quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Por que é má ideia governo do estado querer sobras de recursos de universidades?, FSP

 

As finanças do setor público brasileiro já estavam em situação complicada antes do aparecimento do coronavírus. Agora o Estado está em situação crítica. A pandemia gerou uma necessidade de gastos adicionais, além de jogar a economia e, por tabela, a arrecadação de impostos no chão. Governos estão procurando maneiras alternativas de encontrar algum dinheiro extra.

O governo do estado de São Paulo encaminhou à Assembleia Legislativa um projeto para ajustar suas contas (o PL 529/2020). Um aspecto particular desse projeto, que está em tramitação, vem causando bastante polêmica em alguns setores da administração pública –especialmente nas universidades estaduais. De acordo com o PL, se a instituição tiver alguma sobra de recursos ao fim do ano, ela deverá ser devolvida ao caixa do governo do estado. O arranjo proposto, assim, veda a transferência de recursos para o futuro, como pode ser realizado hoje pelas universidades.

É difícil acreditar que isso traga um volume significativo de recursos ao governo do estado. Afinal, o incentivo do órgão público é gastar o dinheiro que tenha à disposição e não deixar sobras. De quebra, a regra poderia gerar mau uso dos recursos públicos.

Nesse esquema em discussão, em que não seria possível transferir dinheiro para o ano seguinte, gestores tenderão a gastar menos no início do ano fiscal. Trata-se de uma precaução, pois o gestor temerá um cenário em que possa precisar muito do dinheiro nos meses seguintes.

Só que isso faz com que, em média, mais recursos fiquem disponíveis no final do ano, pois nem sempre esse cenário em que o dinheiro é necessário se materializa. Aí o gestor precisa gastar, caso contrário perde o recurso. Nessa situação, a corrida contra o tempo faz com que o dinheiro não seja aplicado da maneira mais eficiente.

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Se o gestor pudesse carregar esses recursos para o próximo ano fiscal, esse incentivo ao mau uso seria certamente menor. O gestor poderia esperar para gastar o dinheiro com mais calma, quando julgar mais apropriado às suas necessidades. Hoje, as universidades paulistas podem fazer isso – o que, se a proposta do governo do estado for aprovada, não será mais possível.

Um artigo acadêmico baseado em dados do governo americano encontra resultados consistentes com essa relação entre gastos e eficiência. Diversos órgãos daquele país seguem uma regra em que recursos remanescentes ao fim do ano fiscal devem ser devolvidos ao caixa do Estado. Os autores mostram que o gasto em compras públicas é muito maior no último mês do que no resto do ano fiscal –e, em particular, na última semana. E esse gasto feito no apagar das luzes tende a ser de pior qualidade.

No caso das universidades públicas, esse efeito deve ser ainda mais forte se a nova regra passar a valer. Isso porque elas têm incerteza não apenas sobre a necessidades de seus gastos, mas também sobre sua receita ao longo do ano –que depende da arrecadação de ICMS. Assim, elas podem segurar ainda mais os gastos no começo do ano, concentrando a despesa no final, com a consequente perda de eficiência.

No fim das contas, o governo do estado provavelmente não conseguirá muito dinheiro com a nova regra. E tenderá a gerar uma piora no uso desses recursos públicos.

Por quê?

Especialistas traduzem o economês do seu dia a dia, mostrando que economia pode ser simples e divertida.

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terça-feira, 8 de setembro de 2020

Constrangimento de viagem: quando viajar vira 'mau exemplo', Natalie B. Compton, The Washington Post, OESP

 A pandemia deu início a uma nova era de constrangimento. As pessoas são constrangidas por usarem máscaras e por não as usarem; são constrangidas por não observar o distanciamento social; e até por causa do vírus, quando alguém é criticado por contrair o coronavírus.

Agora temos o constrangimento de viagem (ou travel shaming, em inglês).

Antes do coronavírus, o turismo era uma moeda social. Perguntávamos aos amigos e aos novos conhecidos (lembra de quando era possível conhecer pessoas novas?) onde eles já tinham estado e quais lugares gostariam de visitar. Na época, o único constrangimento associado às viagens se referia àqueles de quem se caçoava por não terem viajado o bastante. As pessoas compartilhavam suas experiências de viagem com orgulho, como medalhas.

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Travel Shaming
Banhistas lotam praia de Ipanema, no Rio, durante o feriado de 7 de Setembro Foto: Wilton Junior/Estadão

Depois que o mundo entrou em quarentena e voos foram cancelados, com aeroportos e fronteiras fechados, o status social do turismo mudou. Viajantes começaram a enfrentar as reações de quem acredita que esses deslocamentos durante a pandemia colocam todos em risco.

Diferentemente de outras formas de constrangimento ligadas ao coronavírus, o constrangimento do turista não leva ao “cancelamento" de ninguém. Ele se manifesta discretamente nas mensagens trocadas ou em manifestações de agressividade passiva nas redes sociais.

