A memória de Nelson Sargento —que morreu na quinta-feira (27), aos 96 anos— sempre foi prodigiosa. Ele lembrava que, moleque franzino, de tamborim na mão, calça e tênis brancos, camisa azul de jérsei e cartolinha de feltro, desceu as ladeiras do morro do Salgueiro para brincar o Carnaval na rua Dona Zulmira, território nelsonrodrigueano onde corriam soltas as batalhas de confete.
Depois chegou ao morro de Mangueira para viver com a mãe ao lado do fadista (depois sambista) Alfredo Português, em cujo barraco havia animadas reuniões de pagode, com carne moqueada, cerveja casco escuro e a presença da nobreza: Cartola, Carlos Cachaça, Nelson Cavaquinho, Geraldo Pereira. Nelson era o "gravador" da turma, evitando que algumas composições daquela época pioneira caíssem no esquecimento. Só de Cartola, "salvou" três, acrescentando-lhes uma segunda parte: "Deixa", "Ciúme Doentio" e "Vim lhe Pedir". Aprendeu ali que samba é memória. A tradição inspira e fundamenta o presente.
Um sambista de truz —como era Nelson Sargento— tem saudade de um passado que muitas vezes nem viveu, e é por isso que compõe. Pode ser um passado de glórias, um passado de lutas, um passado de amores, um passado fingido no qual acredita. Da recordação imaginada, nascem maravilhas como "Falso Amor Sincero".
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Nelson era como "Funes, o Memorioso", do conto de Borges. O ofício de pintor de paredes —viração nos apartamentos elegantes da Zona Sul carioca, com tinta branca, espátulas e rolos de lã— lhe abriu o caminho para a carreira de artista primitivo, quadros a óleo que retratam paisagens de favela e figuras carnavalescas resgatadas do olvido.
Um grande frasista. Uma vez bebíamos cerveja preta na praça 15 e, vendo o povo passar em direção à barca de Niterói, ele me disse: "O maior inimigo do pobre é o outro pobre". Adeus, Nelson Mattos, sargento apenas no apelido.
Shane Harris e Yasmeen Abutaleb*, The Washington Post, O Estado de S.Paulo
30 de maio de 2021 | 05h00
WASHINGTON - Na primavera de 2020, quando o coronavírus se abateu sobre as cidades dos EUA e aos poucos fez mais de 592 mil vítimas americanas, um grupo de funcionários de alto escalão da segurança nacional começou a suspeitar de um laboratório em Wuhan, na China.
O Instituto de Virologia de Wuhan era muito conhecido na comunidade científica por sua pesquisa sobre o coronavírus com objetivo de defender o país de surtos de epidemia como a SARS, causada por um vírus identificado inicialmente na China em 2002. Mas para certos funcionários, alguns dos quais trabalhavam no Departamento de Estado e na Casa Branca, a localização do laboratório na mesma cidade em que a pandemia do coronavírus começou era uma coincidência preocupante.
No decorrer do tempo, as autoridades uniram forças em busca de informações que pudessem mostrar se a pandemia havia sido provocada por uma pesquisa imprudente no laboratório. A investigação foi conduzida em parte por um grupo do Departamento de Estado, à época sob o comando de Mike Pompeo, que inicialmente analisara o cumprimento da China de tratados internacionais sobre armamentos, e depois voltou a sua atenção para o laboratório e evidências de atividade militar suspeita em suas instalações.
Na maior parte da pandemia, a hipótese de um “vazamento de laboratório” foi ridicularizada pelos cientistas como uma teoria da conspiração infundada, alimentada pelo presidente Donald Trump na tentativa de desviar a atenção da resposta falha da pandemia por seu governo.
No entanto, longe de minimizar a teoria do vazamento, o presidente Biden pediu que seus serviços de inteligência verificassem se os funcionários do governo anterior, cujo trabalho alguns dos seus assessores céticos chamaram de tendencioso e exagerado, poderiam ter questionado com razão o laboratório e realizado uma investigação profunda. Recentemente, a Casa Branca soube que restava ainda uma grande quantidade de informações a serem apuradas que poderiam oferecer uma luz sobre a questão, segundo um funcionário de alto escalão, que como outros, falou na condição de anonimato.
