A pandemia de Covid-19 se tornou acontecimento tão familiar que ninguém mais se pergunta pela origem do coronavírus Sars-CoV-2. Os morcegos, vilões de início, caíram no esquecimento, na companhia dos simpáticos pangolins e dos estigmatizados hábitos alimentares chineses.
Melhor assim. Há coisas mais urgentes por enfrentar, como a ideologia antivacina (não duvide da infecciosidade da estupidez no país governado por Jair Bolsonaro) e o dilema sobre reabrir ou não escolas numa sociedade que lota bares, centros de compras e praias.
O mistério persiste, entretanto. Pouco se sabe ao certo, só que o novo coronavírus provavelmente surgiu décadas atrás nalguma espécie de quiróptero em área rural da China e se transferiu há menos tempo para humanos, usando algum mamífero como intermediário –visons? porcos? serpentes?
Seguro é que se trata de uma zoonose, doença provocada pelo contato de gente com animais. Enfermidades que tendem a se tornar mais frequentes, inclusive na forma de pandemias como esta, com a paulatina destruição de habitats naturais e sua conversão em terras agrícolas e urbanas.
Precisamos de uma estratégia mundial contra elas, algo que os antiglobalistas estão organizados para sabotar. Reconhecer e conhecer a ameaça, porém, é um primeiro passo necessário.
Um artigo de investigação sobre essa hipótese saiu semana passada no periódico científico Nature. Pesquisadores britânicos encabeçados por Kate Jones reuniram informações de 6.801 levantamentos de fauna em áreas alteradas pelo homem e suas vizinhanças, com a identificação de 376 espécies animais hospedeiras de patógenos –bactérias, vírus etc.– conhecidos.
Comparando áreas cultivadas e habitadas com as de vegetação natural mais preservada, constataram que a fauna capaz de transmitir doenças era mais abundante nas primeiras. Tanto em número de espécies (até 72% mais frequentes) quanto em quantidade de indivíduos (até 144%).
Não há grande surpresa tampouco no tipo de bicho que predomina em ambientes alterados pelo homem: roedores, morcegos e aves passeriformes (basicamente o que chamamos de passarinhos, aves de pequeno e médio porte, canoras, como sabiás e bem-te-vis).
Trata-se de animais que exibem populações numerosas, alimentação baseada em sementes, frutos e invertebrados e capacidade de ocupar diferentes nichos ecológicos. Flexíveis, conseguem adaptar-se bem às áreas modificadas pelos humanos, como plantações, pastos e cidades.
São também portadores de grande variedade de patógenos, como vírus, que no entanto não lhes causam grandes problemas de saúde. No caso de morcegos, como já se viu aqui, a adaptação de mamíferos ao estresse fisiológico do voo parece ter reduzido seu sistema imunológico ao mínimo, para evitar que o dano continuado a células resultasse em reações inflamatórias agudas (como a tempestade bioquímica de certos casos graves de Covid-19).
Tornam-se, por isso, reservatórios ideais para partículas como o coronavírus aproveitarem a primeira oportunidade de saltar para uma espécie próxima no ambiente modificado. Podem ser porcos, galinhas, civetas ou patos criados na China, roedores em milharais do Brasil ou visons em fazendas da Holanda. Para nada dizer de mosquitos sugadores de sangue...
Zoonoses pandêmicas são, por isso, cada vez mais prováveis. A espécie humana não para de converter ambientes naturais em áreas cultiváveis e pastagens.
A China, superpopulosa e emergente, frenética conversora de regiões naturais em campos agrícolas e cidades e voraz consumidora de proteína animal de variados organismos, abre avenidas imensas para tais zoonoses. E o Brasil não está imune a tal risco.
Pense no desmatamento, agora turbinado pelo prestígio, neste governo, dos interesses comuns de fazendeiros, grileiros, madeireiros e garimpeiros nos rincões sem lei do Brasil. A devastação de paisagens naturais favorece toda essa cadeia, mesmo que uma franja de grandes produtores, processadores e banqueiros comece a sentir o cheiro de queimado nos mercados globais.
O agro é tudo, costumam dizer entusiastas dentro e fora dos círculos bolsonaristas. Pois que lhe incluam também na conta o risco crescente de novas pandemias –além da destruição da Amazônia, do cerrado, da mata atlântica, do Pantanal, dos povos indígenas e quilombolas, da biodiversidade e da política civilizada.