domingo, 6 de setembro de 2020

Atas idênticas levantam suspeita de simulação de partidos na divisão de fundo eleitoral, FSP

 Ranier Bragon

BRASÍLIA

Se as eleições de 2018 foram marcadas por esquemas de candidatas laranjas nos partidos políticos, as de 2020 já começam sob suspeita de simulação de reuniões para definir os critérios de distribuição do bilionário fundo eleitoral, a maior fonte de recursos públicos para os candidatos a prefeito e vereador.

Folha identificou ao menos quatro partidos que entregaram ao TSE (Tribunal Superior Eleitoral) atas de reuniões partidárias com trechos idênticos entre si, um "Ctrl+C/Ctrl+V" que indica a suspeita de que siglas possam ter burlado exigências legais.

O PSL, por exemplo, saiu da condição de nanico em 2018 e terá neste ano direito à segunda maior fatia do bolo, quase R$ 200 milhões, por ter recebido uma expressiva votação na onda que elegeu Jair Bolsonaro presidente da República.

O presidente nacional do PSL, deputado federal Luciano Bivar (PE) - Pedro Ladeira/Folhapress

A ata da reunião em que o partido do deputado federal Luciano Bivar (PE) teria definido as diretrizes para distribuição dos seus recursos, datada de 3 de junho de 2020, traz a transcrição de uma situação que se assemelha nos mínimos detalhes, incluindo praticamente as mesmas palavras e os mesmos erros de português, a uma descrita na reunião do PL, com data de realização de quase um mês antes, 13 de maio.

Os dois partidos ocupam sedes vizinhas, no nono andar de um dos principais prédios de escritórios de Brasília.

[ x ]

A ata da reunião do PL descreve a seguinte cena, que teria se desenrolado às 15h do dia 13 de maio, uma quarta-feira, na sala 903 do Centro Empresarial Brasil 21, região central de Brasília:

"A senhora secretária-geral, Mariucia Tozatti, fez uso da palavra, para destacar a todos os presentes que entendia que o PL deveria, na distribuição de seus recursos, contemplar os mesmos critérios adotados pelo legislador, demonstrando o fortalecimento de suas bancadas no Congresso Nacional", diz o documento, que prossegue:

"O presidente [José Tadeu Candelária] franqueou a palavra aos demais presentes [não há vírgula] os quais se manifestaram favoráveis às manifestações feitas na presente Sessão. Diante de tais manifestações, o Senhor Presidente sugeriu a suspensão da presente Sessão para que se possa discutir e elaborar uma Resolução Administrativa desta Comissão Executiva Nacional, estabelecendo critérios da distribuição do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC). A sugestão foi aprovada por unanimidade dos membros presentes, tendo a Sessão sido suspensa às 15h15".

A ata da reunião do PSL descreve uma cena incrivelmente similar, que teria se desenrolado às 9h do dia 3 de junho, também uma quarta-feira, em uma sala no corredor oposto ao do PL, a 906, sede nacional do partido.

"O senhor presidente opinou no sentido de que o PSL deveria, na distribuição dos seus recursos, contemplar os mesmos critérios adotados pelo legislador, demonstrando o fortalecimento de suas bancadas no Congresso Nacional", inicia o texto do PSL.

"O senhor presidente [Luciano Bivar] franqueou a palavra aos demais presentes [não há vírgula] os quais se manifestaram favoráveis às manifestações feitas na presente reunião. Diante de tais manifestações, o senhor presidente sugeriu a suspensão da presente reunião para que se possa discutir e elaborar uma resolução interna desta comissão executiva nacional, estabelecendo critérios de distribuição do FEFC. A sugestão foi aprovada por unanimidade dos membros presentes, tendo a reunião sendo [sic] suspensa às 10h."

Para que cada um dos 33 partidos políticos receba a sua fatia do fundo eleitoral —que na eleição de 2020 irá ratear R$ 2,035 bilhões—, é preciso que ele reúna seus dirigentes e aprove uma resolução estabelecendo os critérios que irá utilizar para repassar a verba pública aos candidatos. Após isso, a sigla deve encaminhar toda a documentação ao TSE, além de fazer ampla divulgação em seus canais de comunicação.

O objetivo é aprimorar a gestão do dinheiro público, forçando a transparência e o estabelecimento de regras mais claras, além de tentar combater a tendência histórica de os caciques partidários decidirem, sem qualquer tipo de satisfação pública ou interna, qual candidato terá direito ao dinheiro e qual não terá.

Na prática, porém, algumas siglas optam por critérios vagos e subjetivos —uma muito usada é a da submissão da decisão à "conveniência partidária", sem detalhes sobre o que isso signifca na prática—, mantendo, assim, o controle sobre o dinheiro nas mãos dos principais dirigentes.