Matt Long, que mantém um blog e um podcast de turismo em Upper Marlboro, Maryland, fez várias viagens desde o início do relaxamento das restrições causadas pelo coronavírus nos Estados Unidos.

“Em cada uma, fui alvo de algum tipo de constrangimento social", diz Long.

Sua primeira viagem foi durante o feriado do Memorial Day. Long foi de carro até o Nemacolin Woodlands Resort, propriedade de 8 quilômetros quadrados em Farmington, Pensilvânia, onde passou dois dias. Ainda que todos os comentários em suas publicações nas redes sociais tenham sido positivos, Long ficou surpreso com as mensagens ressentidas que recebeu dos amigos.

“Eles disseram, ‘Faz dois meses que não chego nem à calçada, e você aí passeando. Minha filha não pode ir à aula de natação, mas você vai curtir um resort. Não é justo’", diz Long.

Mas a maior polêmica começou com sua viagem à Disney World em agosto. Foi uma situação de lazer e trabalho, como esse reconhecido fã da Disney relataria em seu blog e podcast.

“Muitos me criticaram dizendo, ‘Não acredito que você está indo para a Flórida bem agora’", diz Long. “Tive parentes lá (na Flórida) que não gostaram do que fiz e não queriam a visita de ninguém de fora do Estado, pois tinham a sensação de estarem literalmente lutando por suas vidas, e a última coisa que precisam era de forasteiros de outros Estados piorando ainda mais as coisas."

Foi esse sentimento que levou Lola Méndez, americana de origem uruguaia que escreve a respeito de turismo, a deixar de viajar com o começo da pandemia, a primeira pausa em cinco anos de viagens constantes.

 

Eu jamais poderia viver sabendo que alguém adoeceu e morreu por minha causa
Lola Mendes, jornalista de turismo

Lola se sentiu frustrada ao ver jornalistas da área e influenciadores retomando os deslocamentos. Quando alguém pede conselhos de viagem a Lola, ela tenta responder com dicas pessoais, e em vez disso envia artigos publicados nesses destinos com citações de moradores locais pedindo aos turistas que não venham.

“Realmente fiquei irritada com isso e fiz comentários críticos no Instagram e no Twitter explicando por que considero isso uma irresponsabilidade, e tudo aquilo que devemos ter em mente antes de tomar a decisão de viajar a lazer", diz Lola.

A professora de psicologia June Tangney, da Universidade George Mason, autora de Shame and Guilt  (Vergonha e Culpa), diz que é natural o desejo de constranger alguém por viajar durante a pandemia. Entretanto, June não acredita que o constrangimento do turista tenha o impacto que as pessoas esperam.

 

Constranger quem não segue as regras ou fazer com que essas pessoas se sintam culpadas é produtivo ou contraproducente? Me parece claro que o resultado é contraproducente
June Tangney, professora de psicologia

Ainda que June diga não haver estudos empíricos a respeito do tema, todos os dados que ela já viu a respeito do constrangimento indicam que o resultado é fazer com que as pessoas fiquem defensivas, irritadas, ou joguem a culpa nos outros.

“É natural ficar irritado com as pessoas por causa disso, ficar ressentido e querer que elas se sintam mal com aquilo", diz June. “Mas usar o constrangimento para que se sintam mal não ajuda."

June diz que há outra forma de influenciar o comportamento de risco de uma pessoa: tente “incentivar as pessoas a pensar no seu impacto para as demais de uma forma que as incentive a serem mais cuidadosas em vez de repreendê-las e esperar que se redimam", diz ela.

O medo da culpa ou da vergonha pode manter algumas pessoas em casa ou fazer com que escondam suas viagens. Mas algumas celebridades expõem tudo nas redes sociais.

Foi o caso do rapper Drake, visto em Barbados em julho; do ator Timothée Chalamet, visto no México em junho; e Kylie Jenner, que publicou fotos de si sem máscara em Paris essa semana, mesmo com a proibição a turistas americanos em vigor na UE. E a lista continua.

O constrangimento por viajar não funcionou com Long, que não tem vergonha de suas viagens, embora tenha reduzido as publicações que faz pelo caminho.

“Diminui o quanto compartilho", diz ele a respeito da mais recente viagem à Disney World. “Normalmente, minhas redes são uma avalanche de Mickeys, mas, dessa vez, fui mais contido."

Depois de voltar da Disney, ele passou duas semanas de quarentena e fez testes para detectar o coronavírus. Long acredita que está tomando as precauções adequadas para viajar com segurança e se enxerga como alguém que pode aliviar o constrangimento alheio ao normalizar a ideia de viajar novamente.

“Se formos cuidadosos e não expusermos ninguém a um risco desnecessário, pessoalmente não vejo problema (em viajar)”, diz Long. “Mas, pelo futuro próximo, acho que esse constrangimento de viagem será uma realidade.”

Tradução de Augusto Calil