domingo, 30 de maio de 2021

Cenário: Vazamento em laboratório de Wuhan passa a ser uma hipótese viável, OESP

 Shane Harris e Yasmeen Abutaleb*, The Washington Post, O Estado de S.Paulo

30 de maio de 2021 | 05h00

WASHINGTON - Na primavera de 2020, quando o coronavírus se abateu sobre as cidades dos EUA e aos poucos fez mais de 592 mil vítimas americanas, um grupo de funcionários de alto escalão da segurança nacional começou a suspeitar de um laboratório em Wuhan, na China.

Instituto de Virologia de Wuhan era muito conhecido na comunidade científica por sua pesquisa sobre o coronavírus  com objetivo de defender o país de surtos de epidemia como a SARS, causada por um vírus identificado inicialmente na China em 2002. Mas para certos funcionários, alguns dos quais trabalhavam no Departamento de Estado e na Casa Branca, a localização do laboratório na mesma cidade em que a pandemia do coronavírus começou era uma coincidência preocupante.

No decorrer do tempo, as autoridades uniram forças em busca de informações que pudessem mostrar se a pandemia havia sido provocada por uma pesquisa imprudente no laboratório. A investigação foi conduzida em parte por um grupo do Departamento de Estado, à época sob o comando de Mike Pompeo, que inicialmente analisara o cumprimento da China de tratados internacionais sobre armamentos, e depois voltou a sua atenção para o laboratório e evidências de atividade militar suspeita em suas instalações.

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Novas investigações consideram hipótese de vazamento acidental do coronavírus de laboratório chinês Foto: Thomas Peter/REUTERS

Na maior parte da pandemia, a hipótese de um “vazamento de laboratório” foi ridicularizada  pelos cientistas como uma teoria da conspiração infundada, alimentada pelo presidente Donald Trump na tentativa de desviar a atenção da resposta falha da pandemia por seu governo.

No entanto, longe de minimizar a teoria do vazamento, o presidente Biden pediu que seus serviços de inteligência verificassem se os funcionários do governo anterior, cujo trabalho alguns dos seus assessores céticos chamaram de tendencioso e exagerado, poderiam ter questionado com razão o laboratório e realizado uma investigação profunda. Recentemente, a Casa Branca soube que restava ainda uma grande quantidade de informações a serem apuradas que poderiam oferecer uma luz sobre a questão, segundo um funcionário de alto escalão, que como outros, falou na condição de anonimato.

Biden chocou os especialistas em segurança e saúde nesta quarta-feira, 26, quando anunciou que pelo menos um “elemento” da comunidade da inteligência “pendia” para a hipótese de um acidente de laboratório como fonte da epidemia. Suas conclusões são aguardadas daqui a 90 dias.

Funcionários da segurança nacional do governo Trump vasculharam dados sigilosos, trabalhos científicos e até mesmo artigos de revistas populares na tentativa de determinar se a hipótese do vazamento se sustentava. Eles não descobriram provas irrefutáveis, mas tiveram a sensação de que as informações que haviam reunido exigiam uma investigação mais profunda, afirmaram várias pessoas envolvidas na iniciativa.

A localização do laboratório de Wuhan, na mesma cidade do surto, foi para muitos o primeiro ponto suspeito. Mas o mais alarmante foi a resposta do governo chinês à epidemia.

As autoridades chinesas pareciam mais interessadas em bloquear as investigações do que em ajudá-las, afirmaram os antigos funcionários. Eles levaram em conta inicialmente o silêncio dos médicos e dos jornalistas que não informaram o alastrar do vírus, encontrado pela primeira vez em pacientes do hospital de Wuhan, em dezembro de 2019.

No mundo inteiro, funcionários da segurança e da saúde começam a especular a respeito da fonte do vírus pouco depois que ele surgiu, segundo contou um funcionário, acrescentando que houve uma enorme frustração porque o governo chinês não se mostrou solícito em fornecer informações e não permitiu de imediato a entrada de investigadores internacionais no país.

A evidência de que o vírus poderia ter saído do laboratório de Wuhan era circunstancial, salientaram os funcionários. A hipótese padrão, acrescentou um deles, compartilhada pela maioria dos cientistas, foi de que a pandemia começara na natureza.

Mas à medida que eles liam artigos a respeito dos tipos de pesquisa que o laboratório estava realizando, suas preocupações foram aumentando. Alguns experimentos pareciam destinados a tornar os vírus mais infecciosos e potencialmente mortais para os seres humanos. Tais experimentos muitas vezes são feitos para desenvolver vacinas e tratamentos mais eficazes.

O instituto estava no radar de alguns funcionários da saúde e da segurança nacional, informaram dois funcionários de alto escalão, porque suas normas de segurança e algumas de suas pesquisas estavam sendo questionadas. Estes funcionários manifestaram frustração pelo fato de que não havia mais recursos na inteligência para colher mais informações sobre as atividades do laboratório.