Biden chocou os especialistas em segurança e saúde nesta quarta-feira, 26, quando anunciou que pelo menos um “elemento” da comunidade da inteligência “pendia” para a hipótese de um acidente de laboratório como fonte da epidemia. Suas conclusões são aguardadas daqui a 90 dias.
Funcionários da segurança nacional do governo Trump vasculharam dados sigilosos, trabalhos científicos e até mesmo artigos de revistas populares na tentativa de determinar se a hipótese do vazamento se sustentava. Eles não descobriram provas irrefutáveis, mas tiveram a sensação de que as informações que haviam reunido exigiam uma investigação mais profunda, afirmaram várias pessoas envolvidas na iniciativa.
A localização do laboratório de Wuhan, na mesma cidade do surto, foi para muitos o primeiro ponto suspeito. Mas o mais alarmante foi a resposta do governo chinês à epidemia.
As autoridades chinesas pareciam mais interessadas em bloquear as investigações do que em ajudá-las, afirmaram os antigos funcionários. Eles levaram em conta inicialmente o silêncio dos médicos e dos jornalistas que não informaram o alastrar do vírus, encontrado pela primeira vez em pacientes do hospital de Wuhan, em dezembro de 2019.
No mundo inteiro, funcionários da segurança e da saúde começam a especular a respeito da fonte do vírus pouco depois que ele surgiu, segundo contou um funcionário, acrescentando que houve uma enorme frustração porque o governo chinês não se mostrou solícito em fornecer informações e não permitiu de imediato a entrada de investigadores internacionais no país.
A evidência de que o vírus poderia ter saído do laboratório de Wuhan era circunstancial, salientaram os funcionários. A hipótese padrão, acrescentou um deles, compartilhada pela maioria dos cientistas, foi de que a pandemia começara na natureza.
Mas à medida que eles liam artigos a respeito dos tipos de pesquisa que o laboratório estava realizando, suas preocupações foram aumentando. Alguns experimentos pareciam destinados a tornar os vírus mais infecciosos e potencialmente mortais para os seres humanos. Tais experimentos muitas vezes são feitos para desenvolver vacinas e tratamentos mais eficazes.
O instituto estava no radar de alguns funcionários da saúde e da segurança nacional, informaram dois funcionários de alto escalão, porque suas normas de segurança e algumas de suas pesquisas estavam sendo questionadas. Estes funcionários manifestaram frustração pelo fato de que não havia mais recursos na inteligência para colher mais informações sobre as atividades do laboratório.
Os funcionários americanos acharam que os especialistas deveriam considerar a possibilidade de que o laboratório estivesse envolvido em uma pesquisa arriscada que poderia provocar um surto.
Trump concordou. Em abril de 2020, ele levantou pela primeira vez a ideia de que o vírus poderia ter vazado de um laboratório. Ao mesmo tempo, intensificou a sua retórica contra a China, referindo-se ao coronavírus como o “vírus chinês”. Seguiu-se um aumento dos crimes de ódio contra cidadãos asiáticos.
Trump não apresentou qualquer evidência que respaldasse a teoria do laboratório. O seu conselheiro comercial, Peter Navarro, acusou a China de fabricar o vírus, sem apresentar uma evidência confiável para respaldar uma afirmação tão ousada.
Para alguns dos funcionários que já suspeitavam do laboratório de Wuhan, os comentários de Trump e de Navarro tornaram o cenário do vazamento em uma teoria da conspiração marginal. Tornou-se quase impossível gerar algum interesse entre os especialistas da saúde por uma hipótese que Trump transformara em uma arma política, afirmaram.
Mas no outono de 2020, a dinâmica se intensificou novamente. A inteligência americana havia obtido a informação de que três funcionários do laboratório de Wuhan haviam adoecido em novembro de 2019 com sintomas semelhantes à covid, e haviam sido hospitalizados. Seus sintomas eram semelhantes também às doenças sazonais, como a influenza, mas eles adoeceram um mês antes de os casos iniciais de covid serem confirmados em Wuhan.
Os funcionários também receberam a informação de que os militares chineses estavam realizando há anos experimentos no mesmo laboratório. Isto também contribuiu para renovar o foco no vazamento do laboratório.
“A informação a respeito dos funcionários doentes foi realmente surpreendente”, disse David Feith, que na época era vice-secretário de Estado para assuntos no Leste Asiático e do Pacífico. “O fato de saber simplesmente que havia vínculos de sigilo militar com o laboratório não dizia necessariamente de onde saíra a covid. Mas se havia um grupo de doenças que eram de fato a covid, aquele poderia ser o Paciente Zero”, disse Feith, atualmente pesquisador sênior do Center for New American Security.
A nova informação “deu início a um esforço muito mais amplo para examinar os dados” sobre as origens, disse David Asher, que foi assessor sênior da Agência de Controle, Verificação e Observância de Armas do Departamento de Estado da época e trabalhara nas investigações sobre a observância dos tratados internacionais da parte da China e do seu programa de armas nucleares. Quando este trabalho foi concluído, Asher, agora pesquisador sênior do Hudson Institute, tornou-se o chefe da força tarefa de Pompeo que analisava as origens da covid-19.
Nos últimos dias do governo Trump, os funcionários montaram uma iniciativa para desclassificar as informações, incluindo algumas sobre os trabalhadores do laboratório que haviam adoecido. No dia 15 de janeiro, o Departamento de Estado divulgou uma “folha informativa” que foi examinada por diversas agências, inclusive na comunidade de inteligência, em que se declarava que o vírus pode ter-se espalhado naturalmente ou saído de um laboratório.
O documento descrevia três categorias de atividade que apontavam para o última hipótese, incluindo o relato dos funcionários doentes; a história da pesquisa do laboratório sobre o coronavírus em morcegos; e a descoberta de que militares chineses, desde pelo menos 2017, se dedicavam secretamente “a pesquisas sigilosas, inclusive experiências com animais de laboratório”.
A folha informativa, embora breve, é o documento público mais abrangente até o momento sobre o que o governo americano sabe a respeito de um possível vazamento de laboratório.
Um dos funcionários anteriores salientou que a evidência não mudou substancialmente, mas que há muitas indagações que não foram respondidas.
“Há muitas coincidências e material circunstancial e a pergunta é: ‘Quando muitas coincidências são realmente muitas?’” disse outro antigo funcionário. “Um lado do registro está crescendo e o outro não”.
Embora outros cientistas tenham afirmado que a teoria do vazamento vale mais investigações, muitos aconselham a não abraçá-la com excessivo entusiasmo.
“A única razão pela qual esta história continua se sustentando é que a mídia escolheu vestir antigas especulações com novas informações e afirma que esta é a evidência. Não é. É pura especulação e todas as hipóteses sobre a origem continuam viáveis”, disse Angela Rasmussen, virologista da Vaccine and Infectious Disease Organization da Universidade de Saskatchewan.
Na realidade, levou anos para desvendar a origem da epidemia de SARS.
“Uma investigação de 90 dias para se chegar a uma resposta definitiva parece bom, mas é improvável que se chegue a uma resposta definitiva”, disse Chris Meekins, ex-funcionária dos Health and Human Services, hoje analista da Raymond James, uma empresa de serviços financeiros. "A não ser que nós tenhamos informações da inteligência que os EUA se recusaram a divulgar até o momento a fim de proteger fontes e métodos, não tenho certeza do que mudará nos próximos 90 dias”.
Há 15 dias espalhava-se a impressão de que a atividade econômica do Brasil vinha com mais vigor do que a esperada. Agora, já não é apenas impressão. Há sinaisfortes de crescimento do PIBneste ano mais perto dos 5% do que dos 4%.
A primeira surpresa veio dia 13, com a divulgação do Índice de Atividade Econômica do Banco Central (IBC-BR), a chamada prévia do PIB, que apontou recuperação de 2,3% no primeiro trimestre deste ano, em comparação com os três últimos meses do ano passado, na série com ajuste sazonal, bem acima da esperada. Foi a senha para que os analistas refizessem suas apostas de crescimento para perto dos 4%.
Na semana passada, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, sugeriu que novos indicadores acenam para um avanço por volta dos 4%. Mas os analistas já estão revendo para cima essa projeção. Nesta quinta-feira, por exemplo, oItaú Unibanco avisou que passou a trabalhar com um incremento do PIB da ordem de 5%. Nas próximas semanas, o Boletim Focus do Banco Central estará registrando essa alta também entre os mais de 70 analistas que até agora não iam além dos 3,52%.
O ministro daEconomia, Paulo Guedes, ligou seu alto-falante para alardear o que vem repetindo desde meados do ano passado: “Olhem a recuperação em V que...”. Tomara que ele esteja carregado de razão. Mas, independentemente disso, convém avaliar os fatores que vêm favorecendo a retomada e os riscos espalhados pela pista, que podem atrapalhar os novos planos.
A impressionante recuperação da economia mundial é vento em popa também no desempenho da economia brasileira, porque favorece as exportações. Os Estados Unidos devem crescer neste ano 6,0%. A China, segunda grande usina econômica do mundo, vai para 8,5%. E a União Europeia, 4,1%. (Veja a tabela). Volume nunca visto de estímulos fiscais (projetos de investimentos públicos e privados) e monetários (despejo de moeda pelos grandes bancos centrais) empurra a economia mundial. Empurrão não menos importante está sendo dado pelo forte ritmo de vacinação nos países líderes. É fator que aumenta o atraso sanitário dos países mais pobres, mas lança empresas e a população dos países centrais para a atividade econômica.
O agronegócioé beneficiário da onda de demanda de commodities. Embora o valor da renda do agro ainda não passe dos 6,8% do PIB, a energia transmitida aos serviços ligados ao setor é importante na recuperação.
E tem a vacina. Apesar da confusa política sanitária do governo Bolsonaro, já há no Brasil perto de 45 milhões de vacinados, pelo menos com a primeira dose. São 14 milhões os que já se recuperaram e podem ser considerados relativamente imunizados. E há aqueles que já tiveram a doença, mas não apresentaram sintomas e que já têm anticorpos. Uma avaliação rigorosa não garante imunidade para estes, mas são números indicativos de que mais gente antes entocada começa a ser liberada para voltar ao trabalho.
Um terceiro fator que ajuda a explicar o novo ritmo é a nova rodada de auxílio emergencial, de R$ 43 bilhões, que deve favorecer o consumo de quase 46 milhões de brasileiros.
Mas os riscos não podem ser desprezados. Ninguém sabe se o Brasil continua vulnerável a outras ondas de contaminação, especialmente com a multiplicação de novas variantes do coronavírus – para as quais faltam dados sobre se têm cobertura das vacinas.
Mais produção vai exigir mais consumo de energia elétrica num momento de grave crise hídrica. Mesmo com o acionamento das usinas de fontes térmicas, não se podem descartar apagões em certas regiões do País. Além disso, as tarifas do quilowatt-hora tendem a disparar e alimentar ainflação.
O desemprego recorde, que atingiu 14,8 milhões no primeiro trimestre deste ano, é outro limitador da demanda e da produção. Quem imagina que o avanço do PIB, por si só, criará postos de trabalho ignora que as empresas podem voltar à plena carga, mas com menos pessoal, porque aprenderam a operar mais enxutas e trataram de aumentar os investimentos em tecnologias poupadoras de mão de obra.
Em todo o caso, apesar das vítimas em gente (já são perto de 460 mil mortos) e em empresas quebradas, e apesar da política desastrada do governo federal, a economia brasileira vai demonstrando inesperada resiliência à pandemia. E essa é a melhor notícia.