas marcas dentro desse contexto variam muito, e dependem em grande medida da capacidade de conversão de cada perfil. “No geral , falando de todos os influenciadores, tivemos campanhas nas quais uma série de stories custou R$ 8 mil, e já tivemos uma em que custou R$ 150 mil, isso falando só em stories”, diz Montesanti. No portfólio de clientes da agência estão desde perfis com 50 mil seguidores até Bruna Marquezine, que conta 41 milhões.

    Mas nem todo mundo consegue ou quer ir atrás dos publiposts de milhares de reais. Juliana Gomes optou por outro caminho. No começo, buscou empresas que fossem coerentes com o trabalho que fazia, em geral companhias de médio porte, para criar parcerias. “Queriam que eu fizesse 20 stories por R$ 500. Ok, você pode pagar pouco, mas não sou escrava. E percebi que a gente influencia muito as pessoas para compras”, diz. “Uma vez indiquei um livro, e a editora disse que vendeu mais em uma semana do que tinha vendido no ano inteiro. Então não posso cobrar R$ 500 por 20 stories, sabe?”

    Ao mesmo tempo, ela não queria fazer parcerias com empresas grandes, que pagariam bem, mas não estavam de acordo com seus valores éticos e com o conteúdo que produz. Decidiu estudar outras formas de se manter, e após um ano pesquisando, criou um tipo de assinatura por meio da qual distribui uma newsletter com conteúdo exclusivo e sorteia brindes de marcas que se relacionam à sua causa. Hoje, conta com cerca de 700 assinantes.

    É uma cilada, Valéry?

    À medida que o fenômeno dos influencers tomou forma, influenciadores de diferentes setores de atividade foram se popularizando, não somente artistas, esportistas ou pessoas do ramo da moda. São médicos, psicanalistas, escritores, militantes de todas as vertentes, entre outros perfis, que encontram na internet uma forma de divulgar seu trabalho. Mas, afinal, passamos a depender de dançar no TikTok para ter um lugar ao sol, independentemente da profissão que exercemos?

    “Isso é uma meia verdade. É certo que você tem pessoas que se fazem a partir dessas dinâmicas. No caso de um médico, vai ter médicos que dançam no TikTok; agora, se eu tiver um infarto, eu vou querer ser operado pelo Dr. João Paulo, da Beneficência Portuguesa, um grande especialista, que acho que não tem nem conta de e-mail”, pondera Peres Neto.

    “Paul Valéry (filósofo e escritor francês, 1871-1945), nos anos 1930, dizia: ‘olha, tá surgindo um tipo de profissão bem estranha, delirante, porque se baseia em como você está sendo percebido pelos outros,’, que é a profissão de artista, de publicitário, etc.”, aponta o psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da USP Christian Dunker.

    Com o neoliberalismo, a forma como alguém é percebido passou a ser mais determinante do que o que aquela pessoa efetivamente produz

    Segundo Dunker, com o neoliberalismo, ainda antes da internet, a forma como alguém é percebido passou a ser mais determinante do que o que aquela pessoa efetivamente produz. Isso aparece, por exemplo, no processo de financeirização das marcas, em que a marca de uma companhia vale mais que todo o seu patrimônio líquido. É uma mutação da distribuição da riqueza que se estendeu, ao longo dos anos, às pessoas. “Você precisa ou quer ser famoso porque a fama abre sua carreira. Ela facilita que seja alguém que hoje em dia está sujeito ao controle social.”

    Terra sem lei

    Lentamente, a profissão de influenciador digital começa a ganhar contornos mais institucionais mundo afora. Na Alemanha, já há um sindicato voltado a Youtubers. Na França, foi aprovada uma lei para regular a produção de conteúdo por influenciadores mirins. “Isso é outra problemática, porque já temos recém-nascidos com milhões de seguidores”, pontua Issaaf.

    Influenciadores sofrem grotescamente. Você acha que manda no público, e quem manda é o algoritmo. Isso destrói vidas

    No geral, contudo, as redes sociais ainda são uma terra sem lei. Se por um lado a internet permitiu a democratização da produção de conteúdos, por outro, a falta de regras pode levar a conflitos éticos e a propagação de desinformação. “Acho que tem um lado que é muito perigoso: tem o cara que bate na mulher e ganha 120 mil seguidores; tem os charlatões que viralizam, como os gurus da alimentação que vendem soluções para emagrecer. É um universo muito sem regra”, aponta Juliana Gomes.

    De acordo com Issaaf, a problemática nasce justamente por ser um mercado que começa fora do paradigma da expertise. “Quando se é amador, não se reconhece os limites da própria atuação. Um arquiteto sabe até onde pode ir, e quando precisa chamar um engenheiro. O influenciador digital não tem esse limite. E isso eu costumo creditar um pouco ao fato de que a gente demorou muito para reconhecer que ali tem uma profissão”, avalia.

    Dunker atenta, ainda, para o sofrimento dos próprios influenciadores diante da falta de transparência. “Eu sei, pela experiência clínica, que youtubers e influenciadores sofrem grotescamente, porque você acha que está mandando no seu público, e quem está mandando é seu algoritmo. Você começa a brigar com seu algoritmo, que você não sabe qual é, e isso destrói muitas vidas”, afirma.