O PSL esteve em 2018 no centro do esquema das candidaturas laranjas, o que resultou em denúncia do Ministério Público contra o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, então presidente da sigla em Minas Gerais, e em indiciamento de Bivar pela Polícia Federal.

Uma das suspeitas foi o repasse de R$ 400 mil de dinheiro público do PSL para uma secretária de Bivar, Maria de Lourdes Paixão, 68, que oficialmente concorreu a deputada federal e teve apenas 274 votos. Os casos foram revelados pela Folha.

O PSL foi uma sigla nanica até 2018. Naquele ano, saltou para uma das maiores do país após a filiação e eleição de Jair Bolsonaro.

No ano seguinte, Bolsonaro, já presidente da República, se desfiliou da legenda após afirmar que Bivar estava "queimado pra caramba", em uma disputa, entre outros pontos, pelo controle das verbas do partido.

Diante da dificuldade de montar sua própria legenda, a Aliança pelo Brasil, Bolsonaro agora negocia uma possível volta ao PSL.

Além do caso de PSL e PL, a Folha também identificou que o PMB (Partido da Mulher Brasileira) entregou ao TSE resolução em que estabelece como critérios de distribuição de seus recursos os mesmos apresentados à Justiça Eleitoral anteriormente pelo Solidariedade, com as mesmas 79 palavras, respectivas pontuações e uma vírgula colocada exatamente no mesmo local indevido.

"A distribuição de recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) será feita pela direção partidária nacional, [sic] levando-se em consideração os seguintes parâmetros, dentre outros fundamentais para o bom desempenho eleitoral do partido: I - histórico político e de militância partidária do candidato ou candidata; II -potencial de votos da candidatura; III –respeito, defesa e fidelidade aos princípios ideológicos, políticos e programáticos do partido; IV –importância do respectivo colégio eleitoral para o planejamento estratégico de fortalecimento do partido; V-estrutura e organização partidária local", diz a ata da reunião do Solidariedade, o que é repetido ipsis litteris na resolução do PMB.

O PMB foi criado em 2015 e chegou a ter mais de 20 parlamentares —a quase totalidade deles homens— atraídos pela promessa de controle dos diretórios regionais e das verbas públicas do partido. Assim como chegaram, todos saíram um tempo depois e hoje a sigla não tem mais nenhum deputado.

A sigla entregou ao TSE resolução datada de 30 de junho. O Solidariedade informa ter sacramentado suas regras em 8 de junho. Ela repete os termos definidos dois anos antes, em 2018.

OUTRO LADO

Folha pediu aos partidos acesso a eventuais gravações em áudio ou vídeo das reuniões, mas nenhum deles as forneceu.

O PSL disse não saber informar a razão da coincidência com a ata do PL, se limitando a dizer que a reunião ocorreu nos termos descritos no documento entregue à Justiça.

Em nota, a assessoria de imprensa do PL afirmou que o documento apresentado ao TSE reproduz fielmente a reunião e as decisões tomadas pela sigla. "A redação do texto que consta da ata citada obedece aos critérios exigidos pela legislação vigente e registra, criteriosamente, os termos da decisão liberal para a distribuição do fundo eleitoral, encaminhada à Justiça Eleitoral."

Folha encaminhou perguntas para o email da assessoria de imprensa do PMB informado no site do partido, mas não obteve resposta. O telefone informado no site oficial não completa chamadas.

O Solidariedade disse, também por meio de sua assessoria de imprensa, que a reunião de 2020 foi efetivamente realizada de forma virtual, através de aplicativo de videoconferência, em 8 de junho, "exatamente como consta em sua ata, a qual foi devidamente assinada eletronicamente pelos que se fizeram presentes".

"Não havia obrigatoriedade de que a reunião fosse gravada, sendo certo que a assinatura válida dos presentes supre qualquer questionamento quanto à sua realização e o que fora ali deliberado", diz a assessoria, ressaltando que o TSE já declarou o partido apto a receber os recursos.

"Imediatamente após a aprovação dos critérios de distribuição dos FEFC, estes foram amplamente divulgados pelo partido, inclusive em seu site. Ou seja, quando o Partido da Mulher Brasileira deliberou a respeito, em 30/06/2020, a resolução do Solidariedade já estava amplamente divulgada há vários dias, além do que a resolução do Solidariedade para as eleições de 2020 em muito se assemelha com aquela aprovada pelo partido para as eleições de 2018. O Solidariedade não pode responder por atos partidários praticados por outras agremiações, sem o seu conhecimento", finaliza a nota.

O presidente tem toda a razão, Editorial OESP

 Notas & Informações, O Estado de S.Paulo

05 de setembro de 2020 | 21h00

Em um evento recente no Palácio do Planalto, o presidente Jair Bolsonaro desabafou: “Só Deus sabe o que já passei e passo dentro desta sala, não queiram a minha cadeira”. A sala em questão é o gabinete da Presidência, e a cadeira, aquela que lhe cabe ocupar como o vitorioso da eleição de 2018. “Com todo o respeito, não sou super-homem, mas não é para qualquer um.”

De fato, Jair Bolsonaro tem toda a razão: a Presidência da República não é para qualquer um. Para exercê-la é preciso uma série de qualidades que separam os estadistas dos aventureiros e oportunistas.

A primeiríssima dessas qualidades é ter um projeto claro de País – isto é, um conjunto de propósitos e compromissos públicos de longo prazo em torno dos quais o presidente deve se esforçar para construir maioria ou consenso político. Sem esse projeto e sem esse consenso, como convencer a sociedade a fazer sacrifícios em nome do bem-estar de todos, agora e no futuro? A destruição do legado de governos passados, por pior que esse legado tenha sido, não pode ser o único objetivo de um presidente, nem mesmo o principal. É preciso ter, isso sim, aptidão para construir.

Outra qualidade fundamental é a capacidade de compreender o que é o poder e como exercê-lo numa sociedade democrática. A eleição presidencial não dá a seu vencedor a prerrogativa de exercer o poder fora dos limites inscritos com clareza meridiana na Constituição. O presidente da República não pode nem deve esperar que os demais Poderes se submetam a seu tacão, pois todos são igualmente legítimos. Deve ter a grandeza de reconhecer igualmente que seu poder não existe em si. É, antes, expressão da vontade coletiva, construída por meio de amplo debate público, a partir da qual se extrai a base de uma governança genuinamente democrática. Isso é bem diferente do poder exercido de maneira arbitrária, em confronto aberto e permanente com a parte da sociedade que se recusa a ver legitimidade nas decisões de governo justamente porque, intimidada pela violência, que muitas vezes não é só retórica, não consegue ter voz no debate sobre a administração do País.

Além disso, um presidente deve demonstrar respeito reverencial pelas instituições que compõem a República, a começar pela própria Presidência – que deve ser exercida com o decoro que o mais alto cargo da administração demanda. Não se pode aceitar que um presidente se permita vulgaridades a pretexto de se aproximar do povo. O chefe de Estado não é um qualquer – foi eleito para representar o País e seus valores. Rebaixa a Presidência aquele que a ocupa como se estivesse num churrasco com os amigos.

Finalmente, um presidente da República que dignifica o cargo é aquele que respeita a imprensa, cuja existência, livre e saudável, é o maior sintoma de uma democracia pujante. A liberdade de imprensa não é uma concessão do Estado ou dos governantes; é, antes, uma condição sem a qual as demais liberdades estarão sob risco. Sem os veículos de comunicação, que levam os fatos ao conhecimento do público, dando-lhe condições de elaborar juízos racionais sobre a realidade, a sociedade estaria à mercê dos que pretendem impor o pensamento único. Desprovido de consciência crítica, proporcionada pelo escrutínio constante do poder, nenhum cidadão é livre – nem sequer cidadão chega a ser. Não é à toa que candidatos a ditador vivem a ameaçar jornalistas e a atacar a imprensa, pois estes são, por definição, o arrimo das sociedades democráticas.

Como se observa, não é mesmo fácil ser presidente da República. É um fardo e tanto, que só líderes políticos muito preparados, intelectual e emocionalmente, são aptos a carregar. Infelizmente, a democracia, por mais madura que seja, não é capaz de garantir a qualidade dos presidentes que serão eleitos, ainda mais em tempos de confusão, mentiras e rebaixamento moral como estes que ora vivemos; por outro lado, a democracia tem mecanismos muito eficientes para pelo menos impedir que os presidentes flagrantemente incapazes de exercer o cargo continuem indefinidamente no poder.


Reeleição e crises, Fernando Henrique Cardoso, O Estado de S.Paulo


05 de setembro de 2020 | 21h00

Recordo-me da visita que André Malraux, na ocasião ministro da Cultura de De Gaulle, fez ao Brasil. Esteve na USP, na Rua Maria Antônia, onde funcionava a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, e expôs no “grande auditório” (que comportava não mais que umas cem pessoas) sua visão de Brasília, obra de Juscelino Kubitschek. Malraux estava extasiado, comparava o plano diretor da cidade não a um pássaro (coisa habitual na época), mas a uma cruz. Com sua verve inigualável, dizia em francês o que não estávamos acostumados a ouvir em português: fazia o elogio da obra. 

Esse não era, contudo, o sentimento predominante, pois víamos Brasília mais como desperdício, que induzia à inflação, do que como um “sonho”, um símbolo.

A visão dominante era negativa, principalmente no Rio de Janeiro (que perderia a condição de capital da República), em São Paulo e daqui para o sul. O gasto era grande e os recursos, minguados.

Eu compartilhava esse sentimento negativo, e olha que um de meus bisavôs fizera parte, no Império, da “missão Cruls”, que demarcara o território da futura capital do Brasil... Brasília foi construída onde desde aquela época se previa fazer a capital do País.

Não é que Malraux tinha razão? Não que a obra deixasse de ser custosa ou mesmo impulsionadora da inflação. Mas um país também se constrói com projetos, sonhos e, quem sabe, alguns devaneios...

Juscelino fez muitas coisas, algumas más, mas não é por elas que é lembrado. Brasília, sim, ficou como sua marca. 

Não o conheci. Vi-o pessoalmente uma vez, sentado, solitário, num banco no aeroporto de “sua” cidade. Aproximei-me e o saudei; pouca conversa, mas muita admiração. Ele já havia sido “cassado”. Passa o tempo e fica na memória das pessoas sua “obra”, Brasília.

Não estou recomendando que Bolsonaro faça algo semelhante. Não sou ingênuo para pretender que minhas palavras cheguem ao presidente e, se chegarem, sejam ouvidas... Como estive no Planalto, às vezes me ponho no lugar de quem ocupa aquela cadeira espinhosa: é normal a obsessão por fazer algo, para o povo e para o País. Como o presidente será julgado são outros quinhentos. Maquiavel já notava que os chefes de Estado (os grandes homens... na linguagem dele) dependem não só de astúcia, mas da fortuna (da sorte).

O governo atual não teve sorte. São de desanimar os fatores contrários: a pandemia, logo depois de uma crise econômica que vem de antes, com o produto interno bruto (PIB) crescendo pouco (se é que...), e uma “base política” que depende, como sempre, mais do “dá lá toma cá” do que da adesão popular a algo grandioso. Ganhou e levou; mas mais pelo negativo (o não ao PT e aos desatinos financeiros praticados) do que pelo sim a uma agenda positiva.

Agora se tem a sensação (pelo menos, eu tenho) de que o presidente não está bem acomodado na cadeira que ganhou. É difícil mesmo. De economia sabe pouco; fez o devido: transferiu as decisões para um “posto Ipiranga”. Este trombou com a crise, pela qual não é responsável. Não importa, vai pagar o preço: tudo o que era seu sonho, cortar gastos, por exemplo, vira pesadelo, terá de autorizá-los. E pior: como é economista, sabe que a dívida interna cresce depressa, e sem existir mais a alternativa da inflação, que tornava aparentemente possível fazer o que os presidentes querem – atender a todos ou à maioria e ganhar a reeleição. Só resta o falatório vazio. Este cansa e é ineficaz num Congresso que, no geral, também quer gastar e igualmente pensa nas eleições.

Cabe aqui um “mea culpa”. Permiti, e por fim aceitei, o instituto da reeleição. Verdade que, ainda no primeiro mandato, fiz um discurso no Itamaraty anunciando que “as trevas” se aproximavam: pediríamos socorro ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Não é desculpa. Sabia, e continuo pensando assim, que um mandato de quatro anos é pouco para “fazer algo”. Tinha em mente o que acontece nos Estados Unidos. Visto de hoje, entretanto, imaginar que os presidentes não farão o impossível para ganhar a reeleição é ingenuidade.

Eu procurei me conter. Apesar disso, fui acusado de “haver comprado” votos favoráveis à tese da reeleição no Congresso. De pouco vale desmentir e dizer que a maioria da população e do Congresso era favorável à minha reeleição: temiam a vitória... do Lula. Devo reconhecer que historicamente foi um erro: se quatro anos são insuficientes e seis parecem ser muito tempo, em vez de pedir que no quarto ano o eleitorado dê um voto de tipo “plebiscitário”, seria preferível termos um mandato de cinco anos e ponto final.

Caso contrário, volto ao tema, o ministro da Economia, por mais que queira ser racional, terá de fazer a vontade do presidente. Não há o que a faça parar, muito menos um ajuste fiscal, por mais necessário que seja. E tudo o que o presidente fizer será visto pelas mídias, como é natural, como atos preparatórios da reeleição. Sejam ou não. 

Acabar com o instituto da reeleição e, quem sabe, propor uma forma mais “distritalizada” de voto são mudanças a serem feitas. Esperemos...

SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE DA REPÚBICA