Os funcionários americanos acharam que os especialistas deveriam considerar a possibilidade de que o laboratório estivesse envolvido em uma pesquisa arriscada que poderia provocar um surto.

Trump concordou. Em abril de 2020, ele levantou pela primeira vez a ideia de que o vírus poderia ter vazado de um laboratório. Ao mesmo tempo, intensificou a sua retórica contra a China, referindo-se ao coronavírus como o “vírus chinês”. Seguiu-se um aumento dos crimes de ódio contra cidadãos asiáticos.

Trump não apresentou qualquer evidência que respaldasse a teoria do laboratório. O seu conselheiro comercial, Peter Navarro, acusou a China de fabricar o vírus, sem apresentar uma evidência confiável para respaldar uma afirmação tão ousada.

Para alguns dos funcionários que já suspeitavam do laboratório de Wuhan, os comentários de Trump e de Navarro tornaram o cenário do vazamento em uma teoria da conspiração marginal. Tornou-se quase impossível gerar algum interesse entre os especialistas da saúde por uma hipótese que Trump  transformara em uma arma política, afirmaram.

Mas no outono de 2020, a dinâmica se intensificou novamente. A inteligência americana havia obtido a informação de que três funcionários do laboratório de Wuhan haviam adoecido em novembro de 2019 com sintomas semelhantes à covid, e haviam sido hospitalizados. Seus sintomas eram semelhantes também às doenças sazonais, como a influenza, mas eles adoeceram um mês antes de os casos iniciais de covid serem confirmados em Wuhan.

Os funcionários também receberam a informação de que os militares chineses estavam realizando há anos experimentos no mesmo laboratório. Isto também contribuiu para renovar o foco no vazamento do laboratório.

“A informação a respeito dos funcionários doentes foi realmente surpreendente”, disse David Feith, que na época era vice-secretário de Estado para assuntos no Leste Asiático e do Pacífico. “O fato de saber simplesmente que havia vínculos de sigilo militar com o laboratório não dizia necessariamente de onde saíra a covid. Mas se havia um grupo de doenças que eram de fato a covid, aquele poderia ser o Paciente Zero”, disse Feith, atualmente pesquisador sênior do Center for New American Security.

A nova informação “deu início a um esforço muito mais amplo para examinar os dados” sobre as origens, disse David Asher, que foi assessor sênior da Agência de Controle, Verificação e Observância de Armas do Departamento de Estado da época e trabalhara nas investigações sobre a observância dos tratados internacionais da parte da China e do seu programa de armas nucleares. Quando este trabalho foi concluído, Asher, agora pesquisador sênior do Hudson Institute, tornou-se o chefe da força tarefa de Pompeo que analisava as origens da covid-19.

Nos últimos dias do governo Trump, os funcionários montaram uma iniciativa para desclassificar as  informações, incluindo algumas sobre os trabalhadores do laboratório que haviam adoecido. No dia 15 de janeiro, o Departamento de Estado divulgou uma “folha informativa” que foi examinada por diversas agências, inclusive na comunidade de inteligência, em que se declarava que o vírus pode ter-se espalhado naturalmente ou saído de um laboratório.

O documento descrevia três categorias de atividade que apontavam para o última hipótese, incluindo o relato dos funcionários doentes; a história da pesquisa do laboratório sobre o coronavírus em morcegos; e a descoberta de que militares chineses, desde pelo menos 2017, se dedicavam secretamente “a pesquisas sigilosas, inclusive experiências com animais de laboratório”.

A folha informativa, embora breve, é o documento público mais abrangente até o momento sobre o que o governo americano sabe a respeito de um possível vazamento de laboratório.

Um dos funcionários anteriores salientou que a evidência não mudou substancialmente, mas que há muitas indagações que não foram respondidas.

“Há muitas coincidências e material circunstancial e a pergunta é: ‘Quando muitas coincidências são realmente muitas?’” disse outro antigo funcionário. “Um lado do registro está crescendo e o outro não”.

Embora outros cientistas tenham afirmado que a teoria do vazamento vale mais investigações, muitos aconselham a não abraçá-la com excessivo entusiasmo.

“A única razão pela qual esta história continua se sustentando é que a mídia escolheu vestir antigas especulações com novas informações e afirma que esta é a evidência. Não é. É pura especulação e todas as hipóteses sobre a origem continuam viáveis”, disse Angela Rasmussen, virologista da Vaccine and Infectious Disease Organization da Universidade de Saskatchewan.

Na realidade, levou anos para desvendar a origem da epidemia de SARS.

“Uma investigação de 90 dias para se chegar a uma resposta definitiva parece bom, mas é improvável que se chegue a uma resposta definitiva”, disse Chris Meekins, ex-funcionária dos Health and Human Services, hoje analista da Raymond James, uma empresa de serviços financeiros. "A não ser que nós tenhamos informações da inteligência que os EUA se recusaram a divulgar até o momento a fim de proteger fontes e métodos, não tenho certeza do que mudará nos próximos 90 dias”.